Se pode impugnar, por que não pode apelar? Legitimidade recursal nas prestações de contas eleitorais
14 de fevereiro de 2025, 11h16
Imagine que você é coordenador jurídico da campanha da candidata Maria Santos à prefeitura de uma cidade do interior. Durante a análise das contas de campanha do candidato adversário, João Silva, sua equipe descobre gastos suspeitos com valores do Fundo Especial de Financiamento de Campanha (FEFC). O candidato se autodeclarou pardo e, dias após o final das eleições, fez transferências de recursos do fundo para candidatos autodeclarados brancos. Trata-se de um caso clássico do “branqueamento do Fundo Especial de Financiamento de Campanha” [1].
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Seguindo os procedimentos legais, você apresenta uma impugnação detalhada, mostrando o desvio de recursos do fundo. O juiz eleitoral, contudo, aceita a explicação genérica do candidato de que “houve despesa compartilhada” e aprova suas contas. Quando você tenta recorrer dessa decisão, surge a surpresa: o tribunal não conhece do recurso, alegando que sua coligação “não tem legitimidade” para recorrer, mesmo tendo sido aceita anteriormente para impugnar as mesmas contas.
Este cenário ilustra um dos paradoxos mais intrigantes do Direito Eleitoral brasileiro: partidos e coligações podem apontar irregularidades nas contas de candidatos adversários durante a fase inicial do processo (impugnação), mas não podem recorrer se discordarem da decisão que julga essas mesmas contas. É como se você pudesse denunciar um crime, mas ficasse impedido de questionar a absolvição do acusado.
A importância deste tema cresceu exponencialmente desde 2017, quando foi criado o FEFC. Com bilhões de reais em dinheiro público financiando as campanhas, a fiscalização das prestações de contas deixou de ser mera formalidade burocrática. Hoje, uma prestação de contas reprovada pode resultar na devolução de recursos ao erário, suspensão de repasses futuros e até mesmo comprometer a sobrevivência financeira de um partido.
Para explorar esse paradoxo jurídico, estruturaremos o artigo da seguinte forma:
1. “Do simbólico ao substancial”: Como as prestações de contas evoluíram de ritual burocrático para instrumento efetivo de controle
2. “O paradoxo da legitimidade”: Por que existe essa distinção entre poder impugnar e não poder recorrer?
3. “Dinheiro público, interesse privado?”: Como o financiamento público mudou a natureza do interesse dos adversários na fiscalização
4. “Caminhos para mudança”: Propostas para resolver este paradoxo
Do simbólico ao substancial: a metamorfose das prestações de contas eleitorais
Imagine um jogo de futebol em que as faltas são marcadas, mas não há cartões nem punições — apenas um registro burocrático no relatório do árbitro. Era mais ou menos assim que funcionavam as prestações de contas eleitorais até poucos anos atrás. Um candidato podia ter suas contas reprovadas e, ainda assim, assumir o cargo e continuar recebendo recursos públicos normalmente. A única consequência real era uma possível dificuldade em obter a “certidão de quitação eleitoral” – um documento que poucos eleitores sequer sabem que existe.
Para entender como chegamos ao cenário atual, precisamos voltar a 2015. Naquele ano, o Supremo Tribunal Federal proibiu doações empresariais para campanhas eleitorais. Foi um divisor de águas: sem poder contar com o dinheiro de empresas, os partidos precisavam de uma nova fonte de financiamento. A solução veio em 2017, com a criação do FEFC, popularmente conhecido como “Fundão Eleitoral”.
O volume de dinheiro envolvido é impressionante. Para as eleições municipais de 2024, por exemplo, o FEFC disponibilizou mais de R$ 4,9 bilhões aos partidos. É como se cada um dos 5.570 municípios brasileiros recebesse, em média, quase um milhão de reais só para financiar campanhas. Com tanto dinheiro público em jogo, era natural que as prestações de contas ganhassem dentes mais afiados.
E foi exatamente isso que aconteceu. Hoje, quando um juiz eleitoral reprova as contas de um candidato ou partido, as consequências são muito concretas:
1. Devolução ao Tesouro: Se detectado o uso indevido do FEFC, o candidato deve devolver os valores ao erário. No caso acima, João Silva poderia ser obrigado a restituir os recursos transferidos indevidamente.
2. Suspensão de repasses: Se um partido tiver suas contas reprovadas por irregularidade grave, pode ter suspensos os repasses mensais do Fundo Partidário — sua principal fonte de sustentação financeira.
3. Inelegibilidade prática: Embora a rejeição de contas não gere inelegibilidade direta, a ausência de quitação eleitoral impede candidaturas futuras até a regularização da situação.
Vamos pegar um exemplo real: em 2020, um candidato a deputado estadual em Goiás teve que devolver R$ 277 mil ao Tesouro Nacional porque não conseguiu comprovar adequadamente seus gastos [2]. Em outro caso, uma candidata do Distrito Federal foi obrigada a ressarcir R$ 89 mil por despesas consideradas irregulares [3].
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Esta transformação criou um efeito interessante: as prestações de contas viraram uma espécie de “segunda arena” da disputa eleitoral. Partidos e candidatos passaram a fiscalizar minuciosamente as contas dos adversários, buscando irregularidades que possam levar à devolução de recursos ou ao bloqueio de verbas futuras. É uma forma legítima de competição política através do controle da legalidade.
Mas aqui surge o paradoxo que dá título ao nosso artigo: se os adversários podem (e até são incentivados a) apontar irregularidades na fase inicial do processo, por que não podem recorrer quando discordam da decisão? Se o interesse público justifica sua participação como fiscal na primeira fase, por que esse mesmo interesse desaparece magicamente na fase recursal? Como essa contradição se sustenta? É o que veremos a seguir.
Paradoxo da legitimidade: contradição processual no coração do Direito Eleitoral
Para entender esse paradoxo, vamos acompanhar o caso hipotético relatado acima. O candidato João Silva, autodeclarado pardo, utilizou indevidamente recursos do FEFC, transferindo-os para candidatos brancos após a eleição, sem que houvesse qualquer despesa compartilhada. Apesar da impugnação fundamentada, a Justiça Eleitoral aprovou suas contas e barrou o recurso da coligação adversária por suposta falta de legitimidade.
O cenário narrado expõe três contradições importantes:
A primeira é lógica: como pode um ente ter legitimidade para iniciar um procedimento (impugnação), mas não para questionar seu resultado (recurso)?
A segunda contradição é prática: ao permitir a impugnação inicial por adversários, a lei reconhece que eles têm interesse legítimo na fiscalização das contas. Este interesse não desaparece magicamente após a decisão de primeira instância – pelo contrário, pode até aumentar se a decisão ignorar evidências relevantes. Voltando ao nosso exemplo: se o impugnante tinha interesse legítimo em impugnar a transferência irregular de recursos do FEFC na fase inicial, por que perderia esse interesse quando a Justiça Eleitoral aceita, sem questionamento, uma justificativa genérica de “despesa compartilhada” que sequer ocorreu?
A terceira contradição é sistêmica: o direito eleitoral moderno, especialmente após a criação do FEFC, reconhece que o uso irregular de recursos públicos de campanha afeta toda a competição eleitoral. Se um candidato usa indevidamente o dinheiro público, ele obtém vantagem competitiva ilegítima sobre os adversários. Como então dizer que estes adversários não sofrem “prejuízo jurídico direto” com a aprovação incorreta de contas?
Esse argumento central do TSE, data vênia, parece ignorar a natureza única do processo eleitoral. Numa eleição, especialmente com financiamento público, a aprovação indevida das contas de um candidato gera sim prejuízo aos adversários: afeta a igualdade de condições na disputa, permite o uso continuado de recursos obtidos irregularmente e pode impactar até eleições futuras.
O mais curioso é que essa restrição acaba deixando o Ministério Público Eleitoral como único legitimado para recorrer (além do próprio prestador das contas). Esta concentração da legitimidade recursal no MP, embora bem-intencionada, pode criar pontos cegos na fiscalização — afinal, o Ministério Público, por mais eficiente que seja, não tem a mesma capacidade de acompanhamento minucioso das campanhas que os próprios competidores.
Além disso, essa restrição à legitimidade recursal vai na contramão de outras ações eleitorais. Por exemplo: se um partido identifica que um candidato praticou abuso de poder econômico, pode não só denunciar como também recorrer de todas as decisões no processo. Por que então, quando se trata de fiscalizar dinheiro público nas prestações de contas, esse mesmo partido perde a capacidade de recorrer?
Na sequência, veremos como o advento do financiamento majoritariamente público das campanhas torna essa restrição ainda mais questionável. Afinal, quando é dinheiro do contribuinte que está em jogo, o interesse na fiscalização transcende a mera disputa eleitoral.
Dinheiro público, interesse privado? Nova dimensão da fiscalização eleitoral
Para entender como isso muda o jogo, vamos reexaminar o caso do candidato João Silva. Neste cenário, existem três dimensões de interesse na fiscalização:
1. Interesse público primário: Os valores do FEFC são dinheiro dos contribuintes. Se houve desvio ou utilização indevida, é o erário que foi lesado. Este é tradicionalmente o interesse tutelado pelo Ministério Público.
2. Interesse competitivo: O uso irregular desses valores pode ter concedido ao candidato João Silva uma vantagem indevida sobre sua adversária, Maria Santos, afetando a isonomia da disputa eleitoral.
3. Interesse sistêmico: O uso irregular de recursos públicos por um candidato afeta a credibilidade de todo o sistema de financiamento eleitoral, prejudicando a eleição em questão, bem como partidos que disputarão eleições futuras.
A atual jurisprudência, ao negar legitimidade recursal aos adversários, parece enxergar apenas a primeira dimensão, tratando a questão como se fosse um simples caso de proteção ao erário. Mas isso ignora uma realidade: no processo eleitoral, interesse público e interesse competitivo legítimo frequentemente se misturam.
Voltando ao nosso exemplo: quando Maria fiscaliza as transferências suspeitas de João, ela está simultaneamente protegendo o dinheiro público (interesse coletivo), defendendo a igualdade de condições na disputa (interesse competitivo legítimo) e fortalecendo a transparência do sistema (interesse institucional).
É por isso que a tradicional divisão entre “interesse público” (tutelado pelo MP) e “interesse privado” (dos competidores) faz pouco sentido no contexto atual. Com financiamento majoritariamente público, todo uso irregular de recursos de campanha é, ao mesmo tempo, uma lesão ao erário e uma distorção da competição eleitoral.
O argumento do TSE de que “partidos não sofrem prejuízo jurídico direto” com a aprovação das contas alheias parece ignorar essa nova realidade do financiamento público de campanhas. Quando o dinheiro era privado, fazia sentido limitar a interferência de terceiros. Mas agora que falamos de bilhões em recursos públicos, o interesse dos partidos em fiscalizar é quase uma extensão do interesse público.
Mais do que isso: os adversários políticos frequentemente têm melhores condições práticas de fiscalização do que o próprio Ministério Público. Eles conhecem as dinâmicas da campanha, sabem onde buscar inconsistências e têm incentivo direto para apontar irregularidades. Negar-lhes o direito de recorrer é desperdiçar essa capacidade investigativa justamente na fase mais decisiva do processo — o controle sobre decisões possivelmente equivocadas. É como ter os melhores fiscais possíveis, mas impedir que suas descobertas sejam levadas até o fim.
O financiamento público também traz outra questão: a sustentabilidade futura dos partidos depende cada vez mais do acesso a esses recursos. Se um partido usa irregularmente o FEFC hoje e tem suas contas aprovadas incorretamente, ele mantém acesso integral aos recursos nas próximas eleições, perpetuando uma vantagem irregular sobre os adversários.
Caminhos para mudança: repensando a legitimidade recursal no século 21
O caminho mais imediato para mudança não requer alteração legislativa — apenas uma reinterpretação jurisprudencial pelo Tribunal Superior Eleitoral. Considere o caso já relato, que identificou graves irregularidades nas contas do candidato vencedor, João da Silva. Mesmo tendo apresentado impugnação detalhada durante o processo, a impugnante não pôde recorrer quando as contas foram aprovadas com ressalvas, ignorando evidências substanciais de mau uso do Fundão.
O argumento do TSE de que irregularidades na arrecadação ou no gasto de recursos devem ser analisadas exclusivamente em ações autônomas, como a Aije ou a representação do artigo 30-A, desconsidera um aspecto fundamental: nenhuma dessas ações tem o poder de determinar a devolução dos valores indevidamente utilizados ao Tesouro Nacional.
A Aije, por exemplo, pode levar à cassação do diploma e à inelegibilidade do candidato, mas não resolve a questão central do uso indevido do dinheiro público. Já a representação do artigo 30-A pune a captação ilícita de recursos, podendo gerar a cassação do mandato, mas também não prevê a restituição dos valores ao erário. Somente no processo de prestação de contas há previsão expressa de ressarcimento aos cofres públicos, o que faz desse procedimento um mecanismo importante para coibir o desvio de finalidade na utilização do FEFC e do Fundo Partidário.
A construção que impede recursos de terceiros não está na lei — é uma criação jurisprudencial baseada em um contexto histórico diferente, quando o financiamento era predominantemente privado. Com a massiva injeção de recursos públicos via FEFC, o TSE poderia reconhecer que a prestação de contas transcendeu a esfera privada do candidato, tornando-se matéria de interesse público geral.
Uma solução intermediária, enquanto não se opera uma mudança mais profunda, seria estabelecer um procedimento onde o Ministério Público Eleitoral seja obrigatoriamente intimado quando houver recurso de terceiro interessado, podendo assumir o recurso como próprio se considerar as alegações relevantes. É como dar ao Ministério Público uma “segunda chance” de identificar irregularidades graves que talvez tenham passado despercebidas na análise inicial. Esta sistemática permitiria um controle mais efetivo sem comprometer a estabilidade do sistema, usando a estrutura institucional já existente do Ministério Público Eleitoral.
No fim, trata-se de reconhecer uma realidade simples: em uma democracia moderna, com financiamento majoritariamente público das campanhas, a fiscalização efetiva das contas eleitorais é interesse de todos — não apenas do Ministério Público. Negar aos competidores a possibilidade de questionar decisões que consideram equivocadas é desperdiçar uma importante fonte de controle social dos gastos públicos.
O momento é propício: com o aumento expressivo do FEFC (quase R$ 5 bilhões em 2022), cresce a pressão social por mais controle. Permitir que partidos recorram de prestações de contas suspeitas seria uma forma de ampliar esse controle sem custo adicional para o Estado.
Como diria um antigo provérbio: “Quem pode o mais, deve poder o menos”. Se os partidos podem apresentar impugnações complexas e detalhadas, não faz sentido impedi-los de questionar como essas mesmas impugnações foram julgadas. É hora de alinhar o processo eleitoral com os princípios básicos do devido processo legal e da ampla defesa do interesse público.
[1] https://www.conjur.com.br/2025-jan-13/branqueamento-do-fundo-especial-de-financiamento-de-campanha-fefc/
[2] Agravo de Instrumento nº 0602338-10.2018.6.09.0000, TSE
[3] TSE determina que candidata em 2018 devolva R$ 89,3 mil ao Tesouro Nacional. Disponível em: https://www.tse.jus.br/comunicacao/noticias/2023/Junho/tse-determina-que-candidata-em-2018-devolva-r-89-3-mil-ao-tesouro-nacional
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