Opinião

Imóveis tombados: quem paga a conta?

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13 de fevereiro de 2025, 21h43

O teto da Igreja de São Francisco de Assis, em Salvador, desabou, no dia 5 de fevereiro, causando ferimentos em cinco pessoas e a morte de uma delas, aos 26 anos de idade. Anos atrás, transmitiu-se ao vivo pela televisão o incêndio que consumiu o Museu Nacional, no Rio de Janeiro, tombado desde 1938. Só quem trabalhava ou visitou este local tem ideia da quantidade de objetos perdidos para sempre, muitos deles colecionados por dom Pedro 2º.

Márcio Filho/MTur

Em entrevista, o presidente Luiz Inacio Lula da Silva manifestou-se de forma crítica sobre o acidente em Salvador:  “Eu tenho uma bronca desse negócio de tombamento. Porque em São Paulo, no Rio, em Brasília, você tomba as coisas, mas quando você faz uma política de tomar um patrimônio público, é preciso colocar dinheiro para manter as coisas”. [1]

E continuou: “Eu vejo um monte de prédio tombado na Bahia, em Pernambuco, no Rio de Janeiro, em São Paulo, e o cidadão que fez o tombamento, que aprovou a lei na Câmara, não coloca orçamento para que isso seja conservado. Você tomba, e a coisa vai apodrecendo, vai envelhecendo, vai caindo. Então pra que tombar, se não há responsabilidade de cuidar?” [2]

Proteção do patrimônio cultural

Pois bem. O modelo de proteção do patrimônio cultural brasileiro foi construído há quase um século, a partir da criação do Sphan (atual Iphan) em 1936, e subsequente edição do Decreto-lei n° 25, de 1937, que instituiu o tombamento no Brasil, à semelhança de leis europeias sobre o tema.

Pelo senso comum, o tombamento é a declaração estatal de que este bem tem um valor especial, por cuja contemplação, acesso e uso pela comunidade se permite imaginar como era a vida cotidiana no passado, cabendo, portanto, a sua conservação como uma relíquia. Por outro lado, esse modelo legislativo ainda reflete a ideologia do direito administrativo de boa parte do século 20, de acordo com a qual sempre deve prevalecer o interesse público em face do interesse particular.

Por isso — e com fundamento na lei —, o órgão de proteção do patrimônio cultural tem competência para determinar ao proprietário de um imóvel tombado que arque com as despesas necessárias à sua conservação. O Estado passa a ser o controlador do imóvel, quanto à maneira como será usado e reformado, enquanto resta ao proprietário ver limitados os seus poderes de uso, fruição e disposição advindos do direito de propriedade, acrescidos de deveres, ao lado de supressão de imunidades e poderes. [3]

Falta de interesse pelo passado

É certo que, se não fossem as leis de proteção do patrimônio cultural, e a atuação dos órgãos de proteção do patrimônio cultural, não haveria quase nada para “contar história”, como se costuma dizer, ante a falta de interesse de parte da população brasileira pelo passado. Mesmo assim, parte do nosso patrimônio cultural imobiliário brasileiro está em vias de tombar, no sentido literal da palavra, por falta de reformas em razão do desinteresse do proprietário em fazê-las, ou porque a execução dos serviços de conservação requer a contratação de profissionais especializados ao longo de muitos meses, bem como a aquisição de materiais de restauro de boa qualidade, o que encarece excessivamente o valor da obra.

Spacca

A consequência é essa: diversos proprietários, na calada da noite, destroem o imóvel, ou simplesmente deixam-no consumir-se com o passar do tempo, no exercício do jus abutendi em seu sentido mais estrito, que é o de destruir o imóvel. Também precisa ser dito que, no Brasil, este problema de falta de conservação, que leva à ruína, não se limita a imóveis de titularidade de particulares. Prova disso é que esses graves acidentes ocorreram com imóveis tombados de propriedade do Estado e da Igreja Católica, como se passou com o Museu Nacional e, agora, com a Igreja de São Francisco de Assis.

Seria possível evitar essa situação, caso o Brasil soubesse explorar adequadamente o seu patrimônio cultural imóvel do ponto de vista econômico. O turismo tem papel de destaque na economia local em cidades com quantidade razoável de imóveis tombados, como no caso das cidades históricas de Minas Gerais, Rio de Janeiro, Goiás e Rio Grande do Sul, assim como nos centros históricos de Salvador e Recife. Entretanto, nosso patrimônio cultural imobiliário ainda segue subestimado e pouco explorado em geral.

Basta comparar o número de turistas que vêm ao Brasil, com o número de brasileiros que viajam ao exterior, especialmente à Europa, pagando caro para visitar sítios históricos e arqueológicos, palácios, igrejas e museus considerados importantes do ponto de vista cultural desses países.

Conta da conservação

Chegou a hora de saber quem deve realmente pagar a conta pela conservação do patrimônio cultural imóvel no Brasil. Esta não é questão prioritária para o Estado. Nem há mais como cobrar exclusivamente do proprietário o pagamento exclusivo dessas despesas de conservação, pois nada disso tem funcionado adequadamente há décadas.

Uma possível solução seria a de aproveitar a experiência das fundações de amparo à pesquisa, como a Fapesp, cujo objeto é o fomento do desenvolvimento científico do país, instituindo-se, por semelhança, diversas fundações de amparo ao patrimônio cultural brasileiro, [4] nos termos do artigo 62, parágrafo único, II, do Código Civil, as quais não se confundem com fundações já existentes ligadas a bancos e empresas de comunicação instituídas por iniciativa pessoal, nem com fundos de defesa de direitos difusos, podendo ambos atuarem de forma complementar.

Os recursos dessas fundações poderiam advir de dotações de pessoas físicas e jurídicas e, especialmente, por dotações provenientes do pagamento de ingresso de cada visitante a esses locais. As receitas seriam divididas entre o imóvel tombado e o patrimônio da fundação, garantindo-se recursos para a conservação destes imóveis em termos globais de modo que se poderiam alocar tais recursos onde fossem mais necessários com mais rapidez. [5]

O proprietário — que pode ser até mesmo o município ou a Igreja — que aderisse a esse sistema organizado pela fundação, receberia uma espécie de “selo” de identificação de bem cultural, o que certamente valorizaria seu imóvel. Aliás, era essa a ideia original em 1930, em que se idealizou apenas a aposição de uma placa no imóvel, em vez de interferir no conteúdo do direito de propriedade.

Enfim, de nada adianta deixar de cobrar pela visitação em muitos desses locais se, por falta de recursos, lamentamos a deterioração de determinado imóvel, o apagamento de parte de nossa história, e, mais grave, pela perda de vidas humanas. Já passou da hora de apenas fechar os olhos e sonhar. Este dever não precisa ser exclusivamente do Estado ou do proprietário. Todos nós, enquanto beneficiários desta herança cultural, podemos ajudar na sua conservação por meio deste importante instituto jurídico regulado pelo Código Civil, que é a fundação.

 


[1] MAZUI, Guilherme; RODRIGUES, Mateus; LABOISSIÈRE, Mariana. Após teto de igreja cair na BA, Lula diz ter ‘bronca’ de tombamento: ‘É preciso colocar dinheiro’. Portal G1. Brasília, 6 de fevereiro de 2025. Disponível em:

https://g1.globo.com/politica/noticia/2025/02/06/apos-teto-de-igreja-cair-na-bahia-lula-diz-ter-bronca-de-tombamento-e-preciso-colocar-dinheiro.ghtml. Acesso em: 7 fev. 2025.

[2] Ibid.

[3] O Código Civil de 2002, em seu art. 1.228, parágrafo único, cuja redação é da década de1970, manteve essa visão da década de 1930. No projeto de reforma do Código Civil, cuja tramitação se iniciou neste janeiro de 2025, a confusão conceitual proposta é assustadora, pois nem sequer houve o trabalho de atualizar o artigo à luz do art. 216 da Constituição Federal.

[4] Existe algo semelhante no Reino Unido e nos Estados Unidos, com os National Trusts. Como não temos a regulamentação jurídica deste instituto jurídico no Brasil, é mais fácil trabalhar com institutos jurídicos já existentes em nosso direito. (Cf. www.nationaltrust.org.uk e https://savingplaces.org/).

[5] Poderia ter uma fundação de âmbito nacional e fundações estaduais em algumas unidades da federação, vez que é inviável todos os estados da federação terem uma fundação com esse objeto, tanto pela quantidade menor de imóveis tombados em comparação com outros locais, quanto pela dificuldade de a fundação ter patrimônio suficiente para o cumprimento de seus fins.

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