Existe autonomia subnacional no Brasil? Os entes subnacionais e o federalismo à brasileira
14 de fevereiro de 2025, 7h03
A literatura internacional sobre federalismo e direito subnacional tem consolidado uma definição acerca do poder de organização das entidades subnacionais e suas respectivas constituições. Nesse sentido, as constituições subnacionais são geralmente concebidas como documentos fundamentais que estabelecem regras essenciais sobre um ou mais dos seguintes aspectos: identidade subnacional, estruturas representativas, organização de poderes e da administração, direitos fundamentais e diretrizes gerais de políticas públicas.
![Pôr do sol na Praça dos Três Poderes](https://www.conjur.com.br/wp-content/uploads/2024/05/por_do_sol_na_praca_dos_tres_poderes20220608_0731-300x176.jpeg)
Elas refletem, em termos gerais, as peculiaridades subnacionais de maior relevo, tendo a aprovação do respectivo povo ou de seus representantes. Essa definição expressa um consenso teórico sobre a autonomia normativa das unidades subnacionais dentro de sistemas federais, destacando a sua relevância na distribuição do poder político e na garantia de identidades locais.
Ainda em termos clássicos, Daniel Elazar indica que o federalismo pode ser compreendido como um princípio político que busca equilibrar autogoverno e governo compartilhado, estruturando-se tal arranjo por meio da distribuição constitucional do poder entre diferentes esferas governamentais. Seu objetivo maior é garantir que as entidades que compõem a federação participem do processo de formulação e administração de políticas comuns sem comprometer sua autonomia. Esse arranjo possibilita, assim, a integração de diferentes comunidades políticas, respeitando suas diversidades internas ao mesmo tempo em que permite uma coordenação eficiente para o alcance de objetivos comuns, como desenvolvimento econômico e segurança. [1]
Nesse mesmo sentido, Ronald Watts, inspirado por Elazar, aponta que o espírito federal abrange uma ampla categoria de sistemas políticos em que, em contraste com a fonte única e central de autoridade política e jurídica nos sistemas unitários, existem dois (ou mais) níveis de governo, combinando elementos de governo compartilhado (parceria colaborativa), por meio de um governo comum, e autogoverno regional (autonomia das unidades), para a administração das unidades constituintes.[2]
Estruturação jurídica e política das unidades subnacionais
Diante desse quadro — e da inegável estrutura federal do Estado (artigo 1º e artigo 18 da Constituição) —, torna-se particularmente interessante realizar uma análise comparativa da estruturação jurídica e política das unidades subnacionais em diversos sistemas federais. E é exatamente essa a proposta de Patricia Popelier, Nicholas Aroney e Giacomo Delledonne em sua obra The Routledge Handbook of Subnational Constitutions and Constitutionalism, [3] que examina o fenômeno do constitucionalismo subnacional em sistemas políticos multinível.
A obra explora as relações entre constituições nacionais, subnacionais e, quando aplicável, supranacionais, oferecendo definições e tipologias para o desenvolvimento de uma teoria explicativa do constitucionalismo subnacional. Além de mapear a autonomia subnacional em diversos sistemas federais e quase-federais ao redor do mundo, o livro investiga as razões pelas quais algumas unidades subnacionais possuem plenos poderes constituintes e de auto-organização, enquanto outras têm essa capacidade limitada ou inexistente.
Entre os 18 casos estudados na obra, o Brasil é um deles. A análise da situação brasileira coube a Marcelo Labanca, que a realizou com grande competência, abordando as especificidades do federalismo no país e suas implicações para a autonomia subnacional. De qualquer sorte, é relevante examinar os contornos gerais da pesquisa, as métricas da análise realizada e as conclusões de Popelier, Aroney e Delledonne, especialmente ao mensurar, em termos comparativos, as distintas autonomias subnacionais nos casos estudados. Esse panorama comparativo permite compreender melhor os desafios e possibilidades da autonomia subnacional no Brasil em relação a outros sistemas federais ao redor do mundo.
Na prática, a análise da autonomia constitucional dos entes subnacionais nos sistemas federais em questão é realizada a partir de distintos critérios que avaliam tanto o conteúdo quanto os procedimentos relacionados à capacidade de auto-organização dessas entidades. Popelier, Aroney e Delledonne propõem uma abordagem comparativa que considera a autonomia do conteúdo constitucional, isto é, o grau de liberdade que um ente subnacional possui para definir regras sobre identidade subnacional, estruturas representativas, organização de poderes, direitos fundamentais e diretrizes gerais de políticas públicas. Além disso, a autonomia procedimental também é analisada, levando em conta o nível de controle que o governo central exerce sobre a adoção e modificação das constituições subnacionais, variando de uma completa ausência de autonomia até a plena capacidade de autoconstituição sem interferência central.
Falta de autonomia constitucional
Esses dois critérios principais são combinados para formar um indicador agregado da capacidade de autoconstituição, permitindo classificar os sistemas federativos de acordo com o grau de autonomia concedido às suas unidades subnacionais. Além disso, o estudo considera o papel dos entes subnacionais na formulação e revisão da Constituição, um fator relevante para entender se a falta de autonomia constitucional é compensada por uma participação ativa no processo constitucional do Estado central. Essa abordagem comparativa possibilita um mapeamento detalhado das variações no desenho institucional das federações e evidencia os fatores que influenciam a distribuição do poder entre diferentes níveis de governo ao redor do mundo.
![](https://www.conjur.com.br/wp-content/uploads/2024/07/opiniao.jpg)
Os autores do estudo combinaram os valores de autonomia do conteúdo constitucional e de seus procedimentos a fim de estabelecer uma medida de autonomia constitucional geral para as entidades subnacionais (variando de 0 a 1, sendo valores mais altos indicativos de maior autonomia). Atribuindo-se peso igual ao conteúdo e ao procedimento, o resultado agregado indicou um score razoável de 0,65 para os estados da federação brasileira.
Em termos de autonomia, esse valor coloca o Brasil à frente de países como Itália (0,61), Áustria (0,61), Suíça (0,61), Espanha (0,54), Bélgica (0,56), África do Sul (0,56), Malásia (0,33), Reino Unido (0,20) e Índia (0,15). No entanto, o Brasil fica atrás de federações como Bósnia e Herzegovina (0,93), Estados Unidos (0,93), Canadá (0,93), Etiópia (0,89), Alemanha (0,89), Austrália (0,85), Argentina (0,81) e México (0,69), o que evidencia um grau de autonomia intermediário quando comparado a outras federações ao redor do mundo. [4]
O problema, no entanto, é que, apesar de uma razoável autonomia do conteúdo constitucional subnacional em termos de forma (isto é, não intervenção ou controle do ente central sobre a elaboração e reforma das constituições subnacionais), ainda é grande a limitação material para as entidades subnacionais brasileiras, sobretudo quanto à organização administrativa e de poderes, os quais, no mais das vezes, seguem uma simetria quase perfeita com o ente central (União).
O que se vê, na linha já clássica de Raul Machado Horta, é a forte incidência das chamadas normas centrais federais no seio da Constituição, isto é, um conjunto de normas constitucionais que organizam e preservam a estrutura da União, garantindo a homogeneidade dentro da pluralidade das entidades federadas (União, estados e municípios). Essas normas não são meramente centralizadoras, como ocorre nos estados unitários, mas servem para assegurar a participação, coordenação e autonomia das unidades federadas. Fundamentam princípios estruturais essenciais, como a forma republicana de governo, a separação de poderes, a repartição de competências e os direitos fundamentais, sendo indispensáveis para a manutenção do equilíbrio federativo. Por fim, sua violação pode implicar a sanção da inconstitucionalidade, reforçando seu papel na estabilidade da federação.[5]
Autonomia limitada aos estados
Diante desse contexto, é interessante verificar que, em termos de organização político-administrativa e dos poderes no âmbito do ente subnacional, há apenas uma pequena margem de autonomia que resta aos estados, o que acaba distanciando a situação do Brasil de outras no mundo. Esse aspecto demonstra que, apesar do reconhecimento formal da autonomia subnacional, sua efetiva aplicação está limitada por padrões constitucionais que impõem uma estruturação bastante homogênea entre os entes federados, contrastando com sistemas federais que permitem maior diversidade institucional entre suas unidades subnacionais.
A rigidez imposta pela Constituição aos estados é particularmente evidente na ausência de margens significativas para inovação no plano dos princípios gerais de organização estatal. Diferentemente de federações onde as unidades subnacionais possuem autonomia para definir aspectos essenciais de seu modelo de governo, os estados brasileiros estão vinculados à estrutura republicana e presidencialista, sem a possibilidade de adotar modelos alternativos, como o parlamentarismo ou o semipresidencialismo. Além disso, a instituição de mecanismos de democracia direta também se encontra amplamente subordinada às regras federais/nacionais, limitando a experimentação de formas diferenciadas de participação política.
Essa limitação também se manifesta na organização dos Poderes Legislativo e Executivo estaduais. Os parlamentos estaduais devem seguir um modelo unicameral padronizado, sem possibilidade de adoção de sistemas bicamerais ou formas alternativas de representação política. Além disso, o próprio sistema eleitoral e os critérios para eleição de representantes seguem regras impostas pela União, restringindo a flexibilidade dos estados na determinação de seus processos democráticos internos. No que se refere ao Executivo, os estados não possuem liberdade para definir mecanismos próprios de seleção do governador ou a composição de seu gabinete, seguindo padrões uniformizados nacionalmente.
Organização judicial
Por fim, no campo do Poder Judiciário e demais órgãos constitucionais autônomos, a liberdade de atuação estadual é ainda mais limitada. O Brasil adota um modelo centralizado de organização judicial, no qual os tribunais estaduais estão subordinados a regras estabelecidas pela Constituição e leis em termos nacionais, tanto no que diz respeito à estrutura quanto nos critérios para nomeação e status dos magistrados. O mesmo ocorre em relação ao Ministério Público e aos Tribunais de Contas, por exemplo. Dessa forma, os estados não possuem margem significativa para inovar na administração da Justiça, sendo essa uma diferença marcante em relação a sistemas federais mais descentralizados, onde as unidades subnacionais, no mais das vezes, podem determinar seus próprios arranjos judiciais e de controle.
Sem a pretensão de esgotar os complexos aspectos da estrutura federativa brasileira, este panorama geral permite identificar um dado essencial: a ampla centralização que caracteriza a federação nacional é um elemento tão consolidado que acaba escapando ao grande debate político e jurídico. Independentemente da posição ideológica, há uma aceitação quase universal dessa centralização, com poucas contestações sérias sobre a rigidez estrutural que limita a autonomia estadual.
O próprio arranjo constitucional reforça esse modelo, perpetuando um desenho institucional no qual a descentralização política e administrativa dos estados é uma promessa constantemente mitigada pelo controle central. A análise comparada, em casos tais, pode servir como fundamento para mais discussões futuras. É o que se espera, sobretudo quando o fim último é o desenvolvimento e eventual melhoria das estruturas atuais.
[1] Daniel Elazar, Federal Systems of the World: A Handbook of Federal, Confederal and Autonomy Arrangements. 2nd Edition. Longman Group: 1994. p. xiv.
[2] Ronald Watts, Comparing Federal Systems. 3rd Edition. McGill-Queen’s University Press: 2008. p. 8.
[3] Patricia Popelier; Nicholas Aroney; Giacomo Delledonne (org.), The Routledge Handbook of Subnational Constitutions and Constitutionalism. Routledge: 2022.
[4] Op. cit. p. 310-325.
[5] Raul Machado Horta, Normas Centrais da Constituição Federal, Revista Informação Legislativa v. 34, n. 135, 1997, p. 175-178.
Encontrou um erro? Avise nossa equipe!