Opinião

Dispensa de garantia no contexto de voto de qualidade deve se aplicar de forma retroativa

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16 de fevereiro de 2025, 6h30

O mês de janeiro de 2025 veio acompanhado com a tão esperada regulamentação do artigo 4º da Lei nº 14.689/23, a Portaria PGFN nº 95/2025, que, em uma espécie de solução salomônica para o polêmico impasse relativo aos efeitos dos julgamentos empatados perante o Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), determinou que os créditos tributários federais lançados a partir de julgamentos encerrados por voto de qualidade não precisarão estar garantidos para poderem ser discutidos por meio de embargos à execução, desde que o contribuinte comprove sua capacidade de pagamento e tenha a regularidade fiscal comprovada.

André Corrêa/Agência Senado

A medida, que se mostra benéfica por conferir um voto de confiança ao “bom pagador” de tributos, já que lhe dispensa de arcar com quantias milionárias mensalmente para manutenção de garantias em execuções fiscais, certamente é um ponto positivo em vários aspectos e deve ser elogiada.

Juridicamente, privilegia o princípio do acesso à justiça, autorizando que créditos tributários sejam questionados judicialmente sem a necessidade de se manter, caucionada em juízo, a garantia de que o débito será pago em caso de derrota do particular, custo que o contribuinte nem sempre tem condições de arcar.

Acreditamos que a medida pode ser um importante “balão de ensaio” para a dispensa de apresentação de garantias para cenários que irão além daqueles envolvendo o voto de qualidade no Carf. Afinal, sopesando-se o princípio do acesso à justiça contra o privilégio do crédito público, não seria demais concluir que a balança deveria pender mais para o primeiro do que para o segundo.

Já economicamente, a medida em muito pouco afetará o dia a dia do erário, já que, na prática, os “bons pagadores” já gozavam de privilégio perante as seguradoras e, por isso, apresentavam apólices de seguro como garantia, cujos valores segurados não ficam à disposição da União enquanto o débito é discutido judicialmente.

Na verdade, a dispensa de garantia nos moldes pensados pelo legislador poderá até contribuir para a arrecadação, já que, para manter o benefício disciplinado na Portaria PGFN nº 95/2025, o contribuinte deverá manter a sua alta capacidade de pagamento e a sua regularidade fiscal.

Por fim, socialmente, a medida representa mais um passo importante na melhora da relação Fisco x contribuinte, conferindo um voto de confiança que o empresariado brasileiro não discute judicialmente os lançamentos tributários para apenas postergar o seu pagamento, mas sim porque acreditam em seu direito.

Além disso, mostra-se totalmente antenada com a reforma tributária, notadamente em razão da inclusão do princípio da cooperação no âmbito do Sistema Tributário Nacional (artigo 145, § 3º, da Constituição).

Mas nada é tão bom que não possa ser melhorado, certo? Especialmente quando se está discutindo o direito tributário e as garantias do contribuinte.

Como sabemos, o princípio da isonomia tributária, na dicção do texto constitucional, consiste na vedação ao tratamento desigual entre contribuintes que se encontrem em situação equivalente.

Assim, ao avaliarmos a regulamentação do artigo 4ª da Lei nº 14.689/23 pela Portaria PGFN nº 95/2025 à luz do princípio da isonomia tributária, não há como não se chegar ao seguinte questionamento: por que apenas os contribuintes que tiveram seus créditos definitivamente lançados (sob a sistemática do voto de qualidade) a partir da publicação da Portaria poderão discutir seus débitos sem a necessidade de apresentação de garantia?

Ora, não nos parece que seria alargar demasiadamente o princípio da isonomia tributária enquadrar como “situações equivalentes” o contribuinte que teve seu crédito lançado e confirmado por voto de qualidade pelo Carf no ano de 2021 e o contribuinte que teve o seu crédito lançado e confirmado por voto de qualidade no Carf no ano de 2025. Em ambos os casos, os particulares receberam um auto de infração da Receita Federal, realizaram a sua impugnação administrativa e tiveram sua defesa julgada pelo mesmo órgão julgador, tendo obtido como resultado um empate, resolvido pelo voto de qualidade.

Spacca

Assim, cabe a indagação: em que aspecto o fator tempo, no exemplo acima, colocaria esses dois contribuintes em situações não equivalentes? A única resposta que nos parece válida seria se, no interregno, o processo administrativo tributário de lançamento tivesse sido radicalmente alterado, com até mesmo a criação de um outro órgão julgador.

E se a situação anterior já seria facilmente enquadrada como equivalente, imagine-se o cenário em que o voto de qualidade foi proferido no Carf já após a publicação do artigo 4º da Lei º 14.689/23, porém antes da sua regulamentação pela Portaria PGFN nº 95/2025. Nesse caso, a equivalência de situações necessária a atrair a incidência do princípio da isonomia nos soa ainda mais evidente, pois todo o cenário legal (em sentido formal) é o mesmo.

Por isso, acreditamos que todos os contribuintes que tiveram seus créditos lançados de forma definitiva após julgamento desempatado pelo voto de qualidade no Carf poderão ingressar com o requerimento de dispensa de garantia de que trata o artigo 4º da Lei nº 14.689/23, cujo deferimento será mandatório caso o particular cumpra os requisitos formais previstos em lei (como visto, capacidade de pagamento e regularidade fiscal).

Destaque-se, por oportuno, que a aplicação retroativa da solução instituída pela Lei nº 14.689/23 sequer poderia ser configurada como uma inovação, já que, com relação ao dispositivo que exclui a multa de ofício nos casos de julgamento desempatado pelo voto de qualidade no Carf, a própria legislação, no artigo 15, determina a sua aplicação para todo e qualquer débito que ainda esteja em discussão judicial, desde que ainda não tenha ocorrido o seu julgamento pelo respectivo Tribunal Regional Federal [1].

Ou seja, em situação muito mais gravosa ao Fisco — seja, a exclusão da multa de ofício da cobrança e, por isso, dispensa de arrecadação —, o legislador autorizou que os efeitos da lei alcançassem débitos muito anteriores à sua promulgação, de modo que a mesma lógica deve se aplicar para a situação da necessidade de apresentação de garantia.

 


[1] Aliás, sobre a eleição do julgamento do TRF como marco processual para fins de retroatividade da lei, devemos lembrar a ótima ponderação da prof. Thaís Laurentiis em texto publicado nesse Conjur: “De outro lado, a limitação em relação ao momento processual definido pela Lei 14.689/2023 pode ser questionada. Por que a exclusão da penalidade se aplicaria somente antes do julgamento no respectivo TRF? Sabe-se que a problemática do voto de qualidade se dá em casos em que discutem teses jurídicas específicas, e não matéria probatória. Dessarte, dependendo da discussão, ela pode chegar ao STJ ou ao STF para dirimir conflitos sobre a interpretação da legislação federal ou da constitucionalidade da lei, momento em que seria absolutamente compatível com o sistema jurídico a aplicação do artigo §9º-A no artigo 25 no Decreto 70.235/72.”. (aqui)

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