De Volta para o Futuro interamericano: Neusa dos Santos e Gisele Ferreira vs Brasil, da Corte IDH
21 de fevereiro de 2025, 10h02
Imagine ser convidado a entrar no carro DeLorean e pegar carona com Marty McFly quase que acidentalmente e acompanhar, numa espécie de De Volta para o Futuro jurídico, o advogado Thurgood Marshall, da National Association for the Advancement of Colored People (NAACP), na defesa de Linda Brown contra o Conselho de Educação de Topeka, no Kansas. O caso, que denunciava a segregação racial nas escolas públicas, derrubou a doutrina dos “separados, mas iguais” e se tornou um marco na defesa da igualdade racial.
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Gisele Ana Ferreira, em depoimento
Foi assim que me senti, após ouvir uma palestra a convite dos advogados Rodnei Jericó e Maria Sylvia e acompanhar, por meio e com a equipe da Clínica Interamericana de Direitos Humanos do Núcleo Interamericano de Direitos Humanos da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), como amicus curiae, a reta final de um litígio estratégico histórico no âmbito do Geledés. O caso em questão, Neusa dos Santos e Gisele Ferreira vs. Brasil, teve sua sentença proferida em 20 de fevereiro de 2025. Esse caso pode ser considerado uma espécie de “Brown v. Board of Education interamericano“.
Embora existam outros casos anteriores reconhecendo violações ao princípio da igualdade, nenhum adquiriu ou terá tamanha magnitude nos fundamentos e na condenação. Isso se deve à representatividade das partes prejudicadas pelo racismo estrutural e institucional que assola o Brasil, ao papel histórico dos peticionários e aos fundamentos e pontos resolutivos decididos pela Corte Interamericana de Direitos Humanos.
Quanto à representatividade, Neusa e Gisele sofreram racismo no processo de contratação por uma empresa privada, enfrentando a falta de diligência do Estado brasileiro na proteção de seus direitos em todas as instâncias do sistema de justiça: ausência de investigação policial e perícia, falta de ação diligente por parte do Ministério Público, demora injustificada nas decisões judiciais. A luta por seus direitos, que é simbólico para metade da população brasileira, tornou-se um verdadeiro calvário.
Quanto à militância técnica em prol do direito à igualdade, o Geledés é uma referência indiscutível. Criado por Sueli Carneiro, a organização possui uma liderança pioneira e uma resiliência intergeracional no trabalho antirracista há cerca de 40 anos. Criou o SOS Racismo, que serviu de base para a atuação de Rodnei como advogado no presente caso. Participou da Conferência de Durban, produziu inúmeros livros e artigos, sendo uma espécie de NAACP brasileira.
No que diz respeito ao caso em si, a Corte IDH já tratou da igualdade prevista no artigo 24 e 26 em casos anteriores, como Guevara Díaz vs. Costa Rica. Nenhum, contudo, alcançou a mesma profundidade nos fundamentos e pontos resolutivos.
Dano e violação
Em primeiro lugar, os fatos envolvem racismo direto, sistêmico e institucional. Em segundo, os fundamentos adotam sistematicamente a interseccionalidade entre classe, gênero e raça. Vale destacar que isso não é algo menor, visto que, mesmo no caso Fazenda Brasil Verde vs. Brasil, essa fundamentação não esteve tão clara. O caso Neusa dos Santos e Gisele Ferreira Gomes é, de fato, emblemático.
Além disso, a Corte reconheceu o racismo sistêmico e institucional, tanto de forma direta quanto indireta, no acesso ao trabalho e à justiça em todas as suas etapas. Isso resultou no reconhecimento do dano ao projeto de vida das autoras, bem como na violação da devida diligência, conforme a combinação de diversos tratados do sistema interamericano ratificados pelo Brasil, tais como os artigos 1, 4, 5, 7, 11, 8, 24 e 26 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, a Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial e a Convenção Interamericana contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância.
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As reparações exigidas foram fundamentais tanto na dimensão individual quanto na coletiva. A sentença determinou a obrigação de investigar, processar e julgar crimes de racismo por meio de protocolos com perspectiva de gênero e raça, conforme sugerido pela perita Thula Pires. Além disso, foram estabelecidas medidas de reabilitação e de não repetição da discriminação racial, incluindo a inserção permanente do tema nos currículos do Poder Judiciário e do Ministério Público do Estado de São Paulo.
Um futuro antirracista
Neste nosso De Volta para o Futuro, vale outra rápida “volta” em uma nova carona no DeLorean para compreender o impacto transformador que esse caso pode ter no sistema interamericano de direitos humanos e no Brasil.
A questão se torna ainda mais significativa do ponto de vista histórico.
Em 1951, após a discriminação sofrida por Katherine Dura em um hotel Esplanada, Getúlio Vargas sancionou a Lei Afonso Arinos, em homenagem ao professor branco da Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Sueli Carneiro já demonstrou sua inaplicação por 30 anos pelo TJ-SP (Tribunal de Justiça de São Paulo), o que reforça a necessidade da inclusão permanente do tema no ensino jurídico.
Em 2003, o Supremo Tribunal Federal julgou o Habeas Corpus 82.424, envolvendo o editor Ellwanger. Após um controverso — para dizer o mínimo — voto do relator afirmando que judeu não era raça e deferindo o Habeas Corpus, outro ministro — Maurício Correa — abriu a divergência que prevaleceu, afirmando que raça é a humana, mas que qualquer discriminação, inclusive contra a comunidade judaica, poderia ser enquadrada como racismo nos termos da Lei 7.716/89, a Lei Caó. É inegável o antissemitismo contra judeus no Brasil e no mundo e a necessidade de combatê-lo. Ainda assim, é sintomático que o leading case sobre racismo em um país de maioria negra tenha envolvido apenas a comunidade judaica e não uma pessoa negra.
Confesso que, como professor de Direito Constitucional da FND-UFRJ, ao desembarcar deste texto – nosso modesto “DeLorean acadêmico”, conduzindo o leitor por esse breve passeio pela história –, encontrarei no noticiário os carros elétricos, os robôs humanoides dobrando roupas e a inteligência artificial generativa em um admirável mundo novo. É pouco provável que casos como o Neusa encontrem o mesmo eco na divulgação na mesma proporção por parte da mídia.
Ainda assim, esse é o futuro que eu gostaria de encontrar nas notícias. Um futuro antirracista. Um futuro com mais direitos para mais humanos. Mas talvez eu seja apenas um jovem muito estranho por esperar que, se meus cálculos estiverem corretos, as coisas certamente mudarão por aqui. O que essa luta intergeracional de décadas do Geledés nos ensina é que o futuro ainda não foi escrito. O de ninguém foi. Então, devemos construir um futuro melhor. Que possamos voltar para esse futuro melhor ou, melhor ainda, que possamos criá-lo e recriá-lo, corrigindo a linha do tempo corrompida pelo racismo, que destrói o projeto de vida de milhões de pessoas ontem, hoje e amanhã.
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