A tunga do teto ou justiça conforme a Constituição?
6 de fevereiro de 2025, 18h26
Nem tudo é o que parece. O gambá e o rato até podem ter aparências semelhantes, embora um seja masurpial e o outro não, um seja roedor e o outro não, um seja parente do canguru e do coala e o outro não.
Um dos elementos que podem parecer uma coisa e ser outra é o tema do teto vencimental. Outra, bem distinta, são as verbas de natureza indenizatória e não sujeitas à incidência da tesoura do teto. Se tudo o que entrar na base de dados da mesma fonte pagadora passar pelo corte, injustiça teremos, merecendo ser considerado o ensinamento contido em voto do eminente ministro Gilmar Mendes quando, apreciando outro teto referência, no “voto conjunto ADI 5.870, 6.050. 6.069 e 6.082”, disse que “a escolha de um parâmetro de uniformização deve, igualmente, respeitar a individualidade do sofrimento causado e não gerar ainda mais discriminações”.
De fato, o contexto da incidência ou não do teto envolve temas sensíveis e conceitos jurídicos fundamentais. Por acaso, as indenizações às vítimas da ditadura devem ser sujeitas a incidência de teto? As indenizações a servidores vítimas de assédio moral, crimes raciais e toda espécie de atos nulos e abusivos também devem ser sujeitas ao teto? Se essa lógica do teto amplo e irrestrito se espraiar por todas as situações possíveis e imagináveis estar-se-á até desestimulando as pessoas a recorrer ao Poder Judiciário em busca da responsabilização dos autores dos atos viciados e abusivos. Será caloroso aplauso à impunidade! Será, também, mais uma seta atirada nas vítimas, ferindo-as com o carimbo da eterna injustiça sofrida!
Portanto, se o sistema jurídico não pode conter algo assistemático e fomentar a injustiça, há que se preservar e distinguir o que significam verbas indenizatórias e a verba vencimental, em si. Cada coisa no seu lugar e a categorização de cada fato jurídico é fundamental para que se possa encontrar o devido caminho.
Ajuste e assédio
O Supremo Tribunal Federal, em 2025, na Suspensão de Segurança (SS) 5.700/Maranhão, decidiu que servidores municipais têm o teto do prefeito e não o de desembargador. Esse é exemplo dos ajustes que, por vezes, se fazem necessários, sem que se fira conceitos jurídicos mais amplos.
Outro exemplo de ajuste está em liminar concedida pela Suprema Corte no ano de 2023, nos autos da Ação Direta de Inconstitucionalidade — ADI 7.440/Pará, no qual se decidiu que parcelas com natureza retributiva pelo exercício direto do cargo comissionado devem observar o teto.
Isso não pode ser confundido com questões outras e verbas indenizatórias porventura presentes, como no caso em que o servidor tenha o direito a gozar licenças remuneradas, como previstas em lei. Contudo, se o gestor público nega o gozo e a fruição de tais direitos, por abuso e assédio ou por necessidade do serviço público, o servidor, vítima de tal contexto, perderia pura e simplesmente esse direito que lhe assegura a legislação?
Para casos assim, têm os servidores o direito de receber a compensação financeira pela ilegalidade de que foi vítima, donde cabe perguntar se essa justa indenização tem que ser em dinheiro e recebível, sob pena de ser outra injustiça? Se o recebimento do dinheiro for a forma legal de compensação ao servidor pelo dano sofrido pelo abuso do Estado ou de agente seu, então não se pode negar o recebimento efetivo dos valores — que a incidência do teto poderia negar pois, nesse caso e em tantos outros, se o valor ficar submetido ao teto os servidores nada receberiam… Seria “ganhar e não levar”. É disso que trata a questão.
O mesmo se dá para as indenizações percebidas por vítimas de abusos outros, como as da ditadura e de outros atos decorrentes da tirania de certas pessoas, em certo tempo, em alguns casos sujeitos a mandado de segurança conta a ilegalidade e o abuso de poder, por ações de improbidade administrativa, ação popular e outras afins, inclusive pretensões com caráter indenizatório, não sendo demais lembrar que algumas ações judiciais demoram anos e décadas e se negar o direito ao recebimento efetivo e real do dinheiro correspondente seria condenar alguém a sofrer por todo esse tempo para sofrer outra condenação: a de nada receber!
Interpretação conforme e restauração de acordo
Como contraponto, notemos que a Suprema Corte recentemente decidiu que o teto da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) não se aplica às indenizações. No julgamento, considerou-se que o teto é parâmetro, não limite absoluto. Já antes mencionamos e aqui, por sua absoluta relevância, destacamos novamente trecho do “Voto conjunto ADI 5.870, 6.050. 6.069 e 6.082” proferido pelo ministro relator Gilmar Mendes, quando disse que “a escolha de um parâmetro de uniformização deve, igualmente, respeitar a individualidade do sofrimento causado e não gerar ainda mais discriminações”. Na ementa daquele acórdão vemos que se deu “interpretação conforme a Constituição” para se reconhecer o “direito à reparação por dano moral”, sendo “constitucional, porém, o arbitramento judicial do dano em valores superior aos limites máximos” […] quando consideradas as circunstâncias do caso concreto e os princípios da razoabilidade, da proporcionalidade e da igualdade”.
Vozes dirão que são distintos os regimes trabalhista e dos servidores. Mas, absolutamente, não é dos regimes que se trata aqui e sim de um parâmetro como teto de percepção e como referência à efetividade do recebimento de valores. Se para uns o teto é referência e deve merecer “interpretação conforme a constituição” considerando-se as circunstâncias especificas e a justiça envolvida, porque para outros o teto seria algo absoluto e até um dogma?
No universo dos princípios jurídicos envolvidos está, decerto, aquele traduzido no brocardo latino restitutio in integrum, que expressa que, nas lides que envolvam pretensões indenizatórias e ressarcitórias, se deve buscar a restauração de acordo com a condição original, para se proteger a vítima e conceder-lhe a cobertura mais abrangente e justa.
Outros casos envolvem outras questões. Seria justo que alguém trabalhasse por dois, acumulando o serviço de outro durante férias, licenças ou afastamentos, sem receber nada por isso? O critério de justiça e justa remuneração envolvem-se com a vedação e o combate ao enriquecimento ilícito da outra parte. Assim, apenas por argumentação, se ficasse no teto a verba com caráter de acumulação, o servidor que realizasse o trabalho de dois ficaria sem receber nada e trabalharia de graça. Seria justo?
Decerto que não. Essa verba deve ficar além do teto, pois este só pode corresponder à função ordinária e não envolver o outro cargo que se está acumulando. Por fim, se a acumulação não fosse remunerada e corretamente sem a incidência de teto e, também, se as pessoas não podem ser vítimas de “trabalho escravo” e ser obrigadas a trabalhar de graça, teríamos, como resultado empírico, um posto de trabalho vazio, atrapalhando o bom funcionamento da máquina pública e ofendendo-se o princípio da continuidade do serviço público, de sorte que a remuneração efetiva, em dinheiro, paga ao servidor, é não somente uma questão de justiça, sendo, também, interesse do próprio Estado e da população.
Distinção necessária
No momento em que o Congresso se debruça sobre o tema, é bom relembrar que a nossa reforma do Judiciário veio sob as sombras do Documento Técnico 319/1996, do Banco Mundial, sendo crível que influências externas não podem sobrepor-se à Constituição Cidadã de 1988, à Soberania Nacional e a altaneira representação do povo brasileiro.
Não podem recair como guilhotina sobre a cabeça dos trabalhadores os atos governamentais decorrentes de problemas de endividamento público, fluxo de caixa governamental e propostas de corte de gastos.
Noutra senda, há que se distinguir o que é verba salarial daquelas compensatórias e indenizatórias e a melhor norma jurídica é aquela que preveja genericamente as áleas e que não trate questões fechadas. Deve-se, assim, cuidar de conceitos jurídicos determinados, de modo claro e cristalino, de forma hábil a servir a toda sorte de situações possíveis, mormente neste nosso mundo moderno onde as modificações fáticas são cada vez mais ágeis e surpreendentes, pós advento da internet, dos computadores tão difundidos e, agora, da inteligência artificial.
Distinguir onde cabe a distinção é sabedoria e utilidade de tempo e dinheiro. Não distinguir trabalhadores celetistas e estatutários — onde não são distinguíveis acerca do conceito de teto que lhes incida sobre verbas — é medida de direito e justiça e, nesta senda, o teto deve ser referência como, na ambiência do STF, se reconheceu, em âmbito trabalhista, o que é bem distinto de algo que soe como um dogma da idade média ou uma imagem mítica daquelas que não se possa enfrentar sob pena de ficar cegos.
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