Opinião

Organização social da saúde e corrupção: um debate necessário

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5 de fevereiro de 2025, 16h26

A chamada Lei Anticorrupção (Lei nº 12.846, de 1º de agosto de 2013), de forma inédita, foi aplicada em uma organização social da saúde (OSS), fruto de atos lesivos detectados no contexto das operações “S.O.S.” e “reditus”, conduzidas pela Controladoria-Geral da União (CGU) em conjunto com a Polícia Federal, em um mecanismo de dissuasão da corrupção para além da punição de agentes, mirando na pessoa jurídica, como é a ideia original dessa lei.

123RF

Derivado do Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado (PDRAE), o modelo de organização social teve grande inserção na política de saúde. Nele, o governo qualifica uma entidade do terceiro setor que atue naquela política social, estabelecendo para ela regras limitantes, aportando recursos e possibilitando a gestão de políticas públicas frente à população, em uma relação mediada por um contrato de gestão com metas pactuadas, na chamada contratualização.

Os escândalos envolvendo OSS são diversos, e a análise das tipologias na imprensa indicam que envolvem principalmente o fenômeno da quarteirização fraudulenta, de modo que a organização do terceiro setor, atuando na gestão do hospital, recebe recursos inflados e efetua contratações direcionadas, pouco transparentes e superfaturadas ou fictícias, com empresas a ela relacionadas, de forma a extrair recursos públicos da Saúde para fins privados.

Para além da atuação fiscalizatória dos órgãos de controle interno e externo, e do Ministério Público, é interessante que se abra essa agenda na linha da chamada Lei Anticorrupção, por induzir o fortalecimento de mecanismos de integridade no âmbito da própria organização social, dado que a Lei nº 9.637, de 15 de  maio de 1998 e o próprio PDRAE (1995) são tímidos nesse aspecto, sem incorporar todas as mudanças ocorridas nesses 30 anos no campo do controle governamental em suas múltiplas dimensões, como a própria agenda de integridade, a Lei de Acesso à Informação (Lei nº 12.527, de 18 de novembro de 2011) e a Lei dos usuários dos serviços públicos (Lei nº 13.460, de 26 de junho de 2017), dentre outros.

Além desse aspecto de fomento à integridade, o uso da Lei nº 12.846/2013 no âmbito das OSS possibilita inibir as irregularidades por criar um custo derivado não só de pesadas multas previstas na lei, como em relação a imagem da pessoa jurídica de direito privado que é a OSS, e que participa em diversos chamamentos públicos em estados e municípios pelo país, e esse tipo de sanção pode ser fator impeditivo de acesso a novos contratos, servindo de incentivo para que não se associe a práticas delituosas em conluio com agentes públicos.

Importância da gestão de riscos

Um programa de integridade no contexto de uma OSS não pode ser algo pasteurizado, de prateleira, sendo necessário que sintonize com os riscos de integridade derivados não só da natureza da relação do contrato de gestão, mas também da própria política de Saúde, e as questões a ela relacionadas nesse campo, como estudado por Braga (2021).

A gestão de riscos necessita estar no centro de qualquer estratégia ou abordagem que vise garantir e promover a integridade pública (OECD, 2022), fugindo da armadilha reducionista de entender o problema da corrupção das organizações sociais como apenas relacionados aos atores envolvidos, o que limitaria, em muito, a proposição de aprimoramentos no arranjo adotado.

O Decreto nº 11.129, de 11 de julho de 2022, que regulamenta a Lei Anticorrupção, é bem específico na importância dos riscos na construção dos programas de integridade:

Art. 56, Parágrafo único: O programa de integridade deve ser estruturado, aplicado e atualizado de acordo com as características e os riscos atuais das atividades de cada pessoa jurídica, a qual, por sua vez, deve garantir o constante aprimoramento e a adaptação do referido programa, visando garantir sua efetividade. (GRIFO NOSSO)

Spacca

Os riscos perpassam a delegação de recursos vultosos para uma entidade privada que os aplica fundamentada no acompanhamento pelo contrato de gestão e na possibilidade de exclusão diante do desempenho deficitário, com a substituição por uma outra OSS, e que para serem mecanismos efetivos para evitar tipologias como a quarteirização fraudulenta, precisam de alguns ajustes, e o programa de integridade pode ser uma das iniciativas nesse sentido.

A gestão das OSS e a relação com os governos via contrato de gestão necessita de mais transparência e controle social, de uma melhor contabilidade de custos e de indicadores que realmente dialoguem com a lógica da política de Saúde. Para isso, os programas de integridade dessas organizações sociais precisam mais do que códigos de conduta e questões de sensibilização. Precisam, sim, de mecanismos que assegurem a transparência de suas transações e a efetividade de suas ações finalísticas, a custos razoáveis, moldando comportamentos por mecanismos claros de incentivos e de limitação formal.

Passados 30 anos do lançamento do Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado (PDRAE), é alvissareiro ver a chamada Lei Anticorrupção dialogar com o modelo de organização social, não pela punição pura e simplesmente, mas pelo seu potencial de induzir aprimoramentos no campo da integridade na estrutura das próprias OSS, uma discussão que se apresenta como uma grande fronteira a ser explorada por gestores e pesquisadores, que são as peculiaridades desses programas de integridade.

 


Referências:

BRAGA, Marcus Vinicius de Azevedo. Peculiaridades da política de saúde e a relação com a incidência de corrupção. In: CARLOS, Luiz Gustavo; BITTENCOURT, Malu Peres; MOHALLEM, Michael Freitas. Corrupção e saúde. Rio de Janeiro: Konrad Adenauer Stiftung, 2021. p. 97-118.

BRASIL. Controladoria-Geral da União. Controladoria-Geral da União impõe sanções a pessoas jurídicas envolvidas em irregularidades. 2025. Disponível em: <https://www.gov.br/cgu/pt-br/assuntos/noticias/2025/01/controladoria-geral-da-uniao-impoe-sancoes-a-pessoas-juridicas-envolvidas-em-irregularidades>. Acesso em: 02 fev 2025

BRASIL. Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado. Brasília: MARE, 1995.

OECD. Modernizando a avaliação dos riscos para a integridade no Brasil: rumo a uma abordagem comportamental e orientada por dados. Paris: OECD Publishing, 2022. https://doi.org/ 10.1787/61d7fc60-pt

 

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