41% das comarcas estaduais e 60% das subseções federais não têm defensor público
21 de fevereiro de 2025, 8h52
Mais de dois anos depois do prazo estabelecido pela Emenda Constitucional 80/2014 para que todas as unidades jurisdicionais do país tivessem defensores públicos, 40,9% das comarcas ainda não são atendidas pelas Defensorias Públicas estaduais e 59,8% das subseções judiciárias federais não contam com os serviços da Defensoria Pública da União.
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EC determinou instalação da Defensoria em todas as unidades jurisdicionais até 2022, mas Brasil está atrasado no objetivo
Os dados estão atualizados até junho de 2024 e foram divulgados em setembro do último ano na “Pesquisa Nacional da Defensoria Pública”, conduzida em conjunto pelo Conselho Nacional das Defensoras e Defensores Públicos-Gerais (Condege), pelo Conselho Nacional dos Corregedores-Gerais (CNCG) e pela DPU, com apoio da Associação Nacional das Defensoras e Defensores Públicos Federais (Anadef). Todas as Defensorias estaduais tiveram alguma participação no trabalho.
O prazo para que os serviços da Defensoria fossem levados a todos os cantos do país era até junho de 2022. A pesquisa demonstrou que o Brasil ainda está longe desse objetivo: até junho do ano passado, 1.050 comarcas não eram atendidas pelas Defensorias estaduais e a DPU não cobria 165 subseções judiciárias.
Quando uma comarca não tem defensor público, o juiz pode nomear um advogado para prestar assistência a uma pessoa que não tenha condições de arcar com as custas do processo ou os honorários. O Estado fica responsável pelo pagamento desse advogado, chamado de dativo. O atraso no cumprimento da EC 80/2014 faz com que 78,6% das unidades federativas ainda usem essa alternativa, que é muito mais cara.
Cobertura insuficiente
O território brasileiro possui atualmente 2.565 comarcas das Justiças estaduais, mas apenas 1.315 delas (51,3%) são atendidas de forma regular pela Defensoria Pública. Outras 200 comarcas (7,8%) são atendidas de forma parcial ou excepcional.
Por exemplo, em 77 comarcas de São Paulo, a Defensoria presta assistência jurídica somente na execução de medidas socioeducativas e na execução penal, além de causas coletivas relativas a regularização fundiária, habitação, urbanismo e questões agrárias. Já na Bahia, o atendimento em 45 comarcas é restrito a demandas criminais. Há situações de atuação parcial semelhantes a essas em estados como Piauí, Pernambuco, Espírito Santo e Paraná.
Apesar do atraso no cumprimento da EC 80/2014, entre 2021 e 2024 a cobertura das Defensorias dos estados e do Distrito Federal (somando os atendimentos totais e parciais) subiu de 47% para 59,1%.
A pesquisa concluiu que, na Justiça estadual, 154,4 milhões de habitantes têm potencial acesso aos serviços regulares das Defensorias e 11,2 milhões possuem potencial acesso à assistência jurídica prestada de forma parcial ou excepcional pelos defensores.
Por outro lado, 37,4 milhões não têm acesso à Defensoria, sendo que 34,4 milhões são economicamente vulneráveis, com renda de até três salários mínimos. Ou seja, ao menos 18,4% da população brasileira não pode contar com os serviços dos defensores públicos estaduais.
Somente 11 unidades federativas têm cobertura da Defensoria em todas as suas comarcas: Acre, Alagoas, Amapá, Distrito Federal, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Rondônia, Roraima e Tocantins.
O mesmo pode ser dito de Amazonas e Piauí, se considerada a assistência jurídica parcial. No primeiro, apenas 3,3% das comarcas têm esse tipo de atendimento. Já no segundo, mais da metade (50,8%) é atendida dessa forma.
Goiás tem o menor percentual de habitantes potencialmente atendidos pela Defensoria: apenas 40,4% da população. É o único estado em que essa cobertura populacional fica abaixo de 50%.
Na Justiça Federal, somente 78 das 276 subseções judiciárias são atendidas de forma regular pela DPU. Isso representa 28,2% do total. Outras 33 (12%) contam com esses serviços de forma parcial ou excepcional. Todas as regiões têm um percentual baixo de cobertura.
A pesquisa indica que aproximadamente 133,8 milhões de habitantes — ou seja, 65,9% da população do país — têm potencial acesso aos serviços da DPU, somando as assistências regular e parcial.
Por outo lado, 69,3 milhões não possuem esse acesso, dos quais 62,2 milhões são vulneráveis. Assim, um terço (34,1%) da população brasileira está impedida de utilizar os serviços da DPU.
Órgão escanteado
De acordo com Maurilio Casas Maia — defensor público no Amazonas, doutor em Direito Constitucional e pós-doutor em Direito Processual —, embora a EC 80/2014 tenha estipulado um prazo, a redação original da Constituição já determinava a presença da Defensoria em todas as comarcas, pois dizia que elas deveriam ser fundadas já com um órgão julgador, um órgão do Ministério Público e um defensor público.
O Brasil já descumpriu o prazo da emenda constitucional, mas Maia diz que ainda é possível atingir o seu objetivo, “com um mínimo de organização”. Segundo ele, ainda entre 2014 e 2022, “bastaria um mínimo de vontade política” para aumentar os investimentos na Defensoria pouco a pouco.
O defensor destaca que o orçamento da Defensoria é muito inferior ao do Judiciário e ao do Ministério Público. A estruturação dessas instituições, na sua visão, demonstra a viabilidade da correção do problema da Defensoria.
Conforme a Pesquisa Nacional, todo o orçamento aprovado para a Defensoria Pública em 2024 corresponde a 0,24% do total das respectivas unidades federativas. Além disso, os valores destinados ao MP (cerca de R$ 35,3 bilhões) são quase quatro vezes (272,6%) maiores do que os destinados à Defensoria (R$ 9,5 bilhões). Já o montante do Judiciário é mais de 15 vezes (1.437,7%) superior.
“É chegado o momento de um grande esforço político-jurídico para organização e estruturação das Defensorias no Brasil”, defende Maia. Ele ressalta a “invisibilidade” do público representado por defensores públicos — embora seja uma maioria em termos populacionais.
Outra sugestão do defensor é a criação de um Conselho Nacional da Defensoria Pública (CNDP), “com a finalidade de articular, nacionalmente, a política de acesso à Justiça dos necessitados e promoção dos direitos humanos pela instituição, evitando ingerência de outras instituições que, muitas vezes, irão tensionar dia a dia contra os interesses do público protegido pela Defensoria”.
Jorge Bheron Rocha, professor e doutor em Direito Constitucional, afirma que a Emenda Constitucional do Teto dos Gastos Públicos, de 2016, restringiu o crescimento orçamentário “de forma desproporcional para instituições jovens ainda em processo de estruturação, como a Defensoria Pública”. Mesmo assim, ele acredita que é possível colocar defensores em todas as comarcas, desde que a questão seja tratada com urgência.
“A Constituição trata a Defensoria como prioridade e impõe sua universalização, de forma que a limitação orçamentária não pode justificar a inércia estatal, o que exige esforços coordenados de mobilização social e diálogo com os demais poderes”, assinala. A melhora no cenário, segundo ele, envolve uma “pressão por uma maior alocação de recursos” e “a sensibilização dos gestores públicos sobre a importância da Defensoria para a justiça social”.
Defensor público do estado do Rio de Janeiro e doutor em Direito Processual, Franklyn Roger Alves Silva concorda que a organização financeira dos estados, do DF e da União pode ajudar na expansão da Defensoria: “Com um pouco de esforço e boa vontade política é plenamente viável assegurar o serviço de assistência jurídica estatal de forma integral em todo o território brasileiro.”
Ele ressalta que o número de defensores públicos no país mais do que dobrou entre 2003 e 2023: passou de 3.190 para 7.413, um aumento de 132,4%. Mas o crescimento “ainda é tímido”, especialmente diante do abismo entre o orçamento da Defensoria e os de Judiciário e MP.
De acordo com Alves Silva, o incremento orçamentário da Defensoria deve ser focado não só na ampliação de cargos, mas também em obras de infraestrutura para construção das sedes de atendimento e na instalação de sistemas informáticos.
Renata Martins de Souza, defensora pública de Minas Gerais e doutora em Direito Público, também considera plenamente possível o cumprimento do objetivo da EC 80/2014 a partir de um investimento público maior. Ela destaca que o quadro de membros da Defensoria é bem menor do que os números do MP (12.915 integrantes) e do Judiciário (18.091).
Isso depende de “apoio e sensibilidade dos governos dos estados e da própria União”. Mas também exige “maior mobilização popular”, pois a situação atual “restringe, de forma considerável, o acesso à Justiça por parte dos mais vulnerabilizados”, o que configura um “grave déficit democrático”.
Solução suprema?
A opção de contestar o atraso no Supremo Tribunal Federal não é a preferida dos especialistas. Rocha sugere, inicialmente, “envidar estratégias institucionais junto aos Poderes Executivo e Legislativo”.
Em uma etapa de diálogo e negociação, “poderia ser requerida a participação do STF por meio do Centro de Mediação e Conciliação (CMC), responsável por buscar a solução de conflitos pré-processuais”. Mas uma eventual ação direta de inconstitucionalidade por omissão (ADO) “só deve ser ajuizada após o esgotamento dessas tratativas”.
Maia lembra que o Supremo “não manifestou boa vontade com o tema” em 2020, quando negou a omissão do poder público em implementar a DPU de forma integral, devido à dificuldade de gestão de recursos escassos (ADO 2). Portanto, ele acredita que “vale apostar” na união entre governantes e legisladores para solucionar o problema.
Alves Silva reforça que a perspectiva de êxito no STF é baixa. Ele recorda o julgamento da corte sobre uma lei complementar de São Paulo que determinou a destinação de 40% do Fundo de Assistência Judiciária — responsável por 90% do orçamento da Defensoria paulista — para o pagamento de advogados dativos.
O Plenário formou maioria em 2021 para invalidar a norma, mas, no último mês de dezembro, o ministro Dias Toffoli deu sinal de que pode reconsiderar seu voto, pois pediu vista e suspendeu a análise.
“Creio que o caminho ainda não deva ser pela esfera judicial, mas envolvendo um trabalho político das instâncias gestoras das Defensorias Públicas perante o Poder Legislativo e o Executivo no debate orçamentário, sempre com dados empíricos”, diz o defensor do Rio, que também defende a criação do CNDP.
Apesar do precedente de 2020 desfavorável à Defensoria, Martins de Souza lembra que o Supremo ordenou, em 2012, a implementação da Defensoria Pública em Santa Catarina — único estado que ainda resistia a implantar o modelo constitucional e usava apenas a advocacia dativa.
Já Diogo Esteves, defensor público do Rio e coordenador geral da Pesquisa Nacional da Defensoria, registra que Santa Catarina “parou no meio do caminho”, pois contratou poucos defensores. Atualmente, duas ADIs em trâmite no STF discutem o cenário de continuidade da advocacia dativa no estado.
Tais ações foram ajuizadas em 2018 (ADI 5.998) e 2020 (ADI 6.335), mas ainda não foram julgadas. Por isso, Esteves não considera que a estratégia mais adequada seja mover uma ação sobre o mesmo problema a nível nacional.
Na sua visão, a estratégia mais efetiva é a adotada por Rondônia, que ele classifica como um modelo a ser seguido. O estado fez um estudo próprio e constatou que o gasto com advocacia dativa era maior do que o necessário para colocar defensores em todas as comarcas.
Após uma reunião entre o governo estadual, o defensor público-geral, o presidente do Tribunal de Justiça, o presidente da seccional da OAB e o presidente do Tribunal de Contas do estado, ficou decidido, em 2021, que os valores seriam revertidos para a Defensoria. Hoje, essa despesa foi praticamente zerada.
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