A ilegal tributação pelo IR das transmissões de quotas de fundos de investimento em sucessão causa mortis
19 de fevereiro de 2025, 8h00
“As coisas tangíveis
tornam-se insensíveis
à palma da mão
Mas as coisas findas
muito mais que lindas
essas ficarão”
(Memória, Carlos Drummond de Andrade)
Em 28 de janeiro de 2025 encerrou-se um ciclo na minha história pessoal com a dolorida despedida de uma companheira de 28 anos, minha mulher, mãe dos meus filhos. Cristyane agora é uma ideia, memória de momentos felizes, que se perpetuará em nossas vidas e de nossos descendentes.
A escolha do tema dessa coluna tem a ver com questões tributárias decorrentes da sucessão causa mortis. Mas tem também, e principalmente, a ver com a necessidade de o Fisco tratar os contribuinte com honestidade, transparência e cuidado.
Honestidade, transparência e cuidado que nossa família recebeu nos momentos finais da vida vitoriosa de Cristyane, especialmente dos médicos Germana Hunes e Alexandre Paladino a quem agradeço nesse espaço. Honestidade para dizer a verdade; transparência para dizer o que se pode esperar; e cuidado para confortar com dignidade a dura despedida.
A questão tributária que trataremos está na renhida pretensão de aplicar um ato declaratório de 2007 em matéria de CPMF para forçar o “resgate” — fato gerador do IRRF sobre rendimentos de aplicações financeiras — quando da transmissão de quotas de fundos de investimento em decorrência de sucessão hereditária.
Trata-se de pretensão sem honestidade, porque mistura “alhos com bugalhos”, CPMF com IRRF, apenas para saciar sua voracidade arrecadatória; sem transparência, porque se dirige obliquamente às instituições administradoras que, ameaçadas pela responsabilidade tributária, se veem obrigadas a “forçar” a realização de um fato gerador não desejado pelos sucessores; sem cuidado porque descumpre a lei tributária, com solene desrespeito a direitos de contribuintes justamente quando vivenciam momentos de fragilidade emocional.
É o que a seguir se verá.
a) Natureza jurídica do resgate de quotas de fundos de investimento
Os fundos de investimentos consistem em uma comunhão de recursos, constituído sob a forma de condomínio de natureza especial, destinado à aplicação em ativos financeiros, bens e direitos, coma regra específica aplicável à categoria do fundo” (artigo 4º da Resolução CVM 175/2022) podendo ser organizados sob a forma aberta ou fechada (artigo 5º, § 7º).
Nos fundos abertos, “o regulamento admite que as cotas sejam resgatadas”, sem qualquer restrição. Já a “transferência” de cotas é expressamente vedada, salvo nas hipóteses elencadas pela norma, entre as quais se encontra a “sucessão universal” (artigo 16, IV).
É evidente, portanto, que o “resgate” é tratado pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM) como evento absolutamente distinto da “transferência” operada em razão do falecimento do cotista.
O resgate, por definição, consiste na “retirada do dinheiro que está aplicado em algum investimento” [1]. A doutrina especializada assim explica essa figura, confira-se:
“Ainda, para fins do presente estudo, importa descrever as formas pelas quais os investidores podem vir a ser remunerados na qualidade de cotistas de um fundo de investimento: (i) resgate: é a conversão das cotas detidas pelo cotista em pecúnia, com redução do número de cotas emitidas (nos fundos fechados as cotas somente são resgatadas ao término do prazo de duração do fundo); (…)” [2] (grifou-se)
O evento tributável pela legislação (resgate) está intimamente atrelado à entrega de recursos líquidos para os cotistas — uma clara manifestação de capacidade contributiva — hipótese que não se confunde com transferência da titularidade das cotas por ocasião da sucessão universal causa mortis, que implica em mera atualização cadastral, sendo mantidos os recursos investidos, sem qualquer disponibilidade de renda para os sucessores.
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Dessa forma, ocorrido o falecimento do investidor quotista, cabe ao administrador do fundo realizar a mera atualização cadastral, sem qualquer desconto de imposto de renda, para fazer constar as informações pessoais dos novos quotistas, seus herdeiros.
b) Violação do princípio da legalidade
O artigo 65, §2º da Lei 8.981/95 dispõe que o fato gerador do IRRF ocorre quando do resgate das cotas, devendo o tributo ser retido e recolhido pelo seu administrador.
A legislação do IRRF não atribui qualquer efeito fiscal à transferência de titularidade de cotas de fundos de investimento na hipótese de sucessão universal causa mortis. Até porque, tal transmissão não se equipara, em nenhuma hipótese, ao evento previsto em lei (resgate) como fato gerador do tributo.
Surpreendentemente, a Reeita editou o ADI 13/2007, por meio do qual inovou, não se bastando em interpretar a questão em matéria de CPMF, criando novo fato gerador do IRRF no seu artigo 2º. Veja-se:
“Art. 1º São passíveis de incidência da Contribuição Provisória sobre Movimentação ou Transmissão de Valores e de Créditos e Direitos de Natureza Financeira (CPMF) as transferências financeiras, realizadas pelas instituições financeiras, decorrentes de:
I – incorporação, cisão ou fusão;
II – sucessão “causa mortis”
Art. 2º As operações de que tratam o art. 1º, quando referentes a aplicações financeiras, sujeitam-se inclusive ao pagamento do imposto de renda na fonte e do imposto sobre operações de crédito, câmbio e seguro, ou relativas a título ou valores mobiliários, quando for o caso.” (grifou-se)
Em outras palavras, a Receita ampliou o critério material da hipótese de incidência do IRRF, passando a exigi-lo nas transferências decorrentes de sucessão causa mortis.
Sete anos depois, a Coordenação-Geral de Tributação da Receita confirmou esse entendimento ilegal através da Solução de Consulta (SC) Cosit nº 383/2014. Naquela ocasião, determinada administradora de fundos de investimento de renda fixa apresentou dúvidas quanto à necessidade (ou não) de reter o imposto de renda nas “situações em que o cliente pessoa física recebe quotas dos comentados fundos de investimento em razão de sucessão causa mortis, legítima ou testamentária.”.
Em resposta à consulta, entendeu-se que a transmissão de propriedade configuraria resgate para fins de incidência do IRRF:
“IMPOSTO SOBRE A RENDA RETIDO NA FONTE – IRRF APLICAÇÃO FINANCEIRA DE RENDA FIXA. TRANSMISSÃO CAUSA MORTIS. INCIDÊNCIA. Aberta a sucessão hereditária, que transmite, desde logo, a herança aos herdeiros, o atendimento ao formal de partilha impõe o resgate ou liquidação da aplicação financeira de renda fixa em nome do titular da aplicação, sendo vedada a transferência meramente escritural da titularidade aos herdeiros, para fins de incidência do IRRF. (…)” (grifos do colunista)
Essa interpretação, contudo, é ilegal e inconstitucional, pois viola de uma só vez a legislação do IRRF, bem como o princípio da legalidade estrita em matéria tributária.
De fato, a prevalecer o entendimento da Receita Federal, isso permitiria que atos infralegais ampliassem a hipótese de incidência do imposto de renda estabelecida em lei, de forma a abranger todo e qualquer evento no conceito de “resgate”, inclusive a transferência de cotas por sucessão universal causa mortis.
É basilar que, em matéria tributária, o princípio da legalidade consagrado na Constituição exige que todos os elementos que constituem a essência do tributo estejam previstos em lei, elementos esses indicados na literalidade do artigo 97 do CTN.
Tanto é equivocado o entendimento da Receita que, em 2021, a própria Coordenação-Geral de Tributação reviu o seu posicionamento e concluiu que a “doação em adiantamento de legítima de cotas de fundo fechado de investimento em ações não resulta em resgate das referidas cotas” (Solução de Consulta Cosit nº 98, de 21/6/2021).
Ora, não há razão para fazer distinções de tratamento de uma transmissão por doação em adiantamento da legítima, que é mera antecipação de uma sucessão causa mortis, de uma transmissão ocorrida em decorrência da sucessão causa mortis propriamente dita. Em nenhuma das transmissões opera-se o resgate das cotas.
c) A questão na jurisprudência dos tribunais
A questão da ilegalidade da pretensão de tributar o resgate de aplicações em fundos de investimento na sucessão causa mortis foi recentemente reconhecida pelo TRF-2, em acórdão assim ementado:
“TRIBUTÁRIO. IMPOSTO DE RENDA. IRPF. TRANSFERÊNCIA DE TITULARIDADE DE COTAS DOS FUNDOS DE INVESTIMENTOS. PRINCÍPIO DA LEGALIDADE ESTRITA. TRIBUTAÇÃO NO MOMENTO DO RESGATE DAS QUOTAS. ADI SRF 13/07. INEXISTÊNCIA, A PRINCÍPIO, DO FATO GERADOR DO IMPOSTO DE RENDA QUANDO DA TRANSFERÊNCIA.
1. Os Impetrantes questionam a possibilidade de retenção e recolhimento de imposto de renda respaldado no Ato Declaratório Interpretativo nº 13/2007, bem como na Solução de Consulta COSIT 383/2014, ambos editados pela Secretaria da Receita Federal do Brasil, que concluíram pela incidência do referido tributo momento da transmissão de aplicações financeiras decorrente da sucessão causa (…0
4. Ao assim agir, o Ato Declaratório, como fonte secundária, criou uma hipótese de incidência diversa daquela previstas em lei, além de ter indevidamente alargado a hipótese de incidência da norma existente para abarcar uma situação fática não prevista especificamente na lei.
5. A jurisprudência do C. Superior Tribunal de Justiça já ponderou que “Por força do princípio da legalidade estrita, corolário da tipicidade fechada, própria do Direito Tributário, apenas a lei em sentido formal pode estabelecer os elementos estruturais ou essenciais dos tributos, com exceção dos casos previstos expressamente no próprio CTN.” (STJ, REsp 1110315/ RJ, Segunda Turma, Relatora Ministra Eliana Calmon, DJe 27.04.2011).
6. Conclui-se que a transferência da titularidade não importou em fato gerador de incidência do IRRF, visto que não houve situação de acréscimo, que, nos termos da legislação de regência, para ocorrer a incidência do IRRF, tal deve se dar no momento do resgate, conforme estabelece o art. 808 do Regulamento do Imposto de Renda/2018 (Decreto nº 9.580/2018 – RIR/2018),
(….)” (Apelação/Remessa Necessária 5049436-62.2023.4.02.5101/RJ, rel. juiza federal Sandra Menim Chalu Barbosa de Campos)
A questão de direito foi examinada em profundidade pelo desembargador Marcus Abraham em seu voto-vista, do qual se transcreve a seguinte passagem pela sua objetividade e clareza:
“No caso em tela, a transferência de titularidade foi em decorrência de sucessão “causa mortis”. Neste momento, não há a configuração de acréscimo a provocar a incidência do imposto de renda, ficando sua incidência restrita ao momento do resgate propriamente, agora, sob a nova titularidade, quando efetivamente se configura o acréscimo, exatamente como pontuou a em. relatora.
Consoante já informado, o fato gerador do Imposto de Renda é a aquisição da disponibilidade econômica ou jurídica de rendas e proventos de qualquer natureza, não se podendo alargar o termo “resgate” para abarcar o caso em análise. No caso, o herdeiro continua nas relações patrimoniais do sucedido, substituindo-o em suas relações jurídicas, não se podendo afirmar que, no momento da sucessão causa mortis, em tese, haveria um resgate, tratando-se somente da continuidade no exercício de direitos”
Também no âmbito do TRF-3 a jurisprudência tem sido uníssona em sentido favorável às pretensões dos contribuintes, com se lê na ementa abaixo transcrita:
“TRIBUTÁRIO. PROCESSUAL CIVIL. IR. TRANSFERÊNCIA DE TITULARIDADE DE COTAS. SUCESSÃO CAUSA MORTIS. ILEGALIDADE ADI 13/07.
(…) Fato é que os dispositivos legais transcritos deixam claro que os rendimentos auferidos pelos investidores estarão sujeitos à tributação pelo IRF somente quando do resgate das quotas. (…) Os fundos de investimento abertos, como no caso em análise, são aqueles em que, embora se permita o resgate de quotas a todo tempo, bem como a entrada de novos investidores, não se admite e cessão das quotas, a não ser em casos especiais, como, por exemplo, a sucessão. -Assim, não vejo como se admitir que a sucessão causa mortis seja considerada um resgate para os efeitos de cobrança tributária. -O fato gerador de tributo deve ter seu desenho muito bem delimitado por lei em sentido formal, não se podendo alargar o termo “resgate” para abarcar o caso em análise. No caso de herança, o herdeiro continua nas relações patrimoniais do de cujos, substituindo-o em suas relações jurídicas, não se podendo criar, a princípio, uma ficção jurídica de resgate e recompra. Pode-se dizer que há uma continuidade no exercício de direitos. -O ADI 13, da RFB, de 18 de julho de 2007, porém, deu entendimento diverso, pelo qual também na sucessão causa mortis o IRF seria devido. –O Ato Declaratório, sendo fonte secundária, não tem o condão de criar hipóteses de incidência diversas daquelas previstas em lei. Tampouco deve alargá-las ou diminuí-las, a ponto de alterar o efeito de norma existente. Como o próprio nome indica, este tipo de fonte deve tão-somente buscar tornar a aplicação das normas mais claras. -. (…)” (TRF-3. Apelação nº 0005747-17.2015.4.03.6100, 4ª Turma. Des. rel. Monica Autran Machado Nobre. J. 16.08.2017) (grifou-se)[3]
Reserva-se especial destaque para o recente acórdão doutrinário da 1ª Turma do STJ, da lavra do ministro Gurgel de Faria, que reconheceu a irremediável ilegalidade do ADI/SRFB 13/2007 e rechaçou a assimilação a resgate da transmissão por sucessão causa mortis:
“PROCESSUAL CIVIL. TRIBUTÁRIO. NEGATIVA DE PRESTAÇÃO JURISDICIONAL. INEXISTÊNCIA. FUNDOS DE INVESTIMENTO. QUOTA. TITULARIDADE. TRANSFERÊNCIA. SUCESSÃO CAUSA MORTIS. VALOR DECLARADO NA ÚLTIMA DIRPF. IMPOSTO DE RENDA DA PESSOA FÍSICA. RETENÇÃO NA FONTE. NÃO INCIDÊNCIA. (…)
5. Em regra, nos fundos de investimento, constituídos sob qualquer forma, a base de cálculo do IRRF, devida por ocasião da liquidação, é composta pela diferença positiva entre o valor do resgate e o da aquisição das quotas, nos termos do 28, II, e § 7º, da Lei n. 9.532/1997.
6. Não se aplica à presente hipótese o disposto no 65 da Lei n. 9.532/1997, que trata da incidência do IRRF sobre o rendimento produzido por aplicação financeira de renda fixa, e que prevê, em seu § 2º, que “a alienação compreende qualquer forma de transmissão da propriedade, bem como a liquidação, resgate, cessão ou repactuação do título ou aplicação”. Além de se referir a fundo de renda fixa, e não de investimento, a alienação, como ato de vontade, não abrange a transferência causa mortis, disciplinada de modo específico no art. 23 da Lei n. 9.532/1997.
7. Ilegalidade do Ato Declaratório Interpretativo ADI/SRFB n. 13/2007 na parte em que prevê, sem amparo na lei, a incidência de IRRF para casos de transmissão de aplicações financeiras por sucessão hereditária, sem vincular à existência de ganho de
8. Não incide IRRF sobre a transferência de fundos de investimentos por sucessão causa mortis quando, sem pleitear resgate, os herdeiros formulam apenas requerimento de transmissão das quotas, a fim de continuar na relação iniciada pelo de cujus com a administradora, com opção pela manutenção dos valores declarados na última DIRPF apresentada pelo falecido. (…)” (REsp nº 1.968.695/SP, relator ministro Gurgel de Faria, 1ª Turma, julgado em 13/8/2024, DJe de 29/8/2024.)
Assim, espera-se que diante da evidente ilegalidade do ADI/SRFB nº 13/2007, já reconhecida pelos tribunais, a Receita reveja seu posicionamento desrespeitoso aos direitos dos contribuintes, e desobrigue as gestoras de fundos de investimento a forçarem um indesejado resgate de quotas de fundos de investimento como condição para sua regular transmissão aos herdeiros.
[2] BRAGA, Guilherme Froner Cavalcante. Aplicação dos Tratados para evitar a Dupla Tributação aos Fundos de Investimento Constituídos no Brasil. Revista Direito Tributário Internacional Atual nº 06p.168-196. São Paulo: IBDT, 2º semestre de 2019.
[3] No mesmo sentido, TRF-3. Apelação nº 0026379-64.2015.4.03.6100, 6ª Turma. Des. Rel. Johonsom di Salvo. J. 20.07.2017
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