Patrimônios sombrios da ditadura militar: preservar para não esquecer
7 de fevereiro de 2025, 9h25
O sucesso de bilheteria do filme nacional Ainda Estou Aqui, baseado no livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva, e a sua indicação para concorrer ao maior prêmio da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood em três categorias, tem suscitado um debate acerca dos lugares de memória traumática da ditadura civil-militar.
![antiga sede do DOI-Codi do RJ](https://www.conjur.com.br/wp-content/uploads/2025/01/image_preview-300x200.png)
Nesse conceito se enquadram prisões, delegacias e centros especializados das Forças Armadas, que serviram para a prática de tortura e desaparecimentos de opositores do regime de exceção. Recentemente, ocorreu no Rio de Janeiro uma mobilização de segmentos da sociedade carioca, solicitando ao poder público o tombamento do antigo prédio do DOI-Codi, onde esteve preso e foi brutalmente assassinado o ex-deputado federal, Rubens Paiva (PTB-SP), um dos personagens do referido filme. Além da patrimonialização desse espaço, a população em marcha queria a sua transformação em um Museu de Direitos Humanos, a exemplo do que existe em vários países da América do Sul.
Do ponto de vista teórico, a própria Unesco tem dado destaque a essa discussão e criou, com base na existência de passados sensíveis da história da humanidade, a expressão sítios de consciência para designar espaços de memória traumática, cujo exemplo mais contundente são os campos de concentração que existiram na Europa durante o Holocausto. Há quem denomine essa nova terminologia de bens culturais de patrimônios difíceis ou sombrios, por revelarem passados sensíveis de nossa História e carregarem consigo a experiência do luto e do trauma.
Os sítios de consciência possuem uma dimensão cidadã e pedagógica, ligada à questão da promoção e valorização dos direitos humanos. Eles passam a ser reconhecidos como bens culturais porque se quer que tais passados que os mesmos evocam devam ser lembrados pelas atuais e futuras gerações para que não mais se repitam. É a lembrança contra o esquecimento! É a expressão do direito à memória e ao passado como direitos culturais, indispensáveis ao fortalecimento da democracia.
Memória do trauma
É uma forma também de se contrapor ao negacionismo de grupos de extrema-direita da sociedade, que tentam omitir ou até mesmo construir outras narrativas acerca desses passados sensíveis de nossa História. Podemos também afirmar que esses patrimônios, ao trazerem a lembrança da dor e do sofrimento, lidam com questões relacionadas ao luto e ao trauma, razão porque são também chamados de patrimônios traumáticos.
Nos últimos anos, presenciamos ações locais de estados e municípios brasileiros que querem tombar espaços de tortura como patrimônios difíceis do período da ditadura civil-militar. O próprio Ministério Público Federal emitiu uma nota técnica referente a imóveis com potencial para serem transformados em espaços de memória, exigindo dos órgãos de preservação uma maior atenção quanto a essa questão e sugerindo a possibilidade de que esses locais possam ser tombados. Essa ação se faz extremamente necessária, a fim de se evitar que esses imóveis sejam descaracterizados ou até mesmo venham ser destruídos, apagando-se, assim, a memória de repressão.
No Brasil, o golpe civil-militar de 1964 inaugurou o regime de exceção mais longo da história republicana do país. Foram 21 anos marcados pelo arbítrio e violação sistemática dos direitos humanos. Passados 40 anos do fim do regime militar (1985) e mesmo com as recomendações do relatório final da Comissão Nacional da Verdade (2014), ainda persistem homenagens a ditadores e torturadores nas denominações de logradouros públicos.
Memorial da liberdade
Em 1972, em pleno regime ditatorial e no contexto das comemorações ufanistas do sesquicentenário de nossa Independência, foi inaugurado, em Fortaleza, o Mausoléu de Humberto de Alencar Castelo Branco (1897-1967). Os restos mortais do ex-presidente e de sua esposa, vítimas de um trágico acidente aéreo, foram lá depositados, além de objetos de uso pessoal do homenageado e que ressaltavam a trajetória política do primeiro presidente cearense da ditadura militar.
![](https://www.conjur.com.br/wp-content/uploads/2024/07/opiniao.jpg)
No ano passado, o governador do Ceará propôs, com respaldo no mesmo Relatório da Comissão Nacional da Verdade, que o referido mausoléu fosse transformado em um memorial de reconhecimento e exaltação a figuras de nossa história, que lutaram em prol do fim da escravidão, destacando-se, assim, nomes como Francisco José do Nascimento, o “Dragão do Mar” e de outros abolicionistas, responsáveis pelo pioneirismo cearense na libertação dos escravos.
Louvo o mérito da proposta governamental, mas como historiador e estudioso da história local, faço as seguintes ponderações: em substituição ao mausoléu, proponho que ali se instale o Memorial das Lutas pela Liberdade. Nesse novo lugar de memória, seria criado um livro de aço, a exemplo do que existe no Panteão da Pátria, em Brasília.
No referido livro seriam inscritos os nomes de heróis e heroínas cearenses que se dedicaram em sua trajetória pela luta da liberdade e da democracia. Assim, ampliaríamos o escopo desse espaço com outros nomes, que contribuíram para a construção do Ceará em diferentes momentos da História. Vale registrar que, ao lado do antigo mausoléu, já existe o Palácio da Abolição, sede do governo estadual e que um novo espaço com o mesmo nome se tornaria redundante.
Que tal inscrever no Memorial das Lutas pela Liberdade os nomes de Frei Tito de Alencar, que foi vítima de tortura durante o regime militar? E de Bárbara de Alencar, Jovita Feitosa, Antônio Conselheiro e outros, que já receberam o título de heróis nacionais? E os que lutaram pelo fim do trabalho escravo no Ceará, a exemplo de Francisco José do Nascimento, João Cordeiro, Maria Tomásia e outros.
Neste ano, completam-se duzentos anos da Confederação do Equador no Ceará (1824-1825), que resultou no fuzilamento de Padre Mororó, Carapinima, Azevedo Bolão, entre outros, onde hoje é o Passeio Público, tombado, em nível federal, pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). Esses mártires cearenses se insurgiram contra a tirania de D. Pedro 1º e deram sua vida em defesa da liberdade. Merecem, portanto, figurar nesse novo memorial, a fim de deixar registrado para as futuras gerações que o Ceará faz jus ao epíteto de “Terra da Luz” e por que não dizer, também, “Terra da Liberdade e da Democracia”?
Jacques Le Goff, historiador francês de notoriedade internacional, pelos seus trabalhos no contexto da chamada Nouvelle Histoire, disse, com muita propriedade, que os historiadores devem trabalhar para que a memória sirva como instrumento de libertação e não para a servidão humana. A transformação do mausoléu em Memorial das Lutas pela Liberdade irá, com certeza, contribuir para esse fim.
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