Opinião

Qual é a natureza jurídica do perfilamento criminal?

Autor

  • é professor de Criminologia Direito Penal e Direito Processual Penal da Academia de Polícia Dr. Coriolano Nogueira Cobra (Acadepol) da Strong Business School (Strong FGV) da Universidade Municipal de São Caetano do Sul (USCS) e da Universidade Nove de Julho (Uninove) doutorando e mestre em Ciências Humanas e Sociais pela Universidade Federal do ABC (UFABC) delegado de polícia do estado de São Paulo (PC-SP).

    Ver todos os posts

6 de fevereiro de 2025, 9h24

O perfilamento criminal, como técnica de investigação, possui raízes históricas que remontam a práticas intuitivas na Europa medieval, mas que foram formalizadas a partir de avanços científicos e institucionais no século 19. A obra de Cesare Lombroso, com sua teoria do “criminoso nato”, trouxe pela primeira vez um enfoque sistemático à ideia de traçar características dos autores de crimes, embora hoje suas conclusões sejam amplamente criticadas por falta de rigor científico.

fbi.gov

Mas foi somente no século 20 que o perfilamento criminal começou a se consolidar como ferramenta de investigação, especialmente com o trabalho pioneiro do FBI nos anos 1970. A criação da Unidade de Ciência Comportamental foi crucial para o desenvolvimento de metodologias aplicáveis a crimes em série, e sua consolidação como prática investigativa veio com estudos empíricos de casos famosos como os de Ted Bundy e John Wayne Gacy (Douglas e Olshaker, 1997).

A relevância do perfilamento criminal também exige uma reflexão ética e prática acerca de seu uso, especialmente quando aplicado em contextos que envolvem o risco de estigmatização ou discriminação de determinados grupos sociais. Como pontuado na análise de Siena (2024), o uso da técnica de perfilamento criminal deve ser cauteloso para evitar que parâmetros subjetivos ou preconceitos influenciem as conclusões. Ele enfatiza que o perfilamento, enquanto ferramenta científica, deve estar embasado em evidências concretas e na observação empírica rigorosa, com mecanismos de controle e revisão para evitar violações éticas e distorções nos resultados investigativos.

Conceito e aplicação

O conceito de perfilamento criminal envolve a análise de evidências comportamentais e contextuais para prever características do autor de um crime. É uma técnica interdisciplinar que combina psicologia, criminologia e ciências forenses, visando construir um modelo descritivo que auxilie na investigação e restrinja o número de suspeitos. Brent E. Turvey (2011) define o perfilamento como a aplicação de análise comportamental baseada em evidências para inferir padrões e prever comportamentos futuros. Essa técnica é particularmente útil em crimes de difícil resolução, como homicídios em série, sequestros e ataques motivados por fatores psicológicos. Contudo, enquanto nos Estados Unidos e no Reino Unido essa prática é amplamente utilizada, no Brasil ainda encontra resistência devido à falta de regulamentação e à escassez de profissionais especializados.

O perfilamento criminal tem sido aplicado de maneira crescente em diferentes áreas, cada uma com propósitos específicos. O geoprofiling, por exemplo, utiliza a localização geográfica dos crimes para determinar a provável área de residência ou atuação do criminoso. Desenvolvido por Kim Rossmo (2000), esse método baseia-se no princípio de que os criminosos tendem a operar em zonas de conforto próximas à sua residência ou locais familiares. Outro exemplo é o perfilamento vitimológico, que analisa as características das vítimas para entender padrões de seleção e inferir possíveis motivações do autor. Essa abordagem é amplamente utilizada em crimes sexuais e sequestros, em que a escolha da vítima muitas vezes reflete aspectos psicológicos do perpetrador (Ainsworth, 2013). Além disso, o perfilamento psicológico busca traçar traços de personalidade e transtornos mentais, auxiliando na escolha de estratégias para interrogatório e negociação.

Spacca

Do ponto de vista jurídico, a natureza do perfilamento criminal pode ser analisada em quatro hipóteses principais: como meio de obtenção de prova, prova inominada, prova indiciária e fonte de prova. Quando utilizado como meio de obtenção de prova, o perfilamento serve como ferramenta para direcionar a coleta de evidências materiais ou testemunhais. Por exemplo, um perfil que sugira características físicas ou comportamentais específicas pode orientar os investigadores a focar em um grupo restrito de indivíduos, aumentando a eficiência do processo investigativo (Turvey, 2011). Embora não forneça evidências diretas, ele pode facilitar o acesso a provas que serão submetidas ao crivo judicial.

Admissibilidade e eficácia

Quando considerado como prova inominada, o perfilamento enfrenta desafios quanto à sua admissibilidade no processo penal. No Brasil, a liberdade probatória prevista no Código de Processo Penal (CPP) permite o uso de meios atípicos de prova, desde que respeitem o contraditório e o devido processo legal. No entanto, como destaca Ebisike (2008), a subjetividade inerente ao perfilamento pode limitar sua aceitação como prova autônoma, especialmente em sistemas jurídicos que privilegiam provas diretas e objetivas. Em outras jurisdições, como nos Estados Unidos, sua admissibilidade depende dos critérios Frye ou Daubert, que avaliam a relevância e a base científica do método empregado.

Como prova indiciária, o perfilamento é utilizado para construir uma cadeia lógica de evidências que apontam para a autoria do crime. Indícios obtidos por meio do perfilamento, como padrões comportamentais ou geográficos, podem ser combinados com outros elementos probatórios, como depoimentos ou registros de câmeras de segurança, para fortalecer a acusação ou a defesa (Kocsis, 2007). No entanto, sua utilização isolada é insuficiente para fundamentar uma condenação, dada a necessidade de corroborar as conclusões com provas materiais ou testemunhais.

Como fonte de prova, o perfilamento criminal é essencialmente uma estratégia auxiliar que direciona a investigação para caminhos específicos. Por exemplo, ao identificar que um criminoso apresenta um modus operandi característico, como o uso de armas específicas ou padrões de ataque, os investigadores podem concentrar esforços em locais ou contextos onde esse padrão seja mais provável de ocorrer (Ainsworth, 2013). Essa aplicação demonstra o potencial do perfilamento em otimizar os recursos investigativos e reduzir o tempo de resolução de casos complexos.

A adoção do perfilamento criminal no Brasil apresenta vantagens significativas, especialmente no contexto de crimes de alta complexidade, como os perpetrados por organizações criminosas ou serial killers. A utilização dessa técnica pode contribuir para a redução do índice de impunidade, além de melhorar a eficiência das forças de segurança pública. No entanto, sua implementação enfrenta desafios, incluindo a necessidade de formação especializada, a integração com técnicas tradicionais de investigação e a superação de preconceitos culturais que possam influenciar a objetividade das análises.

A eficácia do perfilamento criminal está intimamente ligada à qualidade das informações disponíveis e à competência técnica dos profissionais que o aplicam. Estudos realizados nos Estados Unidos indicam que o perfilamento pode reduzir significativamente o tempo de investigação, como demonstrado nos trabalhos de Douglas e Ressler (1997), que relataram casos em que o perfilamento auxiliou diretamente na captura de criminosos. Contudo, é importante reconhecer que sua assertividade não é absoluta e que erros podem ocorrer, especialmente em contextos onde há escassez de dados ou onde as informações disponíveis não são confiáveis.

Embora o perfilamento seja amplamente utilizado em países como Estados Unidos e Reino Unido, sua adoção no Brasil ainda é limitada. A falta de regulamentação específica e o ceticismo quanto à sua eficácia são fatores que contribuem para essa resistência. No entanto, iniciativas como a inclusão de disciplinas relacionadas em cursos de formação policial e a promoção de estudos acadêmicos sobre o tema podem ajudar a superar essas barreiras e ampliar seu uso no país.

A regulamentação do perfilamento criminal no Brasil também deve incluir diretrizes claras sobre sua admissibilidade como prova em processos judiciais. Nesse sentido, é essencial que os legisladores considerem experiências internacionais e adaptem as práticas ao contexto jurídico brasileiro, garantindo que a técnica seja aplicada de maneira ética e científica.

Em suma, o perfilamento criminal é uma ferramenta poderosa que pode contribuir significativamente para o aprimoramento das investigações criminais. Sua adoção no Brasil requer não apenas investimento em capacitação e infraestrutura, mas também um debate aprofundado sobre sua regulamentação jurídica e seu papel no processo penal. O uso responsável e ético do perfilamento, aliado à integração com outras técnicas investigativas, tem o potencial de transformar a forma como crimes complexos são investigados e solucionados no país.

 


Referências

AINWORTH, Peter. Psychology and Crime: Myths and Reality. Harlow: Pearson Education, 2013.

DOUGLAS, John; OLSHAKER, Mark. Mindhunter: Inside the FBI’s Elite Serial Crime Unit. New York: Scribner, 1997.

EBISIKE, Norbert. Offender Profiling in the Courtroom: The Use and Abuse of Expert Witness Testimony. Westport: Praeger, 2008.

KOCSIS, Richard N. Criminal Profiling: Principles and Practice. Totowa: Humana Press, 2007.

ROSSMO, Kim. Geographic Profiling. Boca Raton: CRC Press, 2000.

SIENA, David Pimentel Barbosa de. Criminologia. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2024.

TURVEY, Brent E. Criminal Profiling: An Introduction to Behavioral Evidence Analysis. London: Academic Press, 2011.

Autores

  • é gradudo em Direito pela Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo, especialista em Direito Penal pela Escola Paulista da Magistratura, mestrado e doutorado em Ciências Humanas e Sociais pela Universidade Federal do ABC, delegado de polícia do estado de São Paulo, professor de Criminologia da Academia de Polícia Dr. Coriolano Nogueira Cobra, professor de Direito Penal, coordenador pedagógico do Curso Superior de Tecnologia em Segurança Pública e coordenador do Observatório de Segurança Pública da Universidade Municipal de São Caetano do Sul, tutor da Rede de Ensino à Distância da Secretaria Nacional de Segurança Pública, pesquisador do Grupo de Pesquisa em Segurança, Violência e Justiça da UFABC e membro do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais.

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!