A adoção do identitarismo trans pelo Supremo Tribunal Federal
6 de fevereiro de 2025, 19h36
Raízes do identitarismo
O termo política identitária foi difundido, na década de 1970, pelo Combahee River, grupo feminista negro estadunidense. Assim, o conceito de identitarismo surge a partir da ótica da esquerda progressista, especialmente, a partir da redescrição das ideias marxistas por Herbert Marcuse, que redescreveu as ideias de sujeito revolucionário, luta de classes e de instrumentos adequados para a lenta marcha pelas instituições para lutar contra o liberalismo e o capitalismo, o que deixa claro que o domínio das instituições (educacionais, políticas, judiciárias, midiáticas etc.) é a estratégia principal do identitarismo.
Na década de 2000, os identitaristas progressistas passaram a acusar conservadores e liberais de, também, serem identitaristas, atrelando o identitarismo de direita a conceitos como nação, povo, patriotismo e nacionalismo, bem como os acusando de historicamente implementarem políticas identitárias que buscaram privilegiar o “homem, branco, heterossexual e cristão”.
Embora ambos os conceitos tenham sido inventados pela esquerda progressista, passou-se a diferenciar identitarismo de esquerda (atrelado às ideias marxistas de que uma classe é sempre explorada por outra — negros por brancos, mulheres por homens, homossexuais por heterossexuais etc.) e de direita (atrelado às ideias conservadoras de identidade nacional).
Bases do identitarismo progressista e identidade trans
O identitarismo progressista é um movimento da esquerda contemporânea que, sob o guarda-chuva da inclusão, defende que uma pessoa é aquilo com que se identifica e não aquilo que lhe é imposto por moldes sociais, culturais, políticos ou mesmo biológicos, sendo livre à pessoa se transformar e se identificar como quiser, emergindo daí a chamada identidade trans, sendo a identidade de gênero sua face mais conhecida.
Logo, para o identitarismo as características físicas e biológicas, por si só, não definem a pessoa, que pode (e deve) se autodefinir, se autoidentificar e se autodeclarar. Assim, pode-se definir a pessoa trans como aquela que se identifica de forma diferente da que lhe foi “imposta” física (fenotipicamente) e biologicamente (genotipicamente) pela natureza.
Identidades trans
No contexto do identitarismo progressista contemporâneo emerge uma pluralidade de identidades trans. Vejamos os principais exemplos do identitarismo trans:
Identidade transracial: segundo o identitarismo trans, uma pessoa que nasce com uma certa cor de pele (e outras características típicas) pode se identificar como sendo de outra cor (pessoa branca que se identifica como preta ou pessoa preta que se identifica como branca, por exemplo), como o famoso caso de Harrison Buff, um homem preto que se identifica como branco.
No âmbito pátrio, o identitarismo racial brasileiro tem defendido que uma pessoa para ser negra deve ser sentir e se identificar como negra, sendo definida por meio de autodeclaração feita pela própria pessoa (que pode se identificar ou não como negra), não sendo determinantes, por si só, a sua cor, cabelo e outras características tipicamente atribuídas aos negros. Esse critério, embora traga certos problemas práticos, vem sendo adotado pela legislação brasileira em seleções públicas, pesquisas demográficas etc.
Transexuais e travestis: segundo o identitarismo trans, pessoas que nascem, biológica e geneticamente, com um determinado sexo podem se identificar com outro sexo (nasce homem, mas se identifica como mulher e vice-versa, por exemplo), devendo, segundo o STF, ser tratada conforme o sexo com o qual se identifica, sob pena de responsabilização cível e criminal.
A partir da identidade transexual e do movimento LGBT+, emergem outras identidades, como os gay male pup, cuja identidade transita entre pessoa e filhote de um animal em suas relações sexuais. Os gay male pups são homossexuais que participam da subcultura puppy play (jogo de filhote) do movimento LGBT+, que está ligada ao universo do fetiche e do BDSM (bondage, disciplina, dominação, submissão, sadismo e masoquismo), no qual os participantes assumem o papel de “cachorros” (pups) ou “donos” (handlers). Os pups imitam cães e alguns, inclusive, identificam-se transitoriamente como cães, usando acessórios como máscaras, coleiras, orelhas e caudas para se aproximarem ao máximo da identidade visual de um cachorro.
Therians ou therianthrope: segundo o identitarismo trans, pessoas que nascem sendo da espécie humana podem se identificar com outra espécie, como cachorro, porco, cobra, dinossauro etc. Os therians são pessoas que se identificam e se comportam como animais, seja de espécies vivas ou extintas e que acreditam ou sentem que são animais não-humanos, afirmando alguns que possuem uma conexão psicológica ou neurobiológica com a espécie animal específica.
Transableds ou transdeficientes: segundo o identitarismo trans, pessoas que nascem sem qualquer deficiência podem se identificar como deficientes, algo que tem se tornado cada vez mais comum a partir do reconhecimento da identidade trans. Há vários exemplos, como pessoas que passaram por procedimentos de amputação de membros, pois se sentiam amputadas, como o famoso caso de Robert Vickers, pessoas que se identificam como cadeirantes – como os famosos casos de Jorund Alme e Chloe-Jennings White – e, por isso, andam apenas de cadeira de rodas, havendo casos de pessoas que realizam procedimentos para inutilizar fisicamente suas pernas, como o famoso caso de Nick O’Hallaron, pessoas que se identificam como deficiente visual, como o famoso caso de Jewel Shuping, que se identificava como cega e para tornar-se cega e adequar-se à forma como se identificava aplicou um líquido desentupidor de pia em seus próprios olhos, o que a deixou cega de verdade etc.
Transalien: segundo o identitarismo trans, pessoas que nascem sendo da raça humana no planeta terra podem se identificar com seres alienígenas de outras raças, como o famoso caso de Anthony Loffredo, uma pessoa que nasceu homem cis, mas se identifica como um alien trans (um alienígena trans) e, em razão disso, passou por diversos procedimentos para adequar seu corpo a sua identidade transalien, pois, segundo declarou, “se sentia em um corpo ao qual não pertencia”, vindo a remover suas orelhas, nariz e alguns dedos das mãos, raspar, afiar e pintar seus dentes, cortar sua língua, cobrir-se de tatuagens que pudessem fazê-lo parecer mais com a imagem que ele tinha de um alienígena etc.
Nesse sentido, em artigo publicado na renomada Revista de Filosofia Feminista Hypatia vinculada a Cambridge University, Marcus Arvan apresenta três lições sobre a identidade da mulher:
“a primeira lição é que mulheres não precisam ser humanas. A segunda lição é que tanto a biologia quanto os fenótipos físicos são irrelevantes para determinar se alguém é uma mulher e, de fato, se é feminina em um sentido de gênero. A terceira lição é que mulheres trans, mulheres cis, mulheres alienígenas e mulheres robôs são todas mulheres, porque ser mulher é ser uma adulta com gênero feminino” [1].
Transidade ou transetário: segundo o identitarismo trans, uma pessoa que tem uma idade civilmente atribuída em razão da data de seu nascimento e seu tempo de vida pode se identificar como tendo outra idade. Há casos registrados de transetários, como o caso de Joseph Roman, de 38 anos, que foi acusado de violência sexual contra três crianças, mas afirmou à justiça que se considerava um rapaz de nove anos preso no corpo de um homem, ou o caso de Joseph Gobrick, de 45 anos, que ao se defender da acusação de posse de pornografia infantil, afirmou que se identificava como uma menina de 8 anos, ou ainda o famoso caso de Stefonknee Wolsschtt, de 46 anos, um homem casado e pai de 7 filhos, que passou a se identificar como mulher transgênero e, logo depois, passou a exigir ser reconhecido como uma menina de seis anos de idade.
Adoção do identitarismo trans pelo STF
Percebe-se que as principais manifestações do identitarismo progressista ocorrem a partir da identidade trans, sobretudo, dentro do movimento LGBT+, do qual decorrem diretamente a identidade travesti, transexual, therianthrope, transalien e transrobô, além de servir de base intelectual e de apoio para outras identidades trans, como os transraciais, os transdeficientes e os transetários.
Adotando o identitarismo progressista e a identidade trans, a Resolução 2.265/2019 do Conselho Federal de Medicina, afirma que compreende-se por transgênero ou incongruência de gênero a não paridade entre a identidade de gênero e o sexo ao nascimento, incluindo-se neste grupo transexuais, travestis e outras expressões identitárias relacionadas à diversidade de gênero, considerando-se identidade de gênero o reconhecimento de cada pessoa sobre seu próprio gênero, sendo: homens transexuais aqueles nascidos com o sexo feminino que se identificam como homem, mulheres transexuais aquelas nascidas com o sexo masculino que se identificam como mulher e travesti a pessoa que nasceu com o sexo masculino, identifica-se e apresenta-se fenotipicamente com uma expressão de gênero feminina, mas aceita sua genitália masculina. Ademais, considera-se afirmação de gênero o procedimento terapêutico multidisciplinar para a pessoa que necessita adequar seu corpo à sua identidade de gênero por meio de hormonioterapia e/ou cirurgias.
Isto posto, insta destacar algumas importantes decisões judiciais que adotaram as teses do identitarismo trans:
1) TRF da 4ª Reg. Apelação Cível nº 2001.71.00.026279-9/RS, julgada em 2007: A afirmação de gênero, seja por meio de hormonioterapia e/ou cirurgias, é um direito fundamental da pessoa transgênero que deve ser assegurado pelo poder público, sendo que a exclusão da lista de procedimentos médicos custeados pelo SUS das cirurgias de transgenitalização e dos procedimentos complementares, como plásticas e próteses mamárias, em desfavor de transexuais, configura discriminação proibida constitucionalmente, o que motivou a inclusão desses procedimentos na Tabela SIH-SUS e, consequentemente, a sua cobertura pelo SUS.
2) STJ (REsp 2.097.812): é obrigatória a cobertura, pela operadora do plano de saúde, de cirurgias de transgenitalização e de plástica mamária com implantação de próteses em mulher transexual.
Observação: os tribunais entendem que as mulheres cis (nascidas mulheres) não possuem esse mesmo direito à cobertura de plástica e prótese mamária, seja pelo SUS, seja por plano de saúde. Trata-se de direito exclusivo das trans.
3) STF (ADPF 787): O Ministério da Saúde deve garantir atendimento médico a pessoas transexuais, de acordo com suas necessidades biológicas. Assim, transmasculinos ou “homens trans” que possuem vagina e aparelho reprodutor feminino devem ter acesso a consultas e tratamentos com ginecologistas e obstetras, já transfemininas (transexuais ou travestis), por terem pênis e aparelho reprodutor masculino, ou quando tenham feito cirurgia de redesignação sexual por manterem parte do sistema genital masculino, devem ter acesso a especialidades médicas como urologia e proctologia. Diante disso, o STF determinou que o Ministério da Saúde deve: 1) Atualizar os sistemas do SUS para permitir marcações de consultas e exames sem depender do sexo biológico, evitando burocracias constrangedoras. 2) Ampliar essas alterações para todos os sistemas do SUS, garantindo acesso pleno e igualitário à população trans.
Na mesma decisão, ao discutir a (in)constitucionalidade dos termos “mãe” e “pai” na Declaração de Nascido Vivo (DNV) — por não serem inclusivos – e sua substituição pelo termo “parturiente” e “responsável legal”, o STF determinou que o Ministério da Saúde deve modificar a DNV, substituindo o campo “mãe” por “parturiente/mãe” (campo obrigatório) e o campo “pai” por “responsável legal/pai” (que deverá ser opcional), acrescentando-se termos inclusivos para englobar a população transexual na (DNV) de seus filhos.
4) STF (RE 670.422 e ADI 4.275): i) O transgênero tem direito fundamental subjetivo à alteração de seu prenome e de sua classificação de gênero no registro civil, independentemente da realização de cirurgia de readequação (ou redesignação) sexual ou qualquer outro procedimento hormonal ou cirúrgico, não se exigindo, para tanto, nada além da manifestação da vontade do indivíduo, o qual poderá exercer tal faculdade tanto pela via judicial como diretamente pela via administrativa. ii) Essa alteração deve ser averbada à margem no assento de nascimento, sendo vedada a inclusão do termo ‘transexual’. iii) Nas certidões do registro não constará nenhuma observação sobre a origem do ato, sendo vedada a expedição de certidão de inteiro teor, salvo a requerimento do próprio interessado ou por determinação judicial. iv) Efetuando-se o procedimento pela via judicial, caberá ao magistrado determinar, de ofício ou a requerimento do interessado, a expedição de mandados específicos para a alteração dos demais registros nos órgãos públicos ou privados pertinentes, os quais deverão preservar o sigilo sobre a origem dos atos.
5) STF (ADPF 527-MC): As presas transexuais e travestis com identidade de gênero feminina têm direito de optar por cumprir pena: 1) em estabelecimento prisional feminino; ou 2) em estabelecimento prisional masculino, porém em área reservada, que garanta a sua segurança. Essa ação acabou sendo extinta por perda de objeto, pois a Resolução 348 do CNJ regulou o tema de forma completa, assegurando esse direito às pessoas trans. Posteriormente, o STJ (HC nº 861.817) decidiu que é dever do Judiciário indagar à pessoa autodeclarada transexual acerca da preferência pela custódia em unidade feminina, masculina ou específica, se houver, e, na unidade escolhida, preferência pela detenção no convívio geral ou em alas ou celas específicas.
6) STJ (REsp 1.977.124): A Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/2006 ) é aplicável às mulheres trans em situação de violência doméstica, isto é, aplica-se aos casos em que mulheres trans forem vítimas de violência doméstica.
Considerações finais
O identitarismo progressista promove um neorracismo identitário revanchista, defendendo privilégios distorcidos de reparação, sendo que o identitarismo trans tem demonstrado ser homogêneo e totalizador.
Por ser homogêneo, todos são culpados por qualquer infortúnio que ocorra na vida de pessoas pertencentes a esses grupos identitários, logo a responsabilidade é objetiva e coletiva e não subjetiva e individual. Assim, os membros dos grupos identitaristas são sempre vítimas, enquanto a sociedade é culpada por todos os seus infortúnios.
Por ser totalizador, adere a tese de que o preconceito, a discriminação e o racismo são estruturais, o que, por um lado, legitima atos preconceituosos, discriminatórios e racistas dos grupos identitários contra quaisquer outros grupos e, de outro lado, conduz ao uso da identidade (trans, racial etc.) como escudo para qualquer situação da vida dessas pessoas. Logo, não importa o que tenha ocorrido, não importam os fatos, nem as provas, o que é importa é quem fez e se quem fez pertence ou não a um grupo identitarista. Se for negro, homossexual, trans etc. será vítima (excluído, perseguido etc.), se for branco, heterossexual ou cristão será sempre culpado (privilegiado, favorecido etc.).
Nesse contexto, a adoção das teses identitaristas pelo STF conduziram a formação de super-sujeitos de direito, uma espécie de sujeito jurídico perfeito, que conta com todos os direitos e proteções ordinárias mais diversos outros direitos e proteções especiais e preferenciais quase ilimitados, resultando na sobreposição de uma pseudo-igualdade material (interpretada de forma ideológica e deturpada) em detrimento da liberdade e da igualdade real.
[1] ARVAN, M. Trans women, cis women, alien women, and robot women are women: they are all (simply) adults gendered female. Hypatia, v. 38, n. 2, p. 373-389, 2023.
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