Conceito de partes relacionadas e LC nº 214/25: ruptura ou evolução?
6 de fevereiro de 2025, 21h50
A Lei Complementar nº 214/2025 introduziu mudanças significativas no regime tributário brasileiro ao instituir o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) e a Contribuição Social sobre Bens e Serviços (CBS). Entre as inovações está a definição de partes relacionadas, que amplia o escopo das normas anteriores e estabelece critérios objetivos para caracterizar vínculos econômicos entre pessoas e empresas operando no mercado doméstico.
O conceito de partes relacionadas já é abordado na legislação brasileira no contexto de operações internacionais, notadamente pela norma Lei nº 14.596/2023, que trata de preços de transferência. Assim, a nova abordagem da LC nº 214/2025 pode ser interpretada como uma evolução necessária ou como um ponto de ruptura capaz de gerar possíveis inconsistências regulatórias.
É urgente examinarmos as convergências e divergências entre os conceitos de partes relacionadas na legislação tributária brasileira e as inovações introduzidas pela nova lei, além de discutir os impactos práticos para as empresas e os desafios jurídicos que podem surgir.
Conceitos fundamentais e similaridades
A definição de partes relacionadas na LC nº 214/2025 segue, em grande parte, a abordagem consolidada em normas anteriores e nas diretrizes da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). O princípio central dessa regulamentação é a influência significativa, ou seja, a capacidade de uma entidade impactar as decisões econômicas e financeiras de outra, alterando os termos da transação em relação ao que ocorreria entre partes independentes.
As principais convergências entre a LC nº 214/2025, a Lei nº 14.596/2023 e os padrões contábeis e tributários anteriores incluem:
– Critério de Influência: O artigo 5º da nova lei adota uma definição abrangente de influência, semelhante à da Lei nº 14.596/2023, permitindo que relações empresariais, societárias e até mesmo pessoais sejam consideradas relevantes para fins fiscais.
– Abrangência das Relações: Assim como em normas anteriores, a LC nº 214/2025 inclui relações de controle, coligação, participação nos lucros ou ativos e vínculos familiares ou administrativos, ampliando a análise da influência econômica.
– Alinhamento às Normas Internacionais: A adoção do princípio “arm’s length”, utilizado nas regras da OCDE para preços de transferência, reforça a necessidade de que transações entre partes relacionadas sejam analisadas conforme valores de mercado, evitando distorções tributárias.
Rupturas e contradições com normas anteriores
Apesar das semelhanças, a LC nº 214/2025 introduziu inovações que podem gerar conflitos interpretativos e dificuldades práticas na sua aplicação. As principais inovações em relação às normas anteriores incluem:
– Maior Abrangência: a lei complementar parece ampliar o escopo das operações consideradas entre partes relacionadas. Diferente da Lei nº 14.596/2023, que se concentra em operações internacionais, a nova legislação não limita a aplicabilidade de tal conceito, abarcando operações domésticas antes não controladas, com previsão expressa para a incidência do IBS e CBS sobre o valor de mercado da operação entre partes relacionadas, independentemente do valor efetivamente praticado.
Ao tratar da base de cálculo do IBS e CBS a Lei nº 14.596/2023 determina que, nos casos de operações entre partes relacionadas, esta corresponderá ao valor de mercado dos bens ou serviços. Nesta circunstância a lei determina que o valor de marcado dos bens e serviços será entendido como aquele praticado em operações comparáveis entre partes não relacionadas.
– Critérios objetivos vs. abordagem qualitativa: a LC nº 214/2025 estabelece percentuais fixos para caracterizar relações de influência (exemplo: participação de 25% nos lucros ou ativos e 20% no capital social). Já a Lei nº 14.596/2023 evita limites rígidos, optando por uma abordagem qualitativa caso a caso.
Isso pode gerar inconsistências na definição do conceito de partes relacionadas, criando um cenário de assimetria tributária.
– Tributação de operações não onerosas: outro ponto controverso da LC nº 214/2025 é a possibilidade de tributação de operações sem contraprestação direta, como:
– Brindes e bonificações;
– Doações entre empresas do mesmo grupo econômico;
– Distribuição de lucros em bens.
Antes da LC nº 214/2025, a tributação dessas operações já era debatida no contexto dos tributos indiretos, dependendo da interpretação do Fisco. Com a nova legislação, há uma previsão clara da incidência do IBS e CBS nesses casos, o que pode gerar novas disputas jurídicas sobre o alcance dessa tributação.
– Flexibilidade regulamentar e insegurança jurídica: o § 7º do artigo 5º da nova lei autoriza a regulamentação a modificar os critérios para verificação do valor de mercado em transações entre partes relacionadas. Esse dispositivo dá ao Fisco uma margem de discricionariedade, criando insegurança jurídica e aumentando o risco de litígios.
Impactos práticos para as empresas e possíveis litígios
A nova abordagem da LC nº 214/2025 traz desafios significativos para empresas que operam com grupos econômicos locais e realizam transações domésticas entre partes relacionadas. Alguns dos impactos esperados incluem:
- Aumento da complexidade no compliance tributário: Empresas precisarão revisar suas estruturas societárias e seus modelos de precificação para garantir conformidade com os novos critérios.
- Risco elevado de autuações fiscais: A definição de partes relacionadas ampliada para o mercado local e a tributação de operações não onerosas podem levar a disputas administrativas e judiciais.
- Insegurança na tributação de IBS/CBS vs. IRPJ e CSLL: A diferença de critérios entre as normas pode resultar em abordagens tributárias distintas para cada tributo, exigindo um planejamento fiscal mais rigoroso.
Possíveis questionamentos de constitucionalidade e ilegalidade
A LC nº 214/2025, ao ampliar a definição de partes relacionadas e prever a tributação de operações não onerosas, pode gerar discussões sobre sua compatibilidade com diversos princípios constitucionais e gerais do direito, como o princípio da capacidade contributiva (CF, artigo 145, §1º), o princípio da vedação ao confisco (CF, artigo 150, IV), o princípio da livre iniciativa e da liberdade econômica (CF, artigo 170; Lei nº 13.874/2019) e o princípio da autonomia privada (CC, artigo 421).
A depender da aplicação prática da norma, esses fundamentos poderão ser objeto de debate jurídico, especialmente em relação à tributação de transações sem contraprestação e à requalificação de valores de mercado pelo Fisco.
A lei complementar representa um marco na definição de partes relacionadas locais na legislação tributária brasileira. Embora sua abordagem esteja alinhada às diretrizes internacionais e reforce a transparência fiscal, sua aplicação pode gerar insegurança e novas disputas jurídicas.
Se, por um lado, a norma detalha critérios objetivos e amplia o alcance da tributação, por outro, introduz conceitos que podem entrar em conflito com regras já consolidadas. O principal desafio será garantir que sua aplicação respeite os princípios constitucionais e evite distorções que prejudiquem as empresas.
Diante desse cenário, é essencial que as empresas analisem cuidadosamente suas relações comerciais e societárias para evitar riscos fiscais e garantir conformidade com a nova legislação. O tempo dirá se as inovações da LC nº 214/2025 representarão um avanço no sistema tributário ou o início de um novo ciclo de contenciosos fiscais.
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