Senso Incomum

Garantismo, IA e protocolos do CNJ: os algoritmos brigarão entre si?

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6 de fevereiro de 2025, 8h00

Abstract: “Um algoritmo olha/para o abismo/e o nada que vê/não permite compreender/a natureza humana”. Jorge Gomes Miranda

Textos instigantes que me chamaram a atenção

Leitor voraz da ConJur e até de bula de remédios, deparei-me com uma série de textos sobre garantismo, inteligência artificial e julgamentos sob perspectiva.

Chamaram-me a atenção

Por uma limitação de espaço, não poderei analisar ponto a ponto cada um dos textos referidos. Todos respeitáveis, bem escritos por competentes autores em suas áreas de atuação. Apenas farei perguntas — afinal, como diz Gadamer, o grande ensinamento da dialética socrática é que perguntar é mais difícil do que responder. Algumas partem de afirmativas — o que é normal em um debate.

Alguns argumentos já conhecidos que, creio, seguem sem respostas satisfatórias e do que tratam os artigos

Temos então dois artigos que criticam a minha posição que é totalmente contrária aos protocolos de julgamento sob perspectiva (sugiro ver aqui a minha coluna), um texto que critica fortemente a fragilização da presunção da inocência a partir de julgamentos que deslocam o polo de tensão para a palavra da vítima  e um artigo falando de como se faz e se usa a IA na pesquisa jurisprudencial.

Torno a insistir que minha crítica, há muitos anos, tem sido contra discricionariedade e o voluntarismo e às várias formas como esse fenômeno se expressa no Brasil, seja como ativismos, instrumentalismos, consequencialismos, realismos (esse cada vez mais forte com os precedentes à brasileira). Isso envolve um compromisso com a coerência teórica e com os princípios democráticos (arcando com o ônus que a democracia implica). Não poderia mudar tudo por concordar substancialmente com alguma causa. Isto é, não adiro a soluções ad hoc.

Antes de avançar, digo que minha crítica principal tem sido aos diversos tipos de discricionarismos e ao realismo jurídico (meu mais recente livro Ensino Jurídico em Crise é uma crítica contundente ao realismo jurídico). Aliás, meu texto criticando os julgamentos de gênero acima referido é uma crítica ao realismo.

Marcelo Cattoni foi o primeiro a detectar isso. O diabo mora nos detalhes. De todo modo, concordo absolutamente com a necessidade de combater o machismo e outras formas de discriminação no Judiciário. Destaco a grande qualidade e relevância das teorias feministas, em especial no direito.

Com efeito:

  • tais protocolos são mesmo uma boa forma de fazê-lo?

  • o CNJ é espaço adequado para elaborar normativas em âmbito administrativo com pretensões que podem superar em muito as leis? Afinal, se o protocolo disser pouco, torna-se trivial; se disser muito, pode tornar-se ilegal.

  • e quais seriam as consequências processuais do descumprimento dos protocolos?

  • por outro lado, quais os riscos de o cumprimento de tal protocolo gerar questionamentos de desrespeito à legalidade e imparcialidade pela defesa?

  • qual a efetividade de tais protocolos diante de um juiz machista?

  • já temos evidência científica suficiente para criar protocolos (esse termo de apelo médico) que desenviesariam alguém?

  • sabemos fazê-lo sem risco de gerarmos um viés contrário? As desvantagens parecem certas e as vantagens muito incertas.

Na mesma linha de Marcelo Cattoni, confesso que isso tudo me lembra as décadas de debate que travamos com os instrumentalistas processuais — ao qual remeto o leitor — que buscavam atrelar o desenho dos procedimentos e distribuição de poderes a escopos metajurídicos. Não concordamos com o instrumentalismo. Já o precedentalismo é uma espécie nova de instrumentalismo. No começo, nossas críticas eram malvistas, até que se consolidasse um garantismo brasileiro.

Por que os referidos textos devem ser analisados conjuntamente?

Seguindo em frente, indago: o que têm os textos referidos em comum? Ora, porque os textos, cada um a seu modo, permitem-me falar sobre aquela que é minha preocupação.

Trata-se de uma luta para a qual espero ter esses autores e autoras como aliados, até mesmo os críticos. O que quero é coerência e integridade na decisão judicial, respeito aos direitos fundamentais, às garantias e às promessas da Constituição.

Spacca

Por isso lutei tanto para inserir o artigo 926 no CPC. Uma democracia baseada no direito como critério institucional. Esse é o ponto. E tudo isso envolve algumas decisões difíceis, pois. O canto da sereia muda de nota. Mudam os ventos. Mas a sereia continua sendo uma sereia. O encanto da IA, do viés de gênero, e o combate à corrupção, à impunidade, as análises econômicas… Esse é o ponto. Espero que os críticos vejam não apenas a diferença, mas a similaridade. E que estejam comigo na luta.

Na verdade, considerando-se que o meu texto (criticando os protocolos) recebeu críticas duras de duas professoras e essas, por sua vez, tem a sua posição fortemente contestada por outro texto, resta saber como entra na discussão o texto dos ilustres e estimados Aury e Alexandre.

Aury e Alexandre são engajados, notoriamente, na teoria garantista. Também as quatro advogadas que escreveram o texto sobre a castração da presunção da inocência mostram pendores fortemente garantistas. Disso se tira que, sendo isso verdadeiro, de que modo se encaixariam as posições das professoras Valdete e Fabiana, que se colocam antiteticamente às posições das quatro advogadas (falo da especificidade dos crimes sexuais)? Sim, porque o julgamento sob perspectiva é antitético ao garantismo — se este for entendido como fazer democracia no e pelo direito, direito esse resistente aos seus predadores.

Vejamos. O texto de Aury e Alexandre fala dos avanços da IA para encontrar e pesquisar jurisprudência (claro que não trata só disso; de todo modo, anunciam que possuem em seu acervo mais de 150 mil acórdãos do STJ). Os algoritmos são alimentados para fazerem esse trabalho, é claro.

Porém, algoritmos não tem consciência e não fazem cognição. Já dizia Dworkin, em O Império do Direito:

Não concebi um algoritmo para o tribunal. Nenhuma mágica eletrônica poderia elaborar, a partir de meus argumentos, um programa de computador que fornecesse um veredito aceito por todos, uma vez que os fatos do caso e o texto de todas as leis e decisões judiciais passadas fossem colocados à disposição do computador.

Dezessete indagações e reflexões que surgem da conjuminação dos diversos textos

Disso decorre um conjunto considerável de questionamentos e reflexões:

  • se os algoritmos são um avanço — Aury chega a dizer que os resultados são “assustadores” (no sentido de alvissareiros, é claro) — de que modo resolverão processos (considerando que os robôs já elaboram esboços de decisões e fazem as próprias pesquisas de jurisprudência no interior dos Tribunais) se forem alimentados de acordo com os protocolos de gênero e raça? Por exemplo, na especificidade, que valor darão à palavra da vítima, levando em conta as críticas das quatro advogadas que denunciam “a castração da presunção da inocência”?

  • levando em conta o que escrevem Aury e Alexandre de que a advogada e player Márcia Erias contou que a instância do Aury (ver o texto dos autores para entender o conceito de “instância”) respondeu diversas questões práticas sobre um caso concreto de maneira rápida e objetiva, sem que precisasse abrir o livro Direito Processual Penal, tem-se que a IA assume um certo grau de plenipotenciariedade ou, se quiserem, autonomia de resolução — com dispensa da doutrina (isso me parece grave). Pensemos nisso em termos dos robôs do STJ e do STF. Pensemos nas salas de aula: já não precisaremos de livros de doutrina; teorias serão dispensáveis; esta(re)mos na era da total jurisprudencialização do direito brasileiro — e isto é fato (já notaram que a cada julgamento no STJ e STF — o que já é imitado nos demais tribunais, é feita uma tese geral e abstrata?). Alguém dirá: tem supervisão humana. Todavia, isso funciona mais ou menos como o caso de um processo de 20 volumes resumido em cinco páginas (o exemplo é do ministro Barroso que falou das vantagens e propriedades do robô) — alguém fará a conferência de eventual alucinação ou omissão do robô? Se o robô examina, por exemplo, um acervo composto de cinco mil acórdãos, como isso será conferido pelo olhar humano?

  • levando em conta que o texto de Aury e Alexandre não falam em julgamento sob perspectiva e sendo a minha análise relacionada, aqui, somente às condições de possibilidade de se encontrar um precedente jurisprudencial — pretendo saber, na medida em que a IA é protagonista na busca de jurisprudência que irá decidir o caso, se o ChatGPT (o robô ou correlato) encontrará precedentes com viés ou sem viés? Dá para ordenar ao robô que não use viés?

  • isto é, a busca terá viés ou perspectiva na origem, fazendo com que o resultado já virá “sob perspectiva de”? Ou “sem”?

  • a propósito, dois robôs, alimentados do mesmo modo, dependendo da pergunta sobre o mesmo “evento”, responderão do mesmo modo? Não falo aqui, por óbvio, da busca a ser feita pela defesa, mas, sim, da busca da resposta feita pela IA do Tribunal.

  • tudo isso leva a um elemento fulcral que não aparece nas discussões sobre “IA-jurisprudência”: o que é um precedente para a IA se nem a doutrina sabe o que é (na verdade, a doutrina dominante lida ou aceita um conceito equivocado, imitando-espelhando a já declarada inconstitucional tese dos assentos portugueses), na medida em que “existem” precedentes “persuasivos” e “qualificados” e que as teses, por transcenderem o caso original, impossibilitam a busca da holding, que é condição de possibilidade de se fazer distinguishing?

  • o robô compara a similitude fática? Mas, isso basta? Precedente seria isso? Afinal, qual é o conceito com o qual lida o robô?

  • é assim que se encontra um precedente jurisprudencial?

  • o que é necessário para que tenhamos um precedente? A epistemologia jurídica é dispensável? Aliás, o que é epistemologia? Com certeza, não é um discurso de primeiro nível, como tenho visto por aí. Trata-se de um discurso de segundo nível, como explicito em longo verbete no livro Ensino Jurídico e(m) Crise, a partir de autores como Bachelard e Haack.

  • De que modo vamos preservar a teoria garantista, se o sistema para o qual é feita a IA (pesquisar jurisprudência é o lema!) está programado pelo mote “o direito é o que os tribunais dizem que é”? Isto porque — e eis um problema de extrema gravidade — não consta que garantismo e realismo sejam compatíveis, mormente no modo como se pratica o realismo no Brasil. Na verdade, o realismo jurídico é incompatível com a civil law, na essência. Como diz José Luis Marti, realismo é incompatível com o Estado Democrático de Direito.

  • assim, preservar quais garantias? As estabelecidas pelos Códigos, a CF ou por quem determina a “indeterminabilidade originária do direito” — (sic)? Afinal, o realismo jurídico é uma teoria cética, bastando ver o que dizem os próceres do precedentalismo.

  • repetindo uma indagação reflexiva feita anteriormente: para além da discussão dos julgamentos sob perspectiva, que valor tem a doutrina, se está dispensada pela jurisprudência e pela jurisprudencialização, principalmente se levarmos em conta que o ChatGPT (ou o nome que se dê) é um plagiador, como bem denuncia Noam Chomsky? Aliás, perguntei para o ChatGPT sobre o significado de “pamprincipiologismo” e o plagiador respondeu…sem citar o criador do conceito! Teremos um direito aplicado sem doutrina? Trocamos de civil law para o common law? O parlamento é dispensável?

  • considerando o texto garantista de Beatriz, Bárbara, Mariani e Mariane, que se confronta teoreticamente com a posição dos adeptos dos julgamentos sob perspectiva (embora elas não tenham tratado diretamente do protocolo, mas isso está implícito), os garantistas brigarão entre si, assim como haverá uma batalha entre os algoritmos alimentados por garantistas e por adeptos do julgamento sob perspectiva?

  • será uma guerra dogmático-criterialista, em que tudo é convencionalidade?

  • em síntese — e aqui falo do fenômeno do realismo jurisprudencialista brasileiro, no qual os “precedentes” são “regras gerais e abstratas”, qual será o papel da academia (mestrado e doutorado)? Partimos para o case-law?

  • se tudo será (ou já-quase-é) jurisprudencializado, com eficazes e rápidos modelos de busca de precedentes (veja-se o modelo trabalhado por Aury, Alexandre e sua equipe), qual será o papel da teoria do direito? Como advogado que sou, examinando o cenário da vitória do realismo, terei que, inexoravelmente, recorrer ao novo modelo — afinal, se o realismo jurídico triunfou, terei de me adaptar? Porém, na função de professor que sou há quatro décadas e teórico do direito, estamos diante do réquiem da teoria? O case-law abrasileirado venceu?

  • por fim, parafraseando Harrari em seu novo livro Nexus, de que modo poderemos estabelecer um debate público sobre o direito e sua relação com a sociedade e com o Estado, se já não temos como saber qual é o vetor de produção do direito — já não é o parlamento, e, sim, o judiciário por meio de IA — e como saberemos se estamos falando de algo produzido por outro ser humano ou por um chatbot disfarçado de humano?

Eis o que os ricos e diversos textos têm em comum. Belos artigos. E daí surgem minhas indagações acima. E perplexidades. Trazidas à luz de Blackburn e Davidson.

O garantismo e o acesso à Justiça — uma explicação necessária

Não há como não confrontar julgamento sob (ou em) perspectiva com o garantismo jurídico. Diria que é impossível. Marcelo Cattoni lida muito bem com esses temas, como o fez em sua tese de doutorado (Devido Processo Legislativo, 1999, na 3ª Ed em 2016), por meio de uma certa ironia com o garantismo e o acesso à justiça como acesso à ordem jurídica justa. O que é ordem justa? O garantismo é garantia ao direito do Estado democrático (Constituição) ou é garantia de acesso a uma ordem justa? Ou seja, para dizer hoje (parafraseando Marcelo), seria sempre um garantismo de viés em que o justo é estabelecido previamente por meio de um viés?

Em tom semelhante, ouso dizer, diante do intrínseco desacordo sobre a concepção de justiça (igualitarismo, libertarianismo etc.) no debate político, Ronald Dworkin relaciona a prática interpretativa do direito com a virtude da integridade — coerência de princípios na relação indivíduo – Estado.

Para as pessoas que pensam os protocolos (gênero e raça) como acesso mais justo e/ou eficiente à justiça, não haveria nenhum problema, portanto, em instrumentalizar o garantismo. Ou seja, se protocolo garante o acesso a uma ordem justa, a garantia não se refere ao processo, mas a uma ordem de valores (e sabemos bem o que é isso), em que processo e direito são relativizados, condicionados à realização desses valores metajuridicos, embora subjacentes ao direito.

A pergunta, portanto, que se coloca é: do ponto de vista do processo, do contraditório, da ampla defesa, essa instrumentalização será ainda garantista? Isso é ainda a “coisa-garantismo”? O que é garantismo? O que são garantias?

Mais uma vez indago: com o pragmatismo de se buscar os meios adequados e necessários para a realização de escopos ou finalidades pré-determinadas, ainda teremos um processo garantidor ou teremos um neo instrumentalismo “justo”, pelo qual “primeiro decido, depois fundamento”?

Em outras palavras, trata-se apenas de legitimação pelo processo, não de construção democrática da decisão.

Trata-se, finalmente, nestes tempos, de legitimação pelos algoritmos.

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[1] MARINONI, Luiz Guilherme. MITIDIERO, Daniel. ARENHART, Sérgio Cruz. O novo processo civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, p. 105.

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