Responsabilização dos advogados públicos pareceristas: da Súmula 20 do TCE-PE e a PSV 142 do STF
6 de fevereiro de 2025, 16h26
A advocacia pública, como função essencial à Justiça, ocupa lugar de destaque no cenário jurídico nacional por sua missão constitucional de assegurar a juridicidade dos atos administrativos e a concretização de políticas públicas. A crescente tentativa de imputação de responsabilidade às advogadas e aos advogados públicos pareceristas, no entanto, revela um desafio que precisa ser enfrentado com firmeza pela sociedade, sob pena de comprometer a independência técnica de tais profissionais e, ato contínuo, inviabilizar atuações estatais garantidoras de direitos fundamentais.
Diante de tal cenário, merecem destaque a recente Súmula 20 do Tribunal de Contas do Estado de Pernambuco (TCE-PE) e a Proposta de Súmula Vinculante (PSV) 142, em trâmite no Supremo Tribunal Federal (STF), que buscam consolidar parâmetros e balizas adequados para a atuação técnica desses profissionais e, consequentemente, para eventual responsabilização.
Súmula 20 do TCE-PE: marco na proteção da advocacia pública
Aprovada por unanimidade em fevereiro de 2024, a Súmula 20 do TCE-PE estabeleceu um marco normativo essencial para a responsabilização de advogados públicos pareceristas. A referida súmula é resultado de um amplo diálogo institucional promovido em 2023, envolvendo o TCE-PE, a Ordem dos Advogados do Brasil — Seccional Pernambuco (OAB-PE), a Procuradoria-Geral do Município do Recife (PGM-Recife) e a Associação dos Procuradores do Município do Recife (APMR). Eis seu texto:
“A imputação de responsabilidade ao advogado pela emissão de parecer jurídico somente é possível quando reconhecido o dolo ou o erro grosseiro e demonstrados, de forma irrefutável, o nexo de causalidade e a vinculação subjetiva com o resultado ilícito ou danoso.“
O conteúdo da Súmula 20 reflete um esforço claro do TCE-PE em mitigar responsabilizações infundadas que possam comprometer a independência técnica dos advogados públicos. Ao exigir a demonstração incontestável do nexo de causalidade e da vinculação subjetiva entre a atuação do advogado e resultado, o Tribunal enfatiza a gravidade dos elementos necessários para ensejar qualquer responsabilização. A expressão “irrefutável”, empregada no texto, que significa “que não se pode contestar; incontestável, irrefragável, irrespondível”, e reforça o elevado ônus para fins de comprovação da vinculação da conduta do advogado parecerista a um eventual resultado ilícito e/ou danoso.
Além disso, a Súmula 20 consolida a ideia de que a responsabilização somente pode ocorrer em casos de condutas caracterizadas por dolo ou erro grosseiro. Essa delimitação no elemento subjetivo da conduta não apenas promove maior segurança jurídica, mas também protege a independência funcional de procuradores e procuradoras, afastando riscos de interpretações arbitrárias e a consequente responsabilização objetiva. Em última análise, a súmula contribui para evitar o fenômeno conhecido como “apagão das canetas”, no qual o receio de punições injustas desestimula a atuação técnica e fundamentada dos advogados públicos, prejudicando a eficiência e a efetividade da administração pública.
A relevância desses entendimentos transcende os limites de Pernambuco, apresentando-se como referência nacional na temática. Alinhada ao artigo 28 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Lindb), [1] a Súmula 20 reafirma que a responsabilização de agentes públicos exige a demonstração inequívoca de dolo ou erro grosseiro e, ato contínuo, o liame causal entre a opinião exarada e o eventual dano advindo do ato praticado com base no parecer. Nesse contexto, o TCE-PE reforça a proteção à conduta técnica e assegura que eventuais avaliações de responsabilidade sejam pautadas por critérios rigorosos e justos, em consonância com os princípios da administração pública.
PSV 142 e uniformização nacional da matéria
Em âmbito nacional, a Proposta de Súmula Vinculante 142, ajuizada pelo Conselho Federal da OAB perante o STF no ano de 2022, tem a seguinte redação: “Viola a Constituição Federal a imputação de responsabilidade ao advogado pela emissão de parecer ou opinião jurídica, sem demonstração de circunstâncias concretas que o vinculem subjetivamente ao propósito ilícito”.
![](https://www.conjur.com.br/wp-content/uploads/2024/07/opiniao.jpg)
Essa iniciativa reafirma a importância de preservar a autonomia técnica dos advogados públicos, que, na função consultiva, desempenham papel crucial para o controle preventivo de juridicidade. Ao evitar a multiplicação de processos administrativos e penais baseados em meras discordâncias quanto ao conteúdo técnico de pareceres, a PSV 142 busca garantir um exercício pleno e independente da advogada e do advogado público parecerista.
No âmbito da Proposta de Súmula Vinculante 142, a Associação Nacional das Procuradoras e dos Procuradores Municipais (ANPM) foi admitida na condição de amicus curiae, manifestando-se favoravelmente à edição da PSV e destacando as seguintes premissas:
“a) A atuação da advocacia pública municipal para a concretização do princípio republicano e para o controle preventivo de juridicidade dos atos do poder público.
(b) Quanto à responsabilização especificamente de advogados públicos, conforme o artigo 184 do CPC, esse agente público só responderá se, na representação judicial dos entes públicos ou na atividade de consultoria, agir com dolo ou fraude no exercício de suas funções.
(c) O artigo 28 da Lei nº 13.655/18, (Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro) restringiu a responsabilização dos agentes públicos aos casos em que haja o dolo ou erro grosseiro. Em relação aos advogados públicos, portanto, tanto no parecer opinativo quanto no vinculativo, exige-se a demonstração do dolo do parecerista em cometer a irregularidade, ou o erro grosseiro na manifestação exarada.
(d) É indispensável que seja delineado o elemento subjetivo do parecerista, no que se refere ao dolo e ao erro grosseiro, e que sejam estabelecidos critérios para garantir concretude jurídica ao conceito de erro grosseiro.”
A PSV 142 dialoga, portanto, diretamente com a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, na medida em que objetiva restringir a responsabilização de agentes públicos aos casos de dolo ou erro grosseiro. Esse alinhamento é crucial para impedir que procuradoras e procuradores sejam penalizados pela simples emissão de pareceres, afastando responsabilizações fundadas apenas na discordância quanto ao conteúdo técnico dos pareceres. Evita-se, assim, a indevida “criminalização do agir funcional da advocacia”. [2]
A advocacia pública se destaca como uma instituição indispensável para a implementação de políticas públicas. Nos municípios, a atuação dos procuradores e das procuradoras é decisiva para viabilizar soluções jurídicas que atendam às necessidades da população. Nesse contexto, a independência técnica das advogadas e dos advogados públicos é um pressuposto para que o gestor tenha condições de atuar conforme o direito e com a segurança jurídica necessária.
Reflexões finais
A Súmula 20 do TCE-PE e a PSV 142, caso seja aprovada pelo STF, são iniciativas que refletem a maturidade institucional no tratamento das prerrogativas das advogadas e dos advogados públicos pareceristas. Essas medidas fortalecem a estabilidade institucional e a segurança jurídica, pilares essenciais para a continuidade e a eficiência das políticas públicas.
Ao garantir um ambiente de atuação protegido contra arbitrariedades e interpretações que comprometam a independência técnica, essas iniciativas não apenas asseguram o exercício pleno da advocacia pública, mas também beneficiam a sociedade como destinatária final das políticas públicas implementadas pelos gestores. A valorização e o reforço das prerrogativas dos advogados pareceristas constituem, em última análise, uma vitória para o Estado democrático de direito, que depende de instituições sólidas para concretizar os direitos fundamentais.
Merece destaque, ainda, que tanto a Súmula 20 quanto a PSV 142 servem como suporte para o afastamento de um dos maiores males do controle externo: o chamado maniqueísmo hermenêutico (ou crime de hermenêutica), que ocorre quando uma possível e razoável interpretação da norma a ser concretizada é, em todo, fulminada por outra posição também razoável, considerada como única correta pelo órgão de controle. Em tais hipóteses, o controle externo se sugere como um dinasta hermenêutico, cuja expressão e interpretação hão de ser tidas como as únicas capazes desvendar o sentido da norma a ser aplicada.
De fato, o chamado crime de hermenêutica refere-se à tentativa de responsabilizar advogados públicos pareceristas pela interpretação jurídica que adotam em pareceres, ainda que esta seja fundamentada e respaldada por doutrina e jurisprudência. Trata-se, de plano, de um nítido desrespeito ao princípio da inviolabilidade das opiniões jurídicas, consagrado no artigo 2º, §3º, da Lei n. 8.906/1994 (Estatuto da Advocacia).
Por certo, a diversidade de interpretações possíveis diante de um mesmo quadro jurídico fundamenta a garantia de liberdade técnica, assegurando que o advogado público não seja punido apenas por adotar entendimento diverso daquele preferido pelos órgãos de controle. A imputação de responsabilidade em tais casos não apenas afronta a segurança jurídica e a independência funcional, mas também gera um ambiente de temor que pode paralisar a atuação técnica, comprometendo a efetividade da gestão pública.
Que a Súmula 20 sirva como exemplo de avanço no reconhecimento institucional das atividades dos advogados públicos e que a PSV 142, quando e se aprovada pelo STF, reforce esse compromisso, proporcionando uma advocacia pública ainda mais segura, técnica e eficiente, a serviço de uma administração pública juridicamente estável e comprometida com o interesse coletivo.
[1] Lindb – Decreto-Lei n. 4.657/1942 – Art. 28. o agente público responderá pessoalmente por suas decisões ou opiniões técnicas em caso de dolo ou erro grosseiro.
[2] Artigo publicado no Diário de Pernambuco, em 04 de março de 2024, de autoria de Fernando Ribeiro Lins, Gustavo Machado Tavares e Leonardo Avelar da Fonte.
Encontrou um erro? Avise nossa equipe!