RDD em julgamento: Corte IDH julga caso de chileno mantido em isolamento prolongado
5 de fevereiro de 2025, 11h17
Nesta quinta e sexta-feira, dias 6 e 7 de fevereiro, ocorre o julgamento na Corte Interamericana de Direitos Humanos do caso Mauricio Hernández Norambuena vs. Brasil. O julgamento terá lugar na sede da corte, na Costa Rica, e será transmitido pelo YouTube da organização internacional. Pouca repercussão foi dada desde que esse caso foi apresentado pela Comissão Interamericana à corte em 1º de junho de 2023. No entanto, é um dos momentos mais emblemáticos para que seja exposto que no Brasil a tortura ainda é prevista em lei. Sendo imigrante chileno e militante político, Maurício foi preso no Brasil em 2001 e mantido na Penitenciária Federal de Mossoró, Avaré e Catanduvas, ficando em regime disciplinar diferenciado (RDD).
No Brasil, desde o início do RDD, criou-se a ilusão de que este era um regime não só legal, mas necessário, começando em 2001 em São Paulo, expandindo-se até ganhar status nacional em 2003, a partir da primeira lei que o previa. Com o “pacote anticrime” em 2019, endureceu-se o RDD, incluindo o impedimento de contato físico com visitantes e a possibilidade de monitoração dos atendimentos advocatícios mediante autorização judicial, e suprimiu-se as poucas limitações temporais que tinha, podendo então ser prorrogado indefinidamente.
No entanto, o que o país “esquece” de indicar é que segundo órgãos e normativas internacionais, confinamento prolongado por mais de 15 dias sem contato humano significativo, com longos períodos dentro da cela e com restrição de contato familiar é pena cruel, desumana e degradante, ou em termos mais fáceis de se entender: tortura. A Comissão Interamericana, as Regras de Mandela da ONU e uma série de outras normas e organismos já sedimentaram que o isolamento produz danos irreparáveis à saúde mental e física daqueles que passam por este regime. Como dizíamos, no Brasil tortura ainda é prevista em lei e, na verdade, demorou tempo demais para termos a chance factual de ter um debate sério sobre o regime.
Sistema Penitenciário Federal e RDD estadual: tortura prevista em lei
Atualmente, o Sistema Penitenciário Federal, composto por cinco penitenciárias no território nacional, é o principal local de cumprimento do RDD e é justamente sobre o regime de confinamento imposto nessas unidades que trata esse caso. Além das pelo menos 22 horas diárias de confinamento solitário, as visitas de familiares nessas unidades é realizada por “parlatório”, ou seja, sem contato físico, com familiares e pessoas custodiadas separadas por vidro e se comunicando apenas por interfone.
De acordo com relatório da Defensoria Pública da União [1], são diversos os relatos de adoecimento mental entre familiares e custodiados há anos impedidos de abraçar seus entes queridos, especialmente entre crianças, sendo que muitas pedem para não voltar a visitar. Ressalta-se que os danos emocionais às famílias e o custo de deslocamento levou a uma queda significativa do número de visitantes.
O relatório aponta ainda relatos de profissionais da saúde de uma das unidades de que quase 100% das pessoas presas apresentam distúrbios do sono ou ansiedade e de 70% delas dispõem de prescrição de ansiolíticos ou antidepressivos, além de alta incidência de lesões dentárias decorrentes do sofrimento psíquico. A ausência de confidencialidade no atendimento dos defensores com os custodiados, o uso sistemático de spray de pimenta nos procedimentos como forma de tortura, a imposição arbitrária e indiscriminada de faltas graves e a suspensão do banho de sol, com períodos ininterruptos de isolamento de até 44 horas, foram outras questões graves destacadas.
Mas não é só no SPF que esse regime se encontra. Ele está nos estados e, inclusive, tem sido impulsionado pela Força Penitenciária Nacional, como em Pernambuco, que criou o “procedimento” unificado, que — como já por diversas vezes mencionado pelo Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura — nada mais é que o somatório de várias formas de tortura.
‘Quebrar presos’
Mas falaremos de uma unidade de RDD que se baseia no modelo legal, mas é oficiosa: a do estado do Rio de Janeiro, conhecida como Bangu 1. Nela, a maioria das questões mencionadas se repetem. De acordo com os últimos relatórios de visita a essa unidade feitas pelo Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura do Rio de Janeiro, nos anos de 2023 e 2024, as pessoas que lá estavam, em sua grande maioria (algumas vezes em sua totalidade), não estavam cumprindo oficialmente regime disciplinar diferenciado.
Ou seja, estavam sob um regime extremamente gravoso, por “interesse da administração pública”, como previsto na Resolução n° 768/2019 da Seap, sem nenhuma garantia de controle judicial e outras que advêm do RDD, como direito à ampla defesa, por exemplo. Essa resolução também prevê limitação de acesso a advogados, que ocorre somente com hora marcada e com intervalo de tempo, em patente desrespeito ao direito à ampla defesa.
Numa das fiscalizações foi possível ouvir, segundo o relatório, um diretor dizendo que o local servia para “quebrar presos”, além da escuta de pessoas presas chorando ou agradecendo por ter algum contato humano quando em conversa com a equipe do mecanismo. Também foi registrado presos recebendo processo disciplinar por entregar água a outro custodiado, celas minúsculas e sem ventilação, que em determinados casos levava as pessoas a deitarem no chão para respirar por baixo da porta.
Quente e abafado em excesso nos dias de calor, frio insuportável no inverno, assim são os cubículos de 6 metros de Bangu 1. Luz o suficiente para privar o sono, mas não para que seja possível ler, controladas pelos agentes. Dano psicológico profundo ao ponto de ideação suicida ser a regra, atendimento psiquiátrico em que tudo “é frescura” ou “fingimento” e, ainda, realizado em sala com a porta aberta e pessoas algemadas, ou seja, sem respeito ao mínimo de direitos.
Esperamos que esse dia marque o inicio do fim de uma forma de aprisionamento trazida na ditadura empresarial-militar como as “geladeiras” e sua filosofia de tortura sem marcas, como apontado pela Comissão Nacional da Verdade. Soma-se à tortura do próprio regime a das condições desumanas. Assim, dia 6 de fevereiro é um dia central (ou ao menos deveria ser) para refletir sobre a naturalização da tortura e como ela ainda reside na própria legislação. Esperamos que um dia efetivamente possamos implementar uma política em que “tortura nunca mais” seja uma realidade.
[1] Disponível em: https://direitoshumanos.dpu.def.br/wp-content/uploads/2024/04/informe_defensorial_inspecoes_SPF.pdf.
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