Diário de Classe

Crônicas da Lei e do Mito: o julgamento de Orestes

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  • é mestrando em Direito Público pela Unisinos editor-adjunto da Revista Constituição Economia e Desenvolvimento: Revista Eletrônica da Academia Brasileira de Direito Constitucional (Qualis A3 ISSN 2177-8256) e membro do Dasein — Núcleo de Estudos Hermenêuticos.

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8 de fevereiro de 2025, 8h00

O mito é o nada que é tudo[1]

1) Retomando o diálogo entre Direito e mitologia

A relação entre Direito e mitologia, como já sustentei em texto anterior (cf. aqui), ultrapassa a mera apreciação de histórias antigas que servem para “enfeitar” nossa cultura jurídica. Como sublinhado por nomes como Mircea Eliade, os mitos não são simples fantasias; eles nos apresentam símbolos e arquétipos de caráter universal, capazes de lançar luz sobre questões fundamentais da condição humana [2]. No plano do Direito, tais narrativas funcionam não apenas como alegorias, mas como guias que podem esclarecer os (des)caminhos da racionalidade.

Contudo, é compreensível pensar que, à primeira vista, a relação entre as áreas seja algo apenas ilustrativo. Por outro lado, é verdadeiro argumentar que uma análise mais cuidadosa nos mostra que, na realidade, o universo mítico contém dilemas e metáforas que dialogam intimamente com as inquietudes da nossa alma e com os dilemas do Direito. Não se trata de um exercício de erudição vazia, mas de uma chave interpretativa que ilumina temas perenes como culpa, responsabilidade, justiça e a própria condição humana.

Por essa razão, inauguro aqui uma série de textos em que pretendo explorar, de forma sistemática, diferentes mitos — sobretudo da tradição greco-romana —, relacionando-os com questões jurídicas contemporâneas. A ideia é demonstrar como esses relatos arcaicos, transmitidos por gerações, não apenas influenciam nossa visão de mundo, mas também podem nos ajudar a refletir sobre a aplicação do Direito. Para inaugurar essa Odisseia que espero compartilhar com você, leitor(a), escolhi a trilogia Oresteia, de Ésquilo, cujo enredo ilustra a passagem dramática de um sistema pautado pela vingança para uma justiça institucionalizada [3].

Neste primeiro texto, examinaremos em que medida o julgamento de Orestes — e todo o contexto trágico que o envolve — oferece um antecedente mítico para a presunção de inocência e para o in dubio pro reo. Na sequência, tangenciaremos a aplicação desses entendimentos no julgamento das Ações Declaratórias de Constitucionalidade 43, 44 e 54 no Supremo Tribunal Federal, evidenciando que, mesmo séculos depois, a tensão entre vingança, moralidade e justiça ainda se faz sentir no cenário jurídico. Ao final, espero que este ensaio e os próximos sirvam de provocação para a compreensão — e para a crítica — do Direito atual.

2) O julgamento de Orestes: dos ritos de vingança à racionalidade jurídica

Entre as narrativas míticas que melhor ilustram o surgimento institucional do Direito, destaca-se a trilogia Oresteia, especialmente a terceira peça chamada Eumênides, em que se descreve o julgamento de Orestes. Segundo a mitologia, Orestes mata sua mãe, Clitemnestra, em retaliação pelo assassinato que ela havia praticado contra Agamêmnon, pai de Orestes. Dando sequência a um ciclo ininterrupto de retaliações — típico do universo trágico grego — o sangue clama por mais sangue, numa espiral alimentada pelas Erínias (as Fúrias), divindades femininas que encarnam a vingança implacável. No caso de Orestes, elas o perseguem, levando-o a uma errância desesperada.

Contudo, em vez de perpetuar esse ciclo de ódio, a deusa Atena institui o Areópago, um tribunal destinado a julgar Orestes [4]. Apolo defende o jovem, enquanto as Erínias o acusam ferozmente de matricídio. No desfecho, não há um consenso entre os especialistas sobre o papel que o voto de Atena teve para concluir o julgamento: (1) segundo uma interpretação mais rigorosa, votou junto com os demais jurados e foi justamente o seu voto que criou o empate, conduzindo à absolvição de Orestes conforme as regras previamente estabelecidas [5]; (2) por outro lado, há quem sustente que Atena votou após os demais jurados [6] e que, diante da paridade entre votos pela condenação e pela absolvição, Orestes foi inocentado pelo seu voto — chamado “voto de Minerva”.

Seja como for, e independentemente da sua ou da minha interpretação sobre o voto, o texto de Ésquilo é inequívoco ao mostrar que o veredicto inflama a fúria das Erínias e que elas, tomadas pela ira de terem sido desautorizadas a aplicar a vingança, deixam o ódio estígio transbordar em um protesto contra a ruptura da ordem ancestral, realizando ameaças. Diante desse impasse, Atena adota uma solução conciliatória e carregada de simbolismo: oferece-lhes um lugar de honra e reverência dentro da cidade, propondo que abandonem seu papel vingativo e assumam uma nova função, transformando-se nas Eumênides — que significa “as benevolentes”. Assim, deixam de ser agentes de retaliação cega para se tornarem divindades guardiãs da ordem pública, incumbidas de garantir o equilíbrio e a harmonia da cidade sob o manto de uma justiça agora mais legítima.

Com isso, o mito não apenas põe fim a um ciclo de fúria, mas inaugura um novo modelo de justiça, pautado pela racionalidade (de argumentos) e pela mediação pública (de um tribunal), em vez de se apoiar na vingança privada. Enquanto o tribunal do Areópago acolhe a defesa de Orestes, Atena ressignifica o papel das Erínias, convertendo a fúria retaliatória em defesa da institucionalidade. É o instante em que o pathos cede lugar ao logos e a violência caótica ganha feições institucionais, sob a égide de uma deusa que simboliza a sabedoria. Ao longo dos séculos, esse momento foi compreendido como uma metáfora fundante de que a decisão jurídica deve se erguer acima de impulsos vingativos, consolidando o caráter público e racional do Direito.

3) In dubio pro reo e presunção de inocência: ecos do julgamento mítico

O julgamento de Orestes apresenta uma premissa que se tornou, muito tempo depois, um dos pilares do Direito Penal moderno: diante da dúvida, deve-se absolver o réu. Na trilogia de Ésquilo, essa lógica se evidencia quando Atena realiza o desempate em favor de Orestes, argumentando que “da acusação foi absolvido este homem, pois dos votos o número é igual” (v. 749-750). Há, nesse ponto, uma correspondência clara com o princípio do in dubio pro reo, incorporado em diversas tradições jurídicas ao redor do mundo.

Convém distinguir, contudo, que a presunção de inocência, de matiz constitucional, impede que alguém seja tratado como culpado antes de haver sentença transitada em julgado, enquanto o in dubio pro reo — decorrência direta desse princípio — orienta o julgador a absolver quando não há prova para além da dúvida razoável. Assim, se o primeiro assegura o status de não culpabilidade antes do término definitivo do processo, o segundo estabelece o critério de julgamento em caso de incerteza [7].

Se na tragédia grega a hesitação dos mortais (os jurados do Areópago) exigia a intervenção divina, no Direito contemporâneo a presunção de inocência cumpre papel equivalente. Consagrada no artigo 5º, inciso LVII, da Constituição brasileira (“ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”), a presunção de inocência estabelece um freio às antecipações punitivas. A lógica é simples, mas não menos profunda: condenar um inocente é uma injustiça maior do que absolver alguém cuja culpa não está cabalmente provada.

A força simbólica da presunção de inocência ganha relevo porque a experiência histórica das sociedades humanas, desde a Grécia Antiga, mostra que a paixão, o clamor social ou o poder político podem facilmente corromper julgamentos, transformando-os em linchamentos. Não por acaso, muitas vezes houve tentativas de relativizar essa garantia fundamental. Mas o componente mítico presente no julgamento de Orestes recorda que, sem esse contrapeso (in dubio pro reo), o Direito voltaria a ser apenas um instrumento de vingança.

4) As ADCs 43, 44 e 54 no STF: o dia em que a Constituição foi quase declarada inconstitucional

Os debates acerca da presunção de inocência, conquanto presentes desde as primeiras codificações penais, ganharam novo fôlego no Brasil em virtude do julgamento conjunto das ADCs 43, 44 e 54 no STF. Em síntese, discutia-se a possibilidade de iniciar a execução da pena após condenação em segunda instância, embora ainda pendentes recursos nos tribunais superiores.

Nessa disputa, debatedores se dividiram entre aqueles que defendiam que a execução provisória não feriria a presunção de inocência (“pois já haveria decisão colegiada”) e os que sustentavam que, se a Constituição exige trânsito em julgado (artigo 5º, LVII), não se poderia antecipar a punição. O STF, num primeiro momento, chegou a flexibilizar o entendimento, mas em 2019 reverteu essa posição, concluindo que a execução provisória é incompatível com o texto constitucional.

Nesse cenário, diversos juristas — com destaque para Lenio Luiz Streck [8] — sublinharam a importância de respeitar os Direitos Fundamentais, evitando “ponderações” que esvaziem a salvaguarda constitucional de não ser considerado culpado antes do trânsito em julgado. Em sintonia com o mito de Orestes, a presunção de inocência figurou como barreira contra tentações punitivistas, afastando o retorno ao ciclo de vinganças que o Direito moderno (e a própria Atena, no mito) procura superar.

Nesse aspecto, percebe-se como o in dubio pro reo e a presunção de inocência se expressam na prática judicial: enquanto não houver certeza inequívoca da culpa — e, em sentido formal, enquanto não houver decisão definitiva —, a aplicação punitiva do Estado deve ser contida. Longe de ser mero formalismo ou condescendência com o crime, essa é a convicção de que submeter inocentes a castigos irreversíveis é um preço alto demais para qualquer sociedade.

5) Conclusão: o eterno retorno a mitologia

A história de Orestes é apenas um dos muitos exemplos de como a mitologia grega ilumina aspectos centrais do Direito contemporâneo. Tal como destacam comentadores de Ésquilo, de Homero e de outros expoentes da tradição clássica, o valor pedagógico do mito reside na sua capacidade de abordar dilemas perenes — vingança e justiça, paixão e racionalidade, culpa e inocência — num enredo que permanece atual. Não por acaso, as Erínias se transformam em Eumênides ao final da peça, simbolizando a superação do ódio cego pela racionalidade moderada.

O percurso do Direito, em grande medida, reflete essa tendência à domesticação das pulsões e à instituição de mecanismos públicos de resolução de conflitos. Se outrora a força bruta e a vingança determinavam o destino do acusado, hoje temos códigos, princípios e instituições que pretendem assegurar, desde o início, certo grau de imparcialidade e justeza. Mas a tragédia lembra que o risco de retroceder ao pathos permanece, seja em razão de pressões políticas, paixões populares ou equívocos interpretativos.

Quando o STF examinou as ADCs 43, 44 e 54, experimentou-se, de certa forma, um momento que evocou a cena do julgamento de Orestes: pressões, paixões e múltiplas narrativas em choque. Mesmo sem a presença de divindades, havia — e há — uma Constituição cuja supremacia deveria prevalecer sobre humores conjunturais [9].  A leitura atenta do texto constitucional, nesse contexto, emula a prudência de Atena: evitar decisões precipitadas e garantir o devido processo não é mero formalismo, mas a própria essência da civilização

Em síntese, a lição que emerge desse diálogo entre Direito e mitologia é que o mito permanece vivo não como superstição, mas como um vetor simbólico, lembrando-nos dos riscos de sucumbir à fúria vingativa. O episódio de Orestes sublinha a necessidade de confiar nas regras e princípios que estruturam o Estado de Direito, mesmo nos momentos de maior tensão. Surpreendentemente, em sua aparente irrealidade, a mitologia auxilia a compreensão prática das relações jurídicas no século XXI, lembrando-nos de que a busca pela justiça requer cautela e respeito a parâmetros claros — caso contrário, corremos o risco de simplesmente punir por impulso.

Em última análise, a linha que separa a civilização da barbárie é traçada precisamente pelo Direito. Sem a presunção de inocência e outras garantias fundamentais, periga-se recair na lógica cruel do “olho por olho”, reproduzindo antigos ciclos de violência. O julgamento de Orestes, assim, segue vivo como lembrete de que nossa tarefa, enquanto sociedade, é sustentar a razão e o ordenamento jurídico acima do ímpeto vingativo, garantindo que a justiça não se desvirtue em arbítrio ou retaliação. Afinal, se até as Fúrias foram domesticadas pela sabedoria e pela prudência, por que não haveríamos de preservar e fortalecer o espaço da razão em nosso próprio sistema jurídico?

 


[1] Fernando Pessoa, Ulysses

[2] ELIADE, Mircea. Mito e Realidade. 3. ed. São Paulo: Perspectiva, 1991

[3] ÉSQUILO. Oréstia. Dois Irmãos: Clube de Literatura Clássica, 2022

[4] Para uma compreensão da ritualística do tribunal, cf. CONJUR. O julgamento de Orestes e a fundação mítica do Tribunal do Júri. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2022-mai-14/tribunal-juri-fundacao-mitica-tribunal-juri. Acesso em: 4 fev. 2025

[5] Nota explicativa: (i) “embora seja matéria de disputa, parece bem claro pelo texto que o voto de Atena é realizado junto com os outros jurados e é o responsável por gerar uma igualdade do júri que resulta na absolvição de Orestes”. In: ÉSQUILO. op. cit., p. 371; (ii) “o voto de Atena não foi proferido ao tomar conhecimento do empate entre os juízes. Em verdade, decidiu antes, ao antecipar o modo como votaria: em favor de Orestes, que para ser absolvido bastaria o empate dos votos, pois o dela se somaria ao dos favoráveis à absolvição”. In: NASCIMENTO, J. L. R. do. Das Erínias às Eumênides: como as cadelas vingadoras ainda ladram um passado que não passa. ANAMORPHOSIS – Revista Internacional de Direito e Literatura, Porto Alegre, v. 3, n. 1, p. 39–72, 2017

[6] Trata-se de uma interpretação possível a partir de obras como (i) BULFINCH, Thomas. O livro da mitologia: a idade da fábula. São Paulo: Martin Claret, 2022; e (ii) GRAVES, Robert. Os mitos gregos (vol. 2). 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2018

[7] Nesse sentido, cf. BORGES DE SOUSA FILHO, Ademar. Presunção de inocência e a doutrina da prova além da dúvida razoável na jurisdição constitucional. Revista Brasileira de Direito Processual Penal, [S. l.], v. 8, n. 1, 2022

[8] À época, Streck foi um dos juristas que mais ocupou o debate público no sentido de discutir o assunto da presunção de inocência e a sua importância pode ser confirmada pela sustentação oral que realizou no julgamento das ADCs, representando a Associação Brasileira dos Advogados Criminalistas. Nesse sentido, cf. https://www.youtube.com/watch?v=dJ4NdaNIsHw

[9] Essa possibilidade de “domesticar” paixões num contexto jurídico encontra ecos em outras tragédias gregas. Nesse sentido, cf. SÓFOCLES. Rei Édipo e Antígona. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2021

Autores

  • é bolsista Capes/Proex, doutorando e mestre em Direito Público pela Unisinos, especialista em Teoria do Direito, Dogmática Crítica e Hermenêutica pela ABDConst, bem como em Direito Constitucional pela mesma instituição, pesquisador, membro do Dasein e editor da Revista da ABDConst.

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