Opinião

Reurb em área de preservação permanente e a Lei 14.285 (parte 2)

Autor

  • é especialista em Direito Ambiental e Urbanístico (PUC-MG) especialista em Direito da Mineração (Cedin) especialista em Direito Imobiliário (Damásio) especialista em Direito Registral e Notarial (Faculdade Baiana de Direito) pós- graduanda em Direito do Agronegócio (Ebradi) e consultora jurídica ambiental e urbanística para o setor público.

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5 de fevereiro de 2025, 21h42

Dando continuidade aos estudos relacionados à regularização fundiária urbana em áreas ambientalmente sensíveis, é interessante destacar alguns conceitos que foram mencionados no artigo anterior e que são cruciais para a compreensão do tema. São eles: (1) a descaracterização técnica da área de preservação permanente e a (2) adequação das metragens da APP (área de preservação permanente) de curso d’água para áreas urbanas consolidadas.

Tânia Rêgo/Agência Brasil

A descaracterização técnica consiste em atestar, por meio de estudos periciais, que a área de preservação permanente não cumpre mais a sua função ambiental, atributo imprescindível para a existência de uma APP, nos termos do artigo 3º, II, da Lei Federal 12.651/12.

Normalmente a descaracterização acontece após grandes interferências antrópicas no local ambientalmente protegido, a exemplo da canalização de leitos de rios ou a alteração do curso d’água pela implantação de valas de drenagem, situações em que o corpo hídrico costuma perder as suas características e funções naturais.

Havendo essa descaracterização da APP, não é necessária a observância das restrições e dos estudos técnicos ambientais previstos nos artigos 64 e 65 do Código Florestal, porquanto a área objeto de regularização se tornou local sem restrição administrativa.

Já com relação aos procedimentos de adequação das metragens de APPs de cursos d’água situados em zona urbana consolidada, previstos na Lei Federal nº 14.285/21, faz-se necessário tecer alguns comentários iniciais.

Criada como resposta ao julgamento do tema repetitivo 1010 [1] do STJ, em que não houve a modulação de efeitos da decisão que estabeleceu a prevalência das regras do Código Florestal para as APPs de curso d’água em áreas urbanas, a Lei 14.285/21 trouxe uma importante ferramenta urbanística para a ordenação do território municipal.

Através da elaboração de estudos técnicos [2] e da observância de procedimentos [3] específicos, essa lei autorizou os municípios a definirem metragens de APPs de curso d’água, localizados em áreas urbanas consolidadas, diferentes das constantes no artigo 4º, I, do Código Florestal Brasileiro.

Vale ressaltar que essa possibilidade de alteração somente pode ser aplicada nos casos de APPs de cursos d’água situadas em área urbana consolidada [4]. Logo, para as demais APPs previstas no artigo 4º, II, e seguintes da Lei 12.651/12, bem como para as APPs de cursos d’água localizadas fora de zona urbana consolidada, ainda valerão as regras gerais contidas no Código Florestal Brasileiro.

Spacca

Além disso, é importe salientar que a Lei 14.285/21 não visa descaracterizar as APPs de curso d’água, a fim de suprimir totalmente a restrição administrativa da localidade. Finalizados os procedimentos previstos na Lei 14.285/21, portanto, ainda continuará existindo área de preservação permanente no local [5], ainda que menor do que a anterior.

É possível, no entanto, que durante a realização dos estudos técnicos estabelecidos pela Lei 14.285/21 seja identificada a perda da função ambiental do espaço ambientalmente protegido. Neste caso, não será necessário realizar os demais procedimentos da Lei 14.285/21 visto que inexiste APP para ser adequada à realidade municipal.

Em ambas as situações (descaracterização ou adequação de APP) não será necessária a realização de estudos técnicos ambientais, ou observância às restrições de metragens previstas para a “Reurb-E”, para se regularizar os imóveis que antes estavam em faixa considerada ambientalmente protegida.

No tocante aos prazos para se fazer regularização de ocupações em áreas de preservação permanente, inexiste na Lei da Reurb marco temporal especificando uma data limite. Contudo, existe entendimento doutrinário [6] que defende a aplicação da data limite de 25 de maio de 2012 (dia em que entrou em vigor o Novo Código Florestal), em razão do comando trazido pelo artigo 8º, §4º, da Lei 12.651/2012, que não admite regularizações futuras em diversos espaços sensíveis, a exemplo das áreas de preservação permanente.

Com relação às “áreas de risco”, como o próprio nome sugere, tratam-se de locais que apresentam riscos geotécnicos (como deslizamento, queda e rolamento de blocos, corrida de lama, etc.), de inundações ou outros riscos especificados por lei, os quais devem ser objeto de estudo técnico para examinar a possibilidade de eliminação, correção ou de administração dos perigos na localidade afetada, nos termos do artigo 36, caput, do Decreto Federal nº 9.310/2018.

Muitas vezes a área de risco se confunde com outros espaços sensíveis. Um exemplo é quando há ocupação de faixa marginal de rio (APP) que sofre inundações (área de risco). Nesse caso é obrigatório que o estudo ambiental relativo à APP identifique os perigos existentes e apresente as proposições de intervenções para a prevenção e o controle dos riscos, conforme disposto no artigo 64 e 65 do Código Florestal.

Ressalta-se que os estudos técnicos para a área de risco também se aplicam somente às parcelas dos núcleos urbanos informais situados nos locais perigosos, o que autoriza, portanto, o prosseguimento da Reurb para a parte do núcleo não afetada (artigo 36, §3º, Decreto 9.310/18).

Mas, diferentemente dos casos de APP, a execução das intervenções eventualmente apontadas pelos trabalhos técnicos deverá ser feita antes da conclusão da Reurb (artigo 36, §1º, Decreto 9.310/18).

Defende-se, portanto, que a titulação dos indivíduos somente ocorra após a efetiva eliminação, correção ou administração dos riscos apontados pelo trabalho técnico. O que não pode ser confundido com a realização de algumas etapas anteriores da Reurb, como o registro do parcelamento da área.

Tal fase registral pode ser realizada antes da confecção e execução das medidas técnicas necessárias para a área sensível, desde que se averbe essa informação na matrícula criada para a localidade.

Ressalta-se que esse entendimento [7] não legitima ocupações em áreas de risco sem a correção dos problemas, visto que não haverá o registro dos indivíduos. Apenas será atestado na matrícula da área uma realidade, tornando de conhecimento público que o local está em processo de Reurb, cuja finalização depende da realização de medidas para a área de risco.

Se, contudo, ficar constatado que não é possível eliminar, corrigir ou administrar o risco da área ocupada, o poder público, nos casos de Reurb-S, providenciará a realocação dos ocupantes do núcleo urbano informal a ser regularizado [8], podendo ser ressarcido pelos responsáveis pela implantação do núcleo caso a área seja privada [9].

Já na Reurb-E a realocação fica a cargo do titular de domínio, responsáveis pela implantação do núcleo urbano informal, beneficiários ou do próprio legitimado promotor da Reurb [10].

Reurbs em área de unidade de conservação de uso sustentável

Por fim, com relação às unidades de conservação (UC) de uso sustentável, a Lei Federal nº 9.985/2000, que instituiu o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza, determina o seguinte:

“Art. 14. Constituem o Grupo das Unidades de Uso Sustentável as seguintes categorias de unidade de conservação:

I – Área de Proteção Ambiental;

II – Área de Relevante Interesse Ecológico;

III – Floresta Nacional;

IV – Reserva Extrativista;

V – Reserva de Fauna;

VI – Reserva de Desenvolvimento Sustentável; e

VII – Reserva Particular do Patrimônio Natural.”

 

As Reurbs que abranjam área de unidade de conservação de uso sustentável seguirão as mesmas regras de confecção de trabalhos técnicos para as APPs. A única diferença é que, no caso das UCs, também será exigida a anuência do órgão gestor da unidade, desde que o estudo comprove que as intervenções de regularização implicarão na melhoria das condições ambientais em relação à situação de ocupação informal anterior [11].

Observa-se também que a Lei 13.465/17 faz referência apenas às unidades de conservação de uso sustentável. Isso quer dizer que a Reurb não poderá ser realizada em núcleos situados em unidades de proteção integral [12], composto por estações ecológicas; reservas biológicas; parques nacionais; monumentos naturais e refúgios de vida silvestre.

Destaca-se ainda que a aprovação municipal dos trabalhos técnicos da Reurb corresponde à aprovação urbanística do projeto de regularização fundiária e, na hipótese de o município ter órgão ambiental capacitado, à aprovação ambiental [13].

Se o município não possuir órgão ambiental capacitado [14], ou seja, aquele que têm em seus quadros, ou à sua disposição, profissionais com atribuição técnica para a análise e aprovação dos estudos referidos, independentemente da existência de convênio com os estados ou União, a aprovação ambiental deverá ser feita pelo Estado, nos termos do artigo 12, §4º[15], da Lei da Reurb, por meio do seu órgão ambiental executor.

Após todas essas considerações acerca da regularização de núcleos situados em áreas sensíveis, é fundamental destacar uma última situação: caso o núcleo que esteja em APP, UC ou área de risco for considerado consolidado [16] antes de 19 de dezembro de 1979, não haverá a necessidade de se realizar nenhum dos estudos técnicos mencionados [17], por se tratar de caso de Reurb sob o rito “inominado” (Reurb-I), tema que poderá ser explanado futuramente.

 


[1] Extensão da faixa não edificável a partir das margens de cursos d’água naturais em trechos caracterizados como área urbana consolidada: se corresponde à área de preservação permanente prevista no art. 4°, I, da Lei n. 12.651/2012 (equivalente ao art. 2°, alínea ‘a’, da revogada Lei n. 4.771/1965), cuja largura varia de 30 (trinta) a 500 (quinhentos) metros, ou ao recuo de 15 (quinze) metros determinado no art. 4°, caput, III, da Lei n. 6.766/1979.

[2] Diagnóstico socioambiental previsto no art. 4º, III-B da Lei Federal n. 6.766/79, inserido pela Lei 14.285/2021.

[3] Oitiva de Conselhos do Meio Ambiente (art. 4º, §10º, do Código Florestal e art. 22, §5º, da Lei Federal 11.952/2009, ambas alteradas pela Lei 14.285/2021); e elaboração de lei/plano diretor (art. 4º, III-B da Lei Federal n. 6.766/79; art. 4º, §10º, do Código Florestal, e art. 22, §5º, da Lei Federal 11.952/2009, todos inseridos pela Lei 14.285/2021).

[4] Lei 12.651/12, Art. 3º, (…) XXVI,  área urbana consolidada: aquela que atende os seguintes critérios: a) estar incluída no perímetro urbano ou em zona urbana pelo plano diretor ou por lei municipal específica; b) dispor de sistema viário implantado; c) estar organizada em quadras e lotes predominantemente edificados;  d) apresentar uso predominantemente urbano, caracterizado pela existência de edificações residenciais, comerciais, industriais, institucionais, mistas ou direcionadas à prestação de serviços; e) dispor de, no mínimo, 2 (dois) dos seguintes equipamentos de infraestrutura urbana implantados: 1. drenagem de águas pluviais; 2. esgotamento sanitário; 3. abastecimento de água potável; 4. distribuição de energia elétrica e iluminação pública; e 5. limpeza urbana, coleta e manejo de resíduos sólidos;

[5] Lei Federal n. 6.766/79. Art. 4º. III-B – ao longo das águas correntes e dormentes, as áreas de faixas não edificáveis deverão respeitar a lei municipal ou distrital que aprovar o instrumento de planejamento territorial e que definir e regulamentar a largura das faixas marginais de cursos d´água naturais em área urbana consolidada, nos termos da Lei nº 12.651, de 25 de maio de 2012, com obrigatoriedade de reserva de uma faixa não edificável para cada trecho de margem, indicada em diagnóstico socioambiental elaborado pelo Município.

[6] LOCATELLI, P. A. Elementos para a sustentabilidade da Regularização Fundiária Urbana nas Áreas de Preservação Permanente. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2021. p. 165-171.

[7] CUNHA, M. F. F.; MAIA, A. C. Treinamento REURB na Prática: Colégio Registral Imobiliário de Minas Gerais. 5ª ed. Belo Horizonte: 07 de abril de 2021.

[8] Decreto Federal n. 9.310/2018. Art. 36, § 4º Na Reurb-S de área de risco que não comporte eliminação, correção ou administração, o Poder Público municipal ou distrital providenciará a realocação dos ocupantes do núcleo urbano informal a ser regularizado.

[9] Decreto Federal n. 9.310/2018. Art. 36, § 5º Na hipótese a que se refere o § 4º, se o risco se der em área privada, o Poder Público municipal ou distrital poderá ser ressarcido dos custos com a realocação pelos responsáveis pela implantação do núcleo urbano informal.

[10] Decreto Federal n. 9.310/2018. Art. 36, §6º. Na Reurb-E de área de risco que não comporte eliminação, correção ou administração, a realocação dos ocupantes do núcleo urbano informal a ser regularizado será providenciada pelo titular de domínio, pelos responsáveis pela implantação do núcleo urbano informal, pelos beneficiários ou pelo legitimado promotor da Reurb.

[11] Lei 13.465/17. Art. 11, §3º. No caso de a Reurb abranger área de unidade de conservação de uso sustentável que, nos termos da Lei nº 9.985, de 18 de julho de 2000, admita regularização, será exigida também a anuência do órgão gestor da unidade, desde que estudo técnico comprove que essas intervenções de regularização fundiária implicam a melhoria das condições ambientais em relação à situação de ocupação informal anterior.

[12] Lei 9.985/00. Art. 8º. O grupo das Unidades de Proteção Integral é composto pelas seguintes categorias de unidade de conservação: I – Estação Ecológica; II – Reserva Biológica; III – Parque Nacional; IV – Monumento Natural; V – Refúgio de Vida Silvestre.

[13] Lei 13.465/17. Art. 12. A aprovação municipal da Reurb corresponde à aprovação urbanística do projeto de regularização fundiária e, na hipótese de o Município ter órgão ambiental capacitado, à aprovação ambiental.

[14] Lei 13.465/17. Art. 12. § 1º Considera-se órgão ambiental capacitado o órgão municipal que possua em seus quadros ou à sua disposição profissionais com atribuição técnica para a análise e a aprovação dos estudos referidos no art. 11, independentemente da existência de convênio com os Estados ou a União.

[15] Lei 13.465/17. Art. 12. § 4º A aprovação ambiental da Reurb prevista neste artigo poderá ser feita pelos Estados na hipótese de o Município não dispor de capacidade técnica para a aprovação dos estudos referidos no art. 11.

[16] Lei 13.465/17. Art. 3º. (…) III – núcleo urbano informal consolidado – aquele de difícil reversão, considerados o tempo da ocupação, a natureza das edificações, a localização das vias de circulação e a presença de equipamentos públicos, entre outras circunstâncias a serem avaliadas pelo Município ou pelo Distrito Federal.

[17] Lei 13.465/17. Art. 69. As glebas parceladas para fins urbanos anteriormente a 19 de dezembro de 1979, que não possuírem registro, poderão ter a sua situação jurídica regularizada mediante o registro do parcelamento, desde que esteja implantado e integrado à cidade, podendo, para tanto, utilizar-se dos instrumentos previstos nesta Lei.(…) § 2º A apresentação da documentação prevista no § 1º deste artigo dispensa a apresentação do projeto de regularização fundiária, de estudo técnico ambiental, de CRF ou de quaisquer outras manifestações, aprovações, licenças ou alvarás emitidos pelos órgãos públicos.

 

Autores

  • é especialista em Direito Ambiental e Urbanístico (PUC-MG), Registral e Notarial (Faculdade Baiana de Direito), Direito da Mineração (Cedin), Imobiliário (Damásio), Direito do Agronegócio (Ebradi), Regularização Fundiária (PUC-MG), consultora jurídica urbanística para o setor público, autora do livro Reurb na Prática (São Paulo: Editora Dialética, 2023) e de outras obras na área.

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