Descabido cumprimento imediato de pena privativa de liberdade na colaboração
6 de fevereiro de 2025, 6h38
O acordo de colaboração premiada, introduzido em nosso ordenamento pela Lei n° 12.850/2013, alia-se a outros instrumentos de Direito Penal Negocial (transação penal, suspensão condicional do processo e acordo de não persecução penal) e visa atender compromissos internacionais assumidos pela República Federativa do Brasil nas Convenções de Caracas (Convenção Interamericana contra a Corrupção, promulgada pelo Decreto n° 4.410/2002), de Palermo (Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional, promulgada pelo Decreto n° 5.015/2004) e de Mérida (Convenção das Nações Unidas contra a corrupção, documento promulgado pelo Decreto n° 5.687/2006).
Com o escopo de revelar-se atrativo ao investigado/acusado, a ponto de estimulá-lo a colaborar com a persecução penal, o artigo 4º, caput, §§ 4º e 5º, da Lei 12.850/2013 prevê alguns benefícios que podem ser concedidos ao agente.
No julgamento do AgRg nos EDcl na Pet n° 13.974/DF [1], a Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça, por maioria, definiu que referido rol de benefícios não é exaustivo, revelando-se cabível a fixação de sanções penais atípicas à luz da gravidade do fato e da eficácia da colaboração.
Naquela assentada, a Corte Especial deliberou sobre a homologação de acordo que estabeleceu uma sanção máxima de até 12 anos de reclusão (em caso de eventual sentença condenatória) e a possibilidade de progressão de regime fora da exceção estabelecida pelo artigo 4º, §5º, da Lei 12.850/13, e sem a observância das condições objetivas do artigo 112 da Lei n° 7.210/84 (LEP).
O STJ concluiu pela homologação do pacto, sob o fundamento de que o combate à moderna criminalidade organizada deu azo à criação de um novo modelo de justiça negocial, no qual o princípio da boa-fé objetiva e o dever de lealdade adquirem especial relevo, não se encontrando o processo penal imune à autonomia da vontade das partes.
Fixadas essas premissas, passo a examinar a legalidade das partes fixarem, em acordo de colaboração premiada, pena privativa de liberdade a ser cumprida imediatamente pelo colaborador após a homologação judicial do pacto e independentemente da prolação de eventual sentença condenatória.
Ambivalência funcional do Processo Penal; instrumento que permite a investigação eficiente dos fatos delitivos e que tutela o cidadão contra possíveis excessos do Estado
Em um Estado de Direito, o curso regular do processo penal constitui instrumento tanto de aplicação de eventual sanção (obrigação penal positiva) quanto de garantia contra possíveis excessos praticados pela acusação (obrigações penais negativas).
Discorrendo sobre as obrigações penais positivas, Pedro Kenne da Silva [2] preceitua que:
“A equilibrada dupla função do processo penal hoje impregna o próprio sistema internacional de proteção dos direitos humanos, a ponto de ser possível identificar, pelo exame dos julgados da CIDH e da CEDH, a par das obrigações negativas, a existência de obrigações processuais penais positivas impostas aos Estados-parte. […] O resultado disso é que os julgados desse órgão nos quais decidiu-se contra a República Federativa do Brasil têm, como marca comum, a condenação não por excessos cometidos – mas por falta de efetividade de sanções a determinadas pessoas, sobretudo com relação à persecução (como obrigação de meio) em prazo razoável.”
No que tange às obrigações penais negativas, destaco trecho de voto exarado pelo ministro Gilmar Mendes, nos autos do HC nº 164.493 [3], no qual Sua Excelência consigna que “[…] pode-se afirmar que o fundamento do processo penal, sua razão de existir, é o reconhecimento de que, em um Estado Democrático de Direito, uma sanção penal somente pode ser imposta após a obtenção de uma condenação definitiva com total respeito às regras do devido processo”.
Feitas essas considerações, tem-se que o Direito Processual Penal pátrio não admite o cumprimento de prisão oriunda de mera cláusula de acordo, ainda que homologado judicialmente; prisão está sujeita à cláusula de reserva jurisdicional e decorre de decisão cautelar (prisão temporária/preventiva) ou de sentença condenatória (matéria que é objeto de legalidade estrita).
Diversamente do observado no sistema norte-americano, o Brasil não adota o plea bargaining (instituto rejeitado pelo Congresso Nacional, quando do trâmite do Projeto de Lei n° 882/2019 [4]), no qual o acusado confessa a autoria delitiva em troca da imposição, por parte do órgão de acusação, de uma pena possivelmente inferior à que poderia ser aplicada ao final da instrução criminal.
Discorrendo sobre esse específico tema, Vinicius Gomes de Vasconcellos [5] afirma que “[…] além de violar premissa básica de que somente é legítima a pena imposta após a condenação do imputado […], caracteriza-se descumprimento da determinação normativa de que a condenação não pode se fundamentar exclusivamente nas declarações do delator (art. 4°, §16, Lei 12.850/13)”.
Tem-se, ainda, que execução definitiva da pena, de acordo com o Pleno do Pretório Excelso, demanda o trânsito em julgado de sentença condenatória (ADCs 43 [6], 44 e 54).
Constata-se que o cumprimento de pena privativa de liberdade, sem que haja o exercício do contraditório e da ampla defesa, viola o sistema acusatório [7].
Dissertando sobre o tema, Geraldo Prado [8] enuncia que “Um sistema tendencialmente acusatório pode, por si só, não assegurar a democracia, mas, funcionando sob a égide do <estado de direito> e da <dignidade da pessoa humana>, configura modelo de sistema social capaz de opor resistência aos autoritarismos”.
Para Michele Taruffo [9], “[…] tem-se um processo justo quando são postas em prática todas as garantias processuais fundamentais, e em particular aquelas que concernem às partes”.
No processo penal lido sob a ótica constitucional, o ônus de carrear aos autos provas idôneas da prática delitiva imputada incumbe, via de regra, a quem acusa (artigo 156, caput, do CPP [10]), revelando-se inadmissível o cumprimento de pena privativa de liberdade fixada, exclusivamente, com base em acordo.
Esse negócio jurídico processual não pode ser utilizado como forma do Estado-acusação se desonerar da citada incumbência probatória, nos crimes sujeitos à ação penal de iniciativa pública.
O fato da Corte Especial do STJ, nos autos do retrocitado julgado (AgRg nos EDcl na Pet n° 13.974/DF), admitir a fixação de sanções penais atípicas (que seriam mais benéficas para o agente naquela situação específica) não autoriza que o órgão de acusação passe a sugerir a fixação de pena privativa de liberdade como condição para a pactuação de acordo de colaboração, sob pena de que um incentivo estipulado pelo legislador em prol do investigado/acusado se transmude em prejuízo ao jurisdicionado, viabilizando que o parquet negocie eventual pena a ser cumprida imediatamente pelo colaborador sem que haja prestação jurisdicional de cunho exauriente por parte do Poder Judiciário.
Neste ponto, destaco que a Corte Especial do STJ, nos autos do AgRg na Pet n° 12.673/DF [11], teve a oportunidade de examinar o tema e, por maioria, concluiu pela viabilidade do cumprimento imediato de pena privativa de liberdade após a homologação do acordo de colaboração premiada.
Contudo, a defesa, inconformada com a decisão proferida pelo STJ, impetrou habeas corpus perante o Supremo Tribunal Federal (HC 240.971/PR [12]), oportunidade em que o relator ministro Gilmar Mendes concedeu a ordem para impedir o cumprimento da pena privativa de liberdade, fixada em acordo de colaboração premiada firmado entre o MPF e o paciente, até que sobrevenha eventual sentença penal condenatória transitada em julgado.
Em sede de agravo regimental, a referida decisão restou mantida pela 2ª Turma do STF, tendo o Relator consignado que [13]:
“[…] A persecução penal não se exaure na celebração do acordo de colaboração. A antecipação dos efeitos de sentença penal condenatória mediante ato negocial escancara, com a devida vênia, as deficiências do aparato estatal persecutório. A opção pela supressão do processo, com todas as suas garantias e consectários, não encontra guarida na legislação conformadora do instituto da colaboração premiada, muito menos na Constituição.”
Constata-se, portanto, que a conclusão acerca da imputação delitiva deve ser realizada pelo Estado-Juiz na fase de sentença, etapa que envolve a análise crítica das evidências coletadas durante o processo e assegura a observância do devido standard probatório.
Nesse diapasão, Jordi Ferrer Beltran [14] afirma que:
“Dispor de standards de prova devidamente formulados como regras gerais preestabelecidas para a decisão probatória e exigir a justificação dessa a partir das provas apresentadas e dos standards aplicáveis são duas condições inafastáveis para escapar da arbitrariedade e, portanto, para tornar possível o devido processo.”
Considerações finais
Verifica-se que, embora o acordo de colaboração premiada represente significativo avanço no trato da criminalidade organizada, o cumprimento de pena privativa de liberdade, por implicar em restrição a direito fundamental, deve observar, nos termos do artigo 5º, LV, da CF/88, o devido processo legal (nulla poena et nulla culpa sine iudicio) e estar respaldado por título executivo proferido a partir de substrato probatório idôneo e que esteja acima de qualquer dúvida razoável (Bard), nos termos do artigo 66.3 do Estatuto de Roma, norma promulgada pelo Decreto n° 4.388/2002 [15][16].
[1] AgRg nos EDcl na Pet n. 13.974/DF, relatora ministra Nancy Andrighi, relator para acórdão Ministro Og Fernandes, Corte Especial, julgado em 5/10/2022, DJe de 28/11/2022.
[2] DA SILVA, Pedro Henrique Oliveira. Prova testemunhal no processo penal: memória humana, antecipação e redução do erro judiciário. Belo Horizonte: D´Plácido: 2023. P. 100/101.
[3] HC 164493, Relator(a): EDSON FACHIN, Relator(a) p/ Acórdão: GILMAR MENDES, Segunda Turma, julgado em 23-03-2021
[4] Segundo Edgard de Carvalho Roland e Clarissa Diniz Guedes, “O Brasil vivenciou duas recentes propostas de ampliação dos espaços de negociação penal: a de implantação do plea bargaining e a de criação do acordo de não persecução penal (ANPP). Somente este foi positivado, pela Lei n. 13.964/2019.4 O plea bargaining, que tramitava na Câmara dos Deputados junto ao PL n. 882/2019 foi rejeitado.” (ROLAND, Edgard de Carvalho; GUEDES, Clarissa Diniz. A frustrada tentativa de implantação do plea bargaining no Brasil. Revista Eletrônica de Direito Processual. Volume 25. Número 2. Maio/agosto 2024. P. 221/249).
[5] VASCONCELLOS, Vinicius Gomes de. Colaboração Premiada no Processo Penal. 5. Ed. São Paulo: RT, 2022. P. 246/247.
[6] ADC 43, Relator(a): MARCO AURÉLIO, Tribunal Pleno, julgado em 07-11-2019.
[7] “[…] A Constituição de 1988 fez uma opção inequívoca pelo sistema penal acusatório. Disso decorre uma separação rígida entre, de um lado, as tarefas de investigar e acusar e, de outro, a função propriamente jurisdicional. Além de preservar a imparcialidade do Judiciário, essa separação promove a paridade de armas entre acusação e defesa, em harmonia com os princípios da isonomia e do devido processo legal. Precedentes. […]” (ADI 5104 MC, relator(a): ROBERTO BARROSO, Tribunal Pleno, julgado em 21/05/2014, PUBLIC 30-10-2014)
[8] PRADO, Geraldo. Curso de processo penal: tomo I: fundamentos e sistema. São Paulo: Marcial Pons, 2024. P. 74.
[9] TARUFFO, Michele. Uma simples verdade: o Juiz e a Construção dos Fatos. Tradução de Vitor de Paula Ramos. São Paulo: Marcial Pons, 2016. P. 142.
[10] O Pleno do STF, nos autos da ADI 6.298, conferiu, por maioria, interpretação conforme ao art. 3º-A do CPP, incluído pela Lei nº 13.964/2019, para assentar que o juiz, pontualmente, nos limites legalmente autorizados, pode determinar a realização de diligências suplementares, para o fim de dirimir dúvida sobre questão relevante para o julgamento do mérito. ADI 6298, Relator(a): LUIZ FUX, Tribunal Pleno, julgado em 24-08-2023, PUBLIC 19-12-2023.
[11] AgRg na Pet n. 12.673/DF, relator Ministro Raul Araújo, Corte Especial, julgado em 23/11/2023, DJe de 12/3/2024.
[12] HC 240971 AgR, Relator(a): GILMAR MENDES, Segunda Turma, julgado em 28-10-2024, PUBLIC 12-11-2024.
[13] Disponível em: <https://www.conjur.com.br/wp-content/uploads/2024/10/Voto-GM-HC-240.971-1.pdf>
[14] FERRER-BELTRÁN, Jordi. Prova sem convicção – Standards de prova e devido processo. São Paulo: Juspodivm, 2022. P. 349.
[15] O Min. Rogerio Schietti Cruz, nos autos do REsp nº 2.042.215/PE24, consignou que “[…] o standard de prova próprio do processo penal prescreve que, enquanto haja dúvida razoável acerca da inocência do acusado, pesa sobre o juiz a obrigação de absolvê-lo. Efetivamente, somente se superada – com argumentos convincentes e explicitados pelo juiz – a dúvida sobre a autoria delitiva, tem-se como válido o juízo condenatório.” (REsp 2.042.215/PE. Relator: Ministro Sebastião Reis Júnior, relator para acórdão Ministro Rogerio Schietti Cruz, Sexta Turma, DJe de 25/10/2023).
[16] “Como sabido, na presença de dúvida razoável não pode haver condenação criminal sob pena de violação da presunção de inocência, princípio cardeal no processo penal em um Estado Democrático de Direito. O princípio teve longo desenvolvimento histórico, sendo considerado uma conquista civilizatória […]” (AP 676. Relator: Rosa Weber, Primeira Turma, julgado em 17- 10-2017, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-021 DIVULG 05-02-2018 PUBLIC 06-02-2018).
Encontrou um erro? Avise nossa equipe!