Decisões judiciais e os enunciados climáticos do CJF
8 de fevereiro de 2025, 8h00
O Conselho da Justiça Federal (CJF), no segundo semestre do ano passado, sob a importante e necessária liderança em matéria climática do incansável jurista e ministro Antonio Herman de Vasconcellos e Benjamin, patrono do ambientalismo no Judiciário brasileiro, realizou a I Jornada Jurídica de Prevenção e Gerenciamento de Crises Ambientais [1].

Como resultado, foram aprovados e publicados em caderno, disponível online, 103 enunciados inovadores de Direito Climático e de Direito Ambiental [2] que podem ser considerados, em virtude da legitimidade e envergadura dos interlocutores envolvidos nos debates realizados, da pluralidade democrática dos diálogos, e, em especial, da maturidade jurídica da iniciativa, como o verdadeiro manual e autêntico protocolo para as decisões climáticas e ambientais a ser adotado pelo Poder Judiciário brasileiro e que, igualmente, pode ser utilizado, com segurança, como fonte de consulta, pela nobre classe dos advogados e pelos ilustres representantes do Ministério Público, esgrimistas do processo, que muito contribuíram para o êxito da referida jornada.
A coordenação geral do evento foi dividida entre o já mencionado presidente do Superior Tribunal de Justiça e o vice-presidente, ministro Luis Felipe Salomão, juiz de carreira de vasta experiência institucional, e teve a coordenação científica do ministro Paulo Sérgio Domingues, ex-presidente da Ajufe, e que possui, além da brilhante carreira como julgador na justiça federal (TRF-3), sólida formação acadêmica em direito ambiental construída em boa parte na Alemanha. Portanto, a produção destes enunciados não foi algo singelo ou açodado, mas passou pelo criterioso crivo dos ministros do STJ, membros efetivos e suplentes do CJF e, também, pelos desembargadores presidentes dos TRFs e líderes da advocacia, do ministério público e dos professores dos programas de pós-graduação de importantes universidades brasileiras, que foram convidados como experts no assunto.
Os trabalhos ficaram tecnicamente bem divididos entre três comissões temáticas: a Comissão I, que debateu e aprovou provisoriamente os enunciados referentes a responsabilidade civil, administrativa e criminal em virtude dos desmatamentos e das queimadas no contexto das mudanças climáticas; a Comissão II, que debateu e aprovou provisoriamente os enunciados referentes às responsabilidades civil, administrativa e criminal em crises hídricas no contexto das mudanças climáticas; e a Comissão III, que debateu e aprovou provisoriamente os enunciados que tratavam da gestão judicial de litígios e demandas estruturais no contexto das mudanças climáticas. Referidas comissões foram presididas com maestria pelos ministros Sebastião Reis Júnior, ministro Moura Ribeiro e ministro Sérgio Kukina. Como juristas convidados, tivemos a honra e a felicidade de integrar essas Comissões e ainda fazer a proposição de alguns dos enunciados aprovados [3].
Por fim, no dia 26 de novembro de 2024, foi realizado debate democrático e plural, com a deliberação, em sessão plenária, sobre a aprovação ou rejeição definitiva dos enunciados de Direito Climático e de Direito Ambiental aprovados nas três comissões no dia anterior (25 de novembro). É importante grifar que as sugestões para as proposições de enunciados foram abertas para a comunidade jurídica para que esta pudesse participar do processo de consulta, uma prática bastante salutar em tempos que se pretende fortalecer um conceito consistente de democracia climática e ambiental que faz parte da estrutura do próprio Estado Socioambiental de Direito contemporâneo.
Nesse cenário de emergência climática, agravado pelo aumento de desastres e de catástrofes de causas antrópicas, de poluição das águas e de perda da biodiversidade, cabe mencionar alguns dos enunciados do CJF que podem certamente subsidiar decisões futuras nos chamados litígios climáticos e ambientais. São eles:
“Enunciado 2: O lucro obtido por meio de degradação ambiental constitui ilegítima usurpação de bens da coletividade e configura enriquecimento sem causa, razão pela qual deve ser restituído pelo infrator.
Enunciado 5: A valoração de dano ambiental para fins de fixação de obrigação reparatória prescinde de prova pericial em situações que manifestem dano concreto e manifesto. A valoração pode ser procedida seja por estimativa de dados técnicos, seja na fase de liquidação.
Enunciado 6: Os danos ambientais derivados de infrações de normas de segurança, prevenção e precaução quanto à emissão de poluentes ou contaminantes, cujos padrões sejam estabelecidos em legislação, prescindem de indicação de prejuízos concretos e determinados, dada a impossibilidade fática de plenamente delimitar os efeitos ambientais nocivos e prejudiciais.
Enunciado 7: As práticas de desmatamento de florestas nativas e de queimadas implicam grave violação da ordem pública ecológica, na medida em que acarretam degradação do patrimônio florestal nacional, reconhecido como interesse público privilegiado, meritório de proteção reforçada no Brasil, essencial ao combate à mudança climática e ao aquecimento global.
Enunciado 8: A exploração da propriedade privada deve observar critérios de sustentabilidade, inclusive na perspectiva ecológica, sendo o uso do fogo técnica residual e subsidiária, no que se refere aos pequenos produtores rurais, além de prática terminantemente vedada para as atividades agroindustriais e todas as demais atividades exercidas sob o modelo empresarial.
Enunciado 11: O reconhecimento do Estado de Emergência Climática e dos deveres estatais de proteção (deveres de mitigação e adaptação) torna imperativa a aplicação dos princípios da proibição de retrocesso, da progressividade e da proibição de proteção insuficiente (ou deficiente) em matéria ambiental e climática.
Enunciado 12: O juiz pode considerar como elemento de prova os dados obtidos por meio de georreferenciamento, geoprocessamento, sistemas de informações geográficas (SIG) e sensoriamento remoto para a comprovação de desmatamento, queimadas, conversão de vegetação nativa campestre em culturas agrícolas e incêndios.
Enunciado 15: A ausência de prova técnica para a comprovação do efetivo dano ambiental não inviabiliza o reconhecimento do dever de reparação ambiental.
Enunciado 16: Nos casos de litigância climática, o magistrado deve aplicar, em regra, com base no princípio constitucional da precaução, a inversão do ônus da prova contra o poluidor/emissor, tendo obrigatoriamente que justificar os casos de não aplicação do art. 6o, VIII, do CDC.
Enunciado 17: O juiz, ao decidir casos de litigância climática, pode declarar o direito ao sistema climático estável como um direito fundamental de terceira geração ou novíssima dimensão em virtude da emergência climática e suas catastróficas consequências.
Enunciado 19: O dano ambiental resultante do desmatamento ilegal deve compreender não apenas o desequilíbrio e destruição dos ecossistemas locais e regionais, mas também os efeitos negativos resultantes na qualidade de vida das comunidades circunvizinhas.
Enunciado 20: A metodologia de mensuração de danos ambientais deve considerar a perda da biodiversidade, a redução dos serviços ecossistêmicos e as repercussões socioeconômicas nas comunidades afetadas, garantindo que as indenizações reflitam a extensão do dano.
Enunciado 22: A indenização a título de dano ambiental e climático por desmatamento ilegal ou incêndios florestais deve priorizar a destinação para o bioma ou localidade afetados pela supressão de vegetação.
Enunciado 27: A materialidade dos crimes contra a flora poderá ser comprovada por todos os meios probatórios lícitos admitidos pelo ordenamento jurídico, inclusive fotografias, imagens de satélite, relatórios de fiscalização e depoimentos de testemunhas, não estando condicionada à realização de perícia, para fins de responsabilidade penal.
Enunciado 30: Os agentes responsáveis, em suas ações e omissões, por emissões ilegais de gases de efeito estufa, assim como perdas de sumidouros, enquadram- se no conceito normativo brasileiro de poluidor, a invocar o regime de tripla responsabilização pelo dano ambiental.
Enunciado 31: Grandes empreendimentos devem submeter-se a estudo de impacto climático, com vistas ao diagnóstico de emissões de gases de efeito estufa, como medida necessária à identificação de danos e riscos associados à crise climática, bem como para a adequada imposição de medidas de mitigação e compensação (art. 3°, incisos I, II, III e V, c/c art. 4°, inciso I, e art. 5°, inciso IV, todos da Lei n. 12.187/2010, bem como art. 2°, incisos II e IV, e art. 3°, incisos II e III, da Lei n. 14.904/2024.
Enunciado 32: Nas demandas relacionadas a queimadas e desmatamentos, além da obrigação de restaurar a área atingida e de indenizar os danos climáticos, deve- se calcular o impacto causado na disponibilidade hídrica e na biodiversidade.
Enunciado 34: A responsabilização civil por danos ambientais decorrentes de incêndios e queimadas ilegais deverá contemplar também os danos climáticos, nas esferas moral e material.
Enunciado 38: Nos termos do art. 225, § 1o, incisos I e IV, da Constituição Federal, os princípios da prevenção e da precaução devem ser necessariamente observados e aplicados em face das crises hídricas e no contexto das mudanças climáticas, como instrumento fundamental para a gestão das águas.
Enunciado 43: Tanto na reparação quanto na indenização por responsabilidade civil, deverão ser considerados os danos que atingirão gerações futuras, como forma de dar efetividade ao princípio da responsabilidade intergeracional.
Enunciado 46: Nos termos do art. 182 da Constituição Federal, os municípios são obrigados a elaborar e revisar seus planos diretores para ajustá-los aos arts. 42-A e 42-B do Estatuto das Cidades; devendo, ainda, introduzir em seus planos diretores, medidas de mitigação e adaptação às mudanças do clima, contempladas na Lei n. 14.904/2024.
Enunciado 48: Permite-se a utilização do sistema de informação geográfico, bem como de dados obtidos por sensoriamento remoto e de sistemas e plataformas de informações obtidas por satélite, para a defesa eficiente do meio ambiente e dos recursos hídricos.
Enunciado 51: Em havendo poluição das águas, os danos podem ser tidos como presumidos ou in re ipsa.
Enunciado 57: A identificação e o mapeamento de áreas de risco de desastres, assim como a adoção de medidas visando à sua prevenção, constituem obrigações dos municípios, que não estão condicionadas à sua prévia inscrição em qualquer cadastro.
Enunciado 66: Os processos estruturais ambientais devem privilegiar a elaboração dialogada de planos e cronogramas de implementação, avaliação e revisão das reformas necessárias, sempre com a integração de todos os interessados, incluídos os órgãos especializados na proteção do meio ambiente e as comunidades atingidas, salvo impossibilidade justificada.
Enunciado 69: Para a tutela ambiental, especialmente para as ações inibitórias e para os processos estruturais relativos à matéria, é admissível o emprego da prova estatística ou por amostragem.
Enunciado 71: O processo decisório e consensual em litígios e demandas estruturais de fundo climático deverá ser orientado por evidências científicas e considerar as diferenças socioeconômicas, estruturais e ambientais presentes no país, de forma a assegurar a participação social e da comunidade acadêmica na construção dos parâmetros decisórios e negociais necessários à solução da lide.
Enunciado 77: Nos acordos celebrados em ações voltadas à tutela do meio ambiente, recomenda-se a inclusão de cláusula que preveja a criação de uma estrutura de compliance ambiental no âmbito das empresas envolvidas, sejam públicas ou privadas, devendo englobar mecanismos de controle interno, canais de denúncia, códigos de conduta ambiental e procedimentos específicos para prevenir, detectar e corrigir irregularidades.
Enunciado 78: Por força do princípio da responsabilidade intergeracional, nos litígios e demandas estruturais decorrentes das mudanças climáticas, o Poder Judiciário deve adotar práticas de governança colaborativa com especialistas e órgãos ambientais, priorizando soluções que promovam a recuperação ambiental e a mitigação dos riscos sociais e econômicos.
Enunciado 82: A tutela pecuniária ambiental tem urgência quando o valor se destina à recuperação (reparação in natura) ou restauração do meio ambiente danificado.
Enunciado 86: Na resolução de questões ambientais complexas, recomenda-se a atuação de Centro de Conciliação especializado em matéria ambiental para a obtenção de acordo e acompanhamento da implementação fática das medidas acordadas.
Enunciado 90: Os tribunais podem criar, por cooperação judiciária, núcleos de justiça 4.0 especializados em litígios decorrentes de crises ou acidentes climáticos, integrados por magistrados de vários ramos do Judiciário.
Enunciado 91: O diálogo institucional é fundamental para que os litígios estruturais tenham uma adequada solução consensual e efetiva, sendo o juiz o condutor das respectivas ações que envolvem esse diálogo, pelo dever de lealdade, consulta, prevenção, esclarecimento e auxílio às partes na remoção de obstáculos processuais.
Enunciado 92: O processo estrutural pode ter como objeto a implementação de políticas públicas que visam ao cumprimento de obrigações internacionais ambientais assumidas pelo Brasil.
Enunciado 102: Demandas estruturais que digam respeito a danos ambientais, dentre os quais os climáticos, devem priorizar ações de prevenção, reparação e indenização, assim como medidas de adaptação, voltadas às populações atingidas que sejam especialmente vulneráveis, como reconhecido pelo art. 4o, V, da Lei n. 12.187/2009”.
Em suma, tais enunciados, previstos expressamente no caderno publicado pelo CJF, por certo, vão ser considerados pelos operadores do Direito, em especial pelos juízes, que precisam decidir complexos casos de Direito Climático, um novíssimo direito, uma disciplina autônoma, multi e transdisciplinar, dentro de um cenário agravado pela vedação do non liquet no sistema constitucional brasileiro.
Concordemos ou não, no atual contexto das mudanças climáticas, as luzes estão efetivamente postas no debate jurídico sobre temas que envolvem: a) gestão judicial de litígios e demandas estruturais; b) responsabilidades civil, administrativa e criminal em crises hídricas; e, c) responsabilidades civil, administrativa e criminal em desmatamentos e queimadas. Cabe agora, após a publicação dos enunciados pelo CJF, aos juízes, a prolação de decisões cada vez melhor fundamentadas sobre clima e meio ambiente em processos que devem ter uma duração razoável [4] e observar o princípio de devido processo legal por disposição constitucional [5]. A magistratura brasileira, temos certeza, está bem preparada e entusiasmada para aceitar este complexo desafio nesta era do antropoceno e da aceleração das mudanças climáticas.
[1] Sobre a I Jornada Jurídica de Prevenção e Gerenciamento de Crises Ambientais do Conselho da Justiça Federal.
[2] Confira na íntegra os 103 enunciados de direito climático e de direito ambiental aprovados na I Jornada Jurídica de Prevenção e Gerenciamento de Crises Ambientais do Conselho da Justiça Federal. Disponível em: https://www2.cjf.jus.br/cjf/corregedoria-da-justica-federal/centro-de-estudos-judiciarios-1/eventos/jornadas/2024/ijjpgca. Acesso em: 01.02.2025.
[3] Sobre a programaçao integral do evento, ver: https://www2.cjf.jus.br/cjf/corregedoria-da-justica-federal/centro-de-estudos-judiciarios-1/eventos/jornadas/2024/ijjpgca. Acesso: 01.02.2025.
[4] “Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direitdo à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (…)
LXXVIII – a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação.”
[5] Como refere o Ministro Luiz Fux “O princípio do devido processo legal tem como um de seus fundamentos o processo “justo”, que é aquele adequado às necessidades de definição e realização dos direitos lesados. O senso de justiça informa, inclusive o due process of law na sua dupla conotação, a saber: lei justa e processo judicial justo – substantive due process of law e judicial process”.(FUX, Luiz. Curso de direito processual civil. 5ª. Ed. São Paulo: Editora Forense, 2024. P. 75).
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