Processo Familiar

Alimentos, violência doméstica e indignidade

Autor

  • é doutor em Direito Civil pela USP mestre em Direito Civil Comparado pela PUC-SP especialista em Direito Processual Civil pela Universidade Federal de Pernambuco professor de Direito Civil na Escolas da Magistratura e da Advocacia diretor do Instituto dos Advogados de São Paulo (Iasp) presidente da Comissão de Assuntos Legislativos do IBDFam membro da Academia Brasileira de Direito Civil (ABDC) ex-assessor na Câmara dos Deputados da relatoria-geral do projeto de lei que deu origem ao novo Código Civil Brasileiro autor e co-autor de livros e artigos jurídicos.

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23 de fevereiro de 2025, 8h00

O artigo 1.708 do Código Civil estabelece que a indignidade faz cessar o direito a alimentos. Na literalidade do discurso normativo, o procedimento indigno do credor em relação ao devedor constitui fundamento para extinção da obrigação alimentar.

A expressão “procedimento indigno” veicula um conceito jurídico indeterminado, a ser preenchido de acordo com as circunstâncias de cada situação particular. A grande dificuldade reside na concretização desse conceito, cuja essência afasta, de plano, qualquer possibilidade de esgotamento apriorístico pela doutrina.

Não é possível à doutrina definir aprioristicamente o que seja procedimento indigno. Já expus em outros escritos, a distinção entre “cláusulas gerais” e “conceitos jurídicos indeterminados” [1]. Em ambos os casos, o operador do Direito é chamado a preencher um vácuo valorativo, uma proposital indeterminação legislativa para, depois de colmatada a moldura normativa, aplicar a consequência jurídica que decorre dessa integração. Na cláusula geral, o operador, depois de delimitar o conceito, também atuará na formulação da norma jurídica consequencial. Além de construir o conceito, indicará a consequência jurídica. No conceito jurídico indeterminado, a atuação do intérprete se limita ao preenchimento da lacuna, pois a consequência jurídica já se encontra previamente desenhada no dispositivo. É exatamente o que ocorre no parágrafo único do artigo 1.708: definido o que seja “procedimento indigno do credor”, decorre uma única consequência jurídica possível, qual seja, a extinção da obrigação alimentar.

Tradicionalmente, a determinação do conteúdo do procedimento indigno tem sido feita a partir das causas de indignidade sucessória. Segundo o Enunciado nº 264, da III Jornada de Direito Civil, “na interpretação do que seja procedimento indigno do credor, apto a fazer cessar o direito a alimentos, aplicam-se, por analogia, as hipóteses dos incisos I e II do art. 1.814 do Código Civil”. A prevalecer a orientação do enunciado, somente o homicídio doloso, consumado ou tentado, e os crimes contra a honra, praticados pelo credor contra o devedor, justificariam a extinção da relação jurídica obrigacional.

A postura hermenêutica mais restritiva na adimplência desse conceito jurídico indeterminado, numa espécie de “garantismo” a favor do credor dos alimentos, restringindo o âmbito da expressão às situações que também autorizam a exclusão do herdeiro por indignidade sucessória, não mais se justifica. No próprio Código Civil podemos localizar outros dispositivos aptos a permitir uma “determinabilidade” mais ampla da indignidade alimentar, como é o caso do artigo 557, a contemplar as hipóteses que autorizam a revogação da doação por ingratidão do donatário, entre as quais se insere a prática de qualquer ofensa física contra o doador, bem como a negação da prestação de assistência material.

Cabe destacar que a prática de atos de indignidade pelo credor de alimentos, não apenas faz cessar a obrigação precedentemente estabelecida, como inviabiliza a própria fixação da verba pleiteada.  No âmbito dos Tribunais de Justiça, é possível localizar diversos julgamentos no sentido de afastar a condenação ao pagamento de alimentos por parte de quem foi vítima de indignidade [2].

Não é de hoje que venho manifestando posição contrária ao preenchimento restritivo do significado de “procedimento indigno” a que alude o parágrafo único do artigo 1.708, especialmente no caso de débito alimentar entre cônjuges ou companheiros. Nos dias atuais, em que os alimentos conjugais caminham para o enquadramento, cada vez mais, como eventos de excepcionalidade e transitoriedade, os móveis de exoneração passíveis de invocação pelo credor também devem ser revistos e ampliados. Se reconhecemos o caráter principiológico e normativo do AFETO na regulação jurídica das relações de família, qualquer manifestação de DESAFETO, e não apenas aquelas extremadas e tipificadas no Código Penal, devem influir na higidez da obrigação alimentar, máxime nos alimentos devidos em decorrência da conjugalidade.

Spacca

Jones Figueiredo Alves defende que até mesmo o mero desrespeito aos deveres conjugais/convivenciais caracterizaria comportamento indigno, podendo ensejar a declaração prévia de inexistência da dívida alimentar, que poderia ser reconhecida, de imediato, como razão eficiente de isenção. Para esse autor, mostra-se compatível com a ordem jurídica vigente a inibição prévia do direito a alimentos ante o pressuposto da indignidade da conduta, antecipando que “conduta desonrosa é o comportamento censurável que ultraja a personalidade do outro cônjuge ou companheiro e que infringindo os deveres implícitos do matrimônio, provoca no outro cônjuge um estado ou situação de constrangimento, humilhação, desprestígio moral ou social” [3].

Proposta de alteração do artigo 1.708 do Código Civil

No Projeto de Reforma do Código Civil (PLS nº 4/2025), pretende-se substituir a referência a “procedimento indigno” por uma cláusula mais objetiva e abrangente de uma gama maior de casos, passando o artigo 1.708 a contar com a seguinte redação: “O direito de receber alimentos poderá ser extinto ou reduzido, caso o credor tenha causado ou venha a causar ao devedor danos psíquicos ou grave constrangimento, incluindo as hipóteses de violência doméstica, perda da autoridade parental e abandono afetivo e material. Parágrafo único. A extinção total ou parcial do direito aos alimentos dependerá da gravidade dos atos praticados”.

A redação projetada atende à demanda de uma exegese mais aberta da indignidade alimentar, de modo a abranger qualquer ato de violência física ou psíquica do credor contra o devedor dos alimentos, comportamento que vem sendo taxado de indigno em diversos precedentes judiciais [4].

A menção à violência doméstica, no PLS nº 4/2025, como motivo de cessação ou afastamento do direito aos alimentos, terá fortes consequências nas dividas alimentares de cônjuges ou companheiros, pois o risco de desentendimentos graves, geradores de violência, inclusive com possibilidade de agressões físicas ou morais, a caracterizar atos de indignidade, é muito maior quando os cônjuges ou companheiros ainda estão sob o mesmo teto. Independentemente da aprovação do projeto, a interpretação contemporânea do art. 1.708 já nos autoriza a defender que o direito a alimentos de ex-cônjuge ou ex-companheiro cessa diante da prática de violência doméstica contra a mulher [5].

Por fim, a indignidade alimentar, em detrimento do devedor, justifica a exoneração ou extinção do direito a qualquer forma de prestação pecuniária devida a título de alimentos, sejam alimentos civis, côngruos ou mesmo os chamados alimentos compensatórios. Não obstante a natureza indenizatória dessa última verba, o fato é que o comportamento indigno, quer seja do herdeiro, do donatário, ou do credor de alimentos, é apenado, em nosso sistema, com a perda de um direito patrimonial. As mesmas razões que justificam a exclusão do herdeiro indigno da sucessão se prestam a fazer cessar, por exemplo, o pagamento de prestação compensatória pelo ex cônjuge vítima de violência doméstica.

 


[1] Cf. DELGADO, Mário Luiz. Da Indignidade do Credor de Alimentos. Revista Nacional de Direito de Família e Sucessões/Edições/12 – Maio/Jun 2016.

[2] APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE ALIMENTOS. NULIDADE DA DECISÃO POR AUSÊNCIA DE FUNDAMENTAÇÃO. INOCORRÊNCIA. AUSÊNCIA DE INTERESSE RECURSAL. PRELIMINAR REJEITADA. PEDIDO DE ALIMENTOS DE ASCENDENTE PARA DESCENDENTE. FILHOS ABANDONADOS AFETIVA E MATERIALMENTE PELO PAI. AUSÊNCIA DE SOLIDARIEDADE FAMILIAR. INEXISTÊNCIA DO DEVER ALIMENTAR. 1. Tratando-se de sentença que condena a pagar alimentos, seus efeitos são produzidos imediatamente após sua publicação, nos termos do art. 1.012, § 1º, II, do CPC. Inteligência do art. 1.012, §§ 3º e 4º, do CPC. Preliminar rejeitada. 2. A sentença obedece às determinações dos artigos 11 e 489 do CPC e do artigo 93, IX da CF. Preliminar rejeitada. 3. Na espécie, não há que se cogitar de falta de interesse recursal do apelante, porquanto a sentença foi de parcial procedência, experimentando decaimento em seu pedido inicial, já que apenas uma filha foi condenada a prestar-lhe verba alimentar. Preliminar de não conhecimento rejeitada. 4. Podem os parentes pedir uns aos outros os alimentos de que necessitam para viver de modo compatível com sua condição social (art. 1.694 do CC), direito que é recíproco entre pais e filhos (arts. 229 da CF e 1.696 do CC).5. No caso, porém, nunca existiu afeto, jamais houve solidariedade familiar, já que o pai autor abandonou seus filhos em tenra idade, quando do falecimento da primeira esposa, relegando-os à própria sorte.6. A inexistência de afeto impossibilita cogitar-se de família ou de solidariedade familiar, causa jurídica que embasa o dever de mútua assistência.7. A semeadura é livre, mas a colheita é obrigatória, com o que a indignidade perpetrada pelo autor contra seus filhos impede que deles possa exigir a ajuda material em comento.8. Os fatos de estar comprovado que o apelante é idoso, que está acometido de doenças e que recebe benefício previdenciário no valor de um salário mínimo não justificam o êxito do pleito, visto estar amplamente comprovado que, em momento algum, exerceu o poder familiar em relação a seus filhos do primeiro casamento, inexistindo vínculo afetivo e/ou material recíproco.9. Manutenção da sentença que condenou apenas a filha do segundo casamento do autor ao pagamento de pensão alimentícia, que concorda em prestar-lhe auxílio financeiro. TJ-RS Apelação Nº 70083212431 (Nº CNJ: 0293152-50.2019.8.21.7000). Relator: des. Ricardo Moreira Lins Pastl. Data: 7/3/2024.

[3] C. ALVES. Jones Figueiredo. Inibitória de Alimentos. Revista Nacional de Direito de Família e Sucessões/Edições/6 – Maio/Jun 2015.

[4] APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE DIVÓRCIO COM PEDIDO DE GUARDA E ALIMENTOS. Sentença de parcial procedência. Insurgência do réu. Pleito de minoração da verba alimentar fixada no patamar de 50% do salário mínimo. Impossibilidade. Montante destinado a mantença de 3 (três) crianças. Valor estatuído na origem que atende o trinômio necessidade, possibilidade e proporcionalidade. Pedido de prestação de alimentos a serem pagos pela ex-cônjuge. Insubsistência. Recorrente condenado pelo crime de ameaça à apelada. Violência psicológica. Conduta que consiste em procedimento indigno. Exegese do art. 1.708, do Código Civil. Requisitos do art. 1.695, CC, que tampouco foram atendidos. Sentença mantida. Recurso conhecido e desprovido. (TJ-SC; AC 0300132-50.2016.8.24.0043; Mondaí; 6ª Câmara de Direito Civil; rel. des. Stanley Braga; DJSC 31/1/2020; Pag. 155)

[5] DIREITO CIVIL. APELAÇÃO. ALIMENTOS. EX-COMPANHEIRO. EXCEPCIONALIDADE. TEMPORARIEDADE. PROVA. NECESSIDADE. VIOLÊNCIA DOMÉSTICA. CONDUTA INDIGNA. CESSAÇÃO DO DIREITO. SENTENÇA MANTIDA. 1. O dever de alimentos entre cônjuges decorre do princípio constitucional da solidariedade, trazido ao âmbito do Direito de Família como dever de assistência mútua entre familiares, uma vez comprovada a necessidade, a teor dos arts. 1.694 e 1.695 do Código Civil e arts. 1º, III, e 3º da Constituição da República. 2. A prestação de alimentos entre ex-cônjuges é excepcional e deve ser mantida apenas pelo tempo necessário para a reinserção no mercado de trabalho ou autonomia financeira do alimentado. 3. Não é reconhecida a necessidade a alimentos daquele que exerce atividade laboral e alega que sua remuneração é insuficiente para a sua manutenção, dado o caráter excepcional e temporário da obrigação alimentícia entre cônjuges. 4. O direito a alimentos a ex-companheiro cessa diante da prática de violência doméstica contra a mulher, de acordo com o disposto no art. 1.708 do Código Civil.5. Apelo conhecido e desprovido. (TJ-DF; Rec 07014.34-58.2021.8.07.0007; 183.0198; 3ª Turma Cível; Rel. Des. Roberto Freitas Filho; Julg. 07/03/2024; Publ. PJe 22/03/2024)

Autores

  • é doutor em Direito Civil (USP), mestre em Direito das Relações Sociais (PUC-SP), membro da Comissão Especial do Senado para Reforma do Código Civil (Relator da Subcomissão de Sucessões), membro da Academia Brasileira de Direito Civil (ABDC), diretor do Instituto dos Advogados de São Paulo (Iasp), professor e advogado.

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