Quando a Receita se torna polícia: lacunas deixadas pelo STF no julgamento do Tema 990
5 de fevereiro de 2025, 7h07
A tese fixada no Tema 990 da Repercussão Geral pelo Supremo Tribunal Federal (STF) tratou de duas possibilidades de compartilhamento de informações com órgãos de persecução:
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O compartilhamento de relatórios de inteligência financeira (RIFs), produzidos pelo antigo Coaf (hoje Unidade de Inteligência Financeira — UIF), com base em movimentações financeiras suspeitas.
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O compartilhamento de dados da Receita Federal obtidos em procedimentos fiscais, especialmente nos casos de crimes tributários e aduaneiros.
Embora o primeiro ponto tenha recebido maior destaque no julgamento e nas repercussões dentro da comunidade jurídica, permanece uma lacuna não enfrentada em relação ao segundo: os limites da Receita Federal no chamado poder-dever de representação — ou seja, o reporte de indícios de prática criminosa às autoridades competentes, especialmente em relação a delitos não tributários.
O problema central está na limitação dos debates no julgamento do Tema 990 pelo STF, que focou exclusivamente no compartilhamento de informações pela Receita Federal em casos de crimes tributários e aduaneiros—situações naturalmente ligadas à sua função fiscalizatória.
Nesse contexto, ficou estabelecida a constitucionalidade do compartilhamento da íntegra do procedimento administrativo fiscal que resulte no lançamento do tributo, desde resguardas as “comunicações formais, com garantia de sigilo, certificação do destinatário e estabelecimento de instrumentos efetivos de apuração e correção de eventuais desvios”.
Contudo, o acórdão não definiu diretrizes claras sobre como a Receita Federal deve proceder ao lidar com delitos não tributários, que frequentemente surgem no curso de sua atividade fiscalizatória. Lavagem de dinheiro, falsidade documental (quando não vinculada à sonegação fiscal), peculato e corrupção são exemplos de crimes que podem ser identificados incidentalmente, mas cuja investigação extrapola as atribuições do órgão fazendário.
Diante desse cenário, torna-se essencial chegarmos a um consenso sobre os limites funcionais da Receita Federal, sobretudo a fim de evitar desvios de sua atribuição constitucional e a condução indevida de investigações oficiosas sobre fatos que não têm relação direta com sua atividade fiscalizatória.
Limites funcionais na investigação
O poder de investigação é inerente ao exercício das funções da Polícia Judiciária-Civil e Federal, nos termos do artigo 144, §1º, IV, e § 4º, da Constituição.
Por sua vez, o artigo 4º, parágrafo único, do Código de Processo Penal, dispõe que a apuração das infrações penais e da sua autoria não excluirá a competência de autoridades administrativas, a quem por lei seja cometida a mesma função.
Essa questão funcional foi um dos pontos centrais analisados pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento do HC 89.837/DF, ao debater a possibilidade de o Ministério Público conduzir investigações criminais. Na ocasião, o STF destacou que “o poder de investigar compõe, em sede penal, o complexo de funções institucionais do Ministério Público (…)” [1]. Tal entendimento foi sedimentado em sede de repercussão geral pelo STF no julgamento do Tema 184, consolidando a atribuição investigativa do Ministério Público que “para promover (…) investigações de natureza penal”.
Assim, embora não haja monopólio sobre a investigação criminal, isso não autoriza órgãos de competência administrativa a conduzirem investigações que extrapolem ou desvirtuem suas funções primordiais.
Poderes da Receita
O artigo 194 do Código Tributário Nacional delimita que a Receita Federal possui competência administrativa específica, voltada à fiscalização e à aplicação da legislação tributária. Ou seja, sua atuação se restringe à apuração sobre o recolhimento — ou não — de tributos.
Dessa forma, trazendo para as possíveis repercussões em sede penal, seu alcance fica limitado a fatos relacionados aos crimes de sonegação fiscal, os quais, em linhas gerais, presumem o não recolhimento de tributo devido, com débito reconhecido pela autoridade fiscal (lançamento).
Por outro lado, o cenário muda completamente quando a Receita se depara com informações que possam configurar indícios de crimes de outra natureza, sem impacto direto e imediato na esfera tributária, como lavagem de dinheiro, peculato, falsidade documental e estelionato.
Para reforçar essas limitações funcionais, a Portaria RFB nº 1.750/2018 estabelece uma distinção clara no dever de representação da receita nestes diferentes cenários, estabelecendo:
Representação Fiscal para Fins Penais (artigo 1º, inciso I): aplicável a crimes tributários e aduaneiros;
Representação para Fins Penais (artigo 1º, inciso II): direcionada a delitos não tributários, como falsidade documental e lavagem de dinheiro.
No caso de crimes tributários, a Receita Federal deve proceder com a apuração do débito dentro de sua competência administrativa/fiscalizatória, reportando, ao final do procedimento (lançamento) os possíveis indícios crime contra a ordem tributária ao Ministério Público (representação fiscal para fins penais).
Já em relação a crimes não tributários, sua atuação está limitada a apenas reportar os dados obtidos ao Ministério Público em até dez dias após a ciência do fato, conforme determina o artigo 17 da Portaria RFB nº 1750/2018, sob pena de usurpar as atribuições investigativas exclusivas de outros órgãos (representação para fins penais).
Respostas na prática e o posicionamento do STJ
Imagine a seguinte situação: a Receita Federal, ao identificar supostos crimes não tributários, em vez de cumprir sua obrigação legal de reportar os fatos ao Ministério Público no prazo de dez dias, decide iniciar uma investigação interna. O órgão, então, expede ofícios para cartórios de registros públicos e de imóveis, elabora relatórios, analisa movimentações financeiras e anexa documentos ao processo, assumindo um papel que não lhe compete.
Diante desse desvio de atribuições, há nulidade em eventual persecução penal iniciada desta forma?
A resposta já foi dada pelo Superior Tribunal de Justiça em caso de contornos semelhantes ao descritos no exemplo acima. A Corte reconheceu a ilicitude das provas obtidas quando a Receita Federal extrapola suas competências e conduz investigações criminais próprias de crimes não tributários:
“No âmbito dos delitos não tributários, é indiscutível que a Receita Federal do Brasil não é órgão incumbido da realização de investigação criminal, sob qualquer justificativa, estando tal atribuição completamente à margem de suas competências. (…) Por tudo isso, concluo que houve o desvirtuamento da investigação (…), que deu origem ao Relatório Fiscal, em descumprimento das regras básicas para a elaboração de representações para fins penais, sendo ilícitas todas as provas ali reunidas e igualmente inadmissíveis as provas delas derivadas, em aplicação analógica do art. 157, § 1º, do CPP.[2]“
O julgamento foi categórico ao afirmar: “o dever de representar não se confunde com a atribuição de investigar.”
A atuação da Receita em investigações deve, portanto, obedecer a dois princípios fundamentais:
Pertinência temática, restringindo-se a ilícitos tributários e aduaneiros diretamente vinculados à relação jurídica fiscal;
Finalidade fiscal, assegurando que suas funções sejam voltadas exclusivamente à proteção dos interesses arrecadatórios.
Permitir que um órgão com acesso irrestrito a dados fiscais e bancários conduza investigações criminais sem autorização judicial seria conceder-lhe poderes ilimitados, transformando-o em um verdadeiro “super órgão” investigativo, o qual possui amplo acesso a dados protegidos por sigilo fiscal dos contribuintes, sem os controles institucionais que regem a atividade da Polícia Judiciária e do Ministério Público.
É com esse olhar sobre o poder-dever de representação da Receita, que o Superior Tribunal de Justiça (STJ) vem criando balizas para o compartilhamento pelo órgão de informações sobre delitos não tributários, sem autorização judicial, realizando importante distinção desses casos com o julgamento do Tema 990. Destaque-se:
“Esta Corte procedeu ao distinguishing para não aplicar a tese de repercussão geral nº 990 a casos em que não há investigação de crimes tributários, com o fundamento de que a tese fixada limita-se ao compartilhamento de informações sobre operações que envolvam recursos provenientes de crimes contra a ordem tributária, a Previdência Social, descaminho ou contrabando [3].”
Por outro lado, alguns tribunais ordinários têm adotado uma interpretação mais ampla, aplicando o Tema 990 indistintamente a quaisquer casos em que a Receita Federal reporte ilícitos aos órgãos de persecução penal, independentemente de serem crimes tributários ou não.
Ou seja, utilizando o Tema 990/STF como uma blindagem absoluta à atuação da Receita Federal, tornando imunes a qualquer questionamento as comunicações feitas pelo órgão, ainda que envolvam desvios e investigações ilegais. O entendimento, nesses casos, é o de que a tese fixada no RE nº 1.055.941 já teria validado todas as formas de compartilhamento de dados pela Receita, afastando qualquer possibilidade de controle judicial sobre eventuais abusos.
Conclusão
Como já alertado pelos advogados Gustavo Mascarenhas e Vinícius Vasconcellos em recente artigo publicado nesta ConJur [4], o Supremo precisa revisitar o Tema 990 não apenas para delimitar o alcance da requisição de relatórios de inteligência financeira por órgãos de persecução penal (como bem sugerido pelos colegas), mas também para esclarecer os limites da Receita Federal na apuração de crimes não tributários, evitando distorções que comprometam garantias fundamentais e a própria regularidade da persecução penal.
[1] STF, HC 89.837/DF, Rel. Min. CELSO DE MELLO, 2ª Turma, DJe 19.11.2009.
[2] STJ, RHC n. 167.539/SP. Rel: Min. Messod Azulay Neto. Quinta Turma. Dje. 15 dez. 2023.
[3] EDcl no AgRg no HC n. 234.857/RS, relator Ministro Jesuíno Rissato (Desembargador Convocado do TJDFT), Quinta Turma, julgado em 22/2/2022, DJe de 25/2/2022.
[4] MASCARENHAS, Gustavo; VASCONCELLOS, Vinícius. Os RIFs do Coaf e as consequências práticas do Tema 990: é necessário que o STF se pronuncie. Consultor Jurídico, 21 jan. 2025. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2025-jan-21/os-rifs-do-coaf-e-as-consequencias-praticas-do-tema-990-e-necessario-que-o-stf-se-pronuncie/. Acesso em: 31/01/2025.
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