Opinião

O 'mercado da deficiência' e a ameaça à educação inclusiva

Autores

  • é vice-presidente da Associação Nacional para Inclusão de Pessoas Autistas graduando da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) com dupla titulação com a Université de Lyon.

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  • é autista doutorando (bolsista Capes de Excelência Acadêmica) e mestre em Educação pela Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR) presidente da Associação Nacional para Inclusão das Pessoas Autistas (Autistas Brasil) único pesquisador brasileiro membro do Stanford Neurodiversity Project onde atua nos Comitês de Inclusão no Ensino Superior e Inclusão no Mercado de Trabalho e membro do Grupo de Estudos e Pesquisas Paideia da Faculdade de Educação da Unicamp e do Comitê dos Direitos de Pessoas com Deficiência no âmbito Judicial do Conselho Nacional de Justiça.

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19 de fevereiro de 2025, 6h08

A educação inclusiva no Brasil enfrenta um momento decisivo. Entre discursos de progresso e medidas retrógradas, a política educacional se vê pressionada por interesses mercadológicos que, sob o pretexto de ampliar o atendimento a estudantes com deficiência, acabam por reforçar a segregação escolar. O que deveria ser um avanço se converte em um atraso mascarado de assistencialismo.

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Direito do autista

Estamos diante de um cenário em que decisões políticas abrem espaço para a fragmentação do ensino. Exemplos claros disso são o Decreto Estadual nº 68.415/2024, de São Paulo, subproduto do Projeto de Lei nº 454/2023 da deputado estadual Andrea Werner, que permite a presença de atendentes pessoais em sala de aula, do Projeto de Lei 3.035/2020, do deputado federal Alexandre Frota e hoje defendido pelo deputado federal Duarte Jr., que propõe diretrizes para a educação especial de pessoas com Transtorno do Espectro Autista (TEA), e do fracassado Parecer 50/2023 do Conselho Nacional de Educação. Medidas que, em vez de fortalecerem a educação inclusiva, criam um modelo que favorece a terceirização de serviços e desloca a responsabilidade da escola para agentes externos, dificultando a construção de um ensino verdadeiramente acessível e igualitário.

A base legal da educação inclusiva no Brasil não é frágil. A Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva, de 2008, e a Lei Brasileira de Inclusão garantem que todas as crianças tenham direito à educação em escolas comuns. No entanto, o avanço dessas leis vem sendo minado por interesses que lucram com a segmentação educacional, transformando o direito à educação em um nicho de mercado.

Armadilha da terceirização

Nos bastidores das recentes políticas educacionais, percebe-se uma estratégia bem definida: esvaziar a escola de sua função de formação integral e pulverizar o ensino em soluções fragmentadas. O decreto paulista que permite atendentes pessoais em sala de aula exemplifica bem essa lógica. Em um primeiro olhar, pode parecer uma medida inclusiva. No entanto, ao transferir para um profissional terceirizado a responsabilidade de mediar a aprendizagem do aluno com deficiência, o que se institui é uma barreira estrutural: o estudante passa a ser visto como alguém que precisa de suporte individualizado contínuo, em vez de ser considerado parte do ambiente escolar de forma plena e participativa.

A educação não pode ser reduzida a um serviço prestado por diferentes agentes que atuam de maneira desconexa. Quando se introduz um acompanhante pessoal sem uma articulação clara com o projeto pedagógico, cria-se um modelo no qual a aprendizagem cede espaço para um sistema assistencialista que infantiliza e tutela o estudante com deficiência, consolidando um ciclo de dependência, que se opõe à necessária emancipação dos estudantes.

PL 3.035 e a inconstitucionalidade disfarçada

O PL 3.035/2020 surge como outro marco desse movimento que desvirtua a educação inclusiva. Sob o discurso de aprimoramento das diretrizes educacionais para pessoas com autismo, o projeto, na prática, reforça um modelo clínico e assistencialista dentro das escolas, contrariando o modelo social da deficiência, consagrado pela Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (CDPD), que possui status constitucional no Brasil.

A exigência de laudos médicos para acesso a determinados suportes educacionais, a presença compulsória de equipes multidisciplinares terapêuticas e a reintrodução de turmas reduzidas para alunos com deficiência são medidas que, longe de promoverem a inclusão, instauram novos mecanismos de segregação. Essa fragmentação viola o artigo 24 da CDPD e a Constituição Federal, que garantem a educação inclusiva como um direito fundamental.

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Estudos acadêmicos abrangentes e experiências internacionais são categóricos ao mostrar que a segregação escolar compromete não apenas o desenvolvimento acadêmico dos alunos com deficiência, mas também sua socialização e autonomia. Além disso, reforça estereótipos de incapacidade e dependência, legitimando práticas que já deveriam ter sido superadas há décadas.

Escola não é um centro terapêutico

Um dos aspectos mais preocupantes desse novo modelo de ensino segregado é a tentativa de transformar a escola em um espaço de reabilitação compulsória. Algumas abordagens terapêuticas, como a Análise do Comportamento Aplicada (ABA), são promovidas por grupos que defendem um ensino voltado para a modificação comportamental, desconsiderando que a educação deve priorizar o pensamento crítico, a autonomia e a participação social.

A Constituição Federal e a CDPD estabelecem que a educação deve ser inclusiva e garantir o pleno desenvolvimento dos estudantes. A imposição de abordagens terapêuticas obrigatórias dentro do ambiente escolar fere a dignidade dos alunos com deficiência, restringindo seu direito à educação. O espaço da escola não pode ser transformado em um prolongamento de tratamentos médicos, pois isso subverte sua finalidade e reduz as oportunidades de aprendizagem real.

Resposta da escola e resistência necessária

Os ataques à educação inclusiva não partem das famílias. 98% dos estudantes público-alvo da educação especial estão matriculados em escolas comuns. Os pais e responsáveis querem a inclusão, mas enfrentam um sistema que, em vez de preparar as escolas para receberem seus filhos, cria obstáculos burocráticos e políticos para justificar o desmonte da inclusão escolar.

A formação docente é um dos pontos centrais dessa crise. A maioria dos professores ainda é treinada em um modelo tradicional que enxerga os alunos de forma homogênea. É urgente uma reformulação da formação docente, incorporando práticas pedagógicas inclusivas, metodologias ativas e o uso de tecnologia assistiva. A escola precisa ser o lugar onde se aprende junto, e não um espaço onde se classifica quem pode ou não aprender.

Conclusão

A disputa em torno da educação inclusiva no Brasil é, na essência, um embate entre o direito e o mercado. De um lado, há o compromisso com uma escola plural, que respeita a singularidade de cada estudante e garante oportunidades iguais de aprendizagem. Do outro, um sistema que lucra com a exclusão, promovendo serviços paralelos que transformam o direito à educação em mercadoria.

A sociedade civil, pais, educadores e pesquisadores precisam reagir com veemência contra tentativas de retrocesso que se apresentam como avanços. A inclusão escolar não pode ser negociada. A educação não é um privilégio, nem um favor. É um direito fundamental e inegociável. O que essas normas e projetos de lei promovem não é a inclusão, mas a expansão de um mercado que transforma o direito à educação em um negócio altamente lucrativo. Cada avanço aparente esconde um passo atrás, consolidando interesses privados à custa da segregação e da fragilização do ensino público. Não se trata de aprimoramento ou eficiência, mas da destruição de um direito conquistado. É hora de expor quem realmente defende a educação e quem apenas lucra com sua mercantilização.

Autores

  • é diretor Executivo da ConsulTEA, formado pela Faculdade de Direito da USP (Universidade de São Paulo), com dupla titulação com a Université de Lyon, conselheiro jurídico da Frente Parlamentar pela Neurodiversidade e membro do Projeto de Neurodiversidade da Universidade de Stanford (Stanford Neurodiversity Project), atuando nas áreas de Direitos Humanos e Neurodiversidade no Trabalho.

  • é autista, doutorando (bolsista Capes de Excelência Acadêmica) e mestre em Educação pela Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR), presidente da Associação Nacional para Inclusão das Pessoas Autistas (Autistas Brasil), membro do Stanford Neurodiversity Project, onde atua nos Comitês de Inclusão no Ensino Superior e Inclusão no Mercado de Trabalho e membro do Grupo de Estudos e Pesquisas Paideia da Faculdade de Educação da Unicamp e do Comitê dos Direitos de Pessoas com Deficiência no âmbito Judicial do Conselho Nacional de Justiça.

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