O juízo oral no processo penal militar brasileiro
5 de fevereiro de 2025, 6h34
A Justiça castrense no Brasil tem dois segmentos. À Justiça Militar da União compete julgar crimes militares cometidos por integrantes do Exército, Marinha e Aeronáutica. À Justiça Militar dos estados, julgar crimes militares praticados por integrantes da Polícia Militar, cuja incumbência principal é o policiamento ostensivo fardado e armado. No estado de São Paulo, a corporação possui 80 mil integrantes em serviço ativo.
A legislação militar compreende o Código Penal Militar e o Código de Processo Penal Militar, em vigor desde 1969 e que sofreram poucas alterações. Uma delas ocorreu em 2004, por meio de emenda constitucional, determinando que o juízo militar de primeiro grau de jurisdição passasse a ser composto pelo juiz de Direito, que julga, monocraticamente, se a vítima do crime for civil. O julgamento dos demais crimes é feito pelos Conselhos de Justiça, sob a presidência do juiz de Direito e de mais quatro oficiais.
Há duas espécies de Conselhos de Justiça. O Conselho Permanente é responsável pelo julgamento de praças — graduação de soldado a subtenente. Embora o Conselho tenha a denominação de permanente, sua atividade jurisdicional é de três meses. A cada trimestre, sua composição é renovada. Cabe ao Conselho Especial, o julgamento de oficial acusado de crime militar. Sua composição se dá por meio de sorteio dos oficiais responsáveis por processar e julgar determinado feito. Finalizado o processo com a decisão de mérito, encerra-se a jurisdição.
Procedimento ordinário perante o Conselho de Justiça
A primeira fase da persecução penal — investigação policial — é desenvolvida no âmbito do Poder Executivo pelos órgãos de polícia judiciária militar. A participação da Justiça Militar é reduzida ao controle de prazos no encerramento da investigação e na apreciação de medidas cautelares pessoais, por exemplo, prisão preventiva, ou patrimoniais, como busca e apreensão.
A segunda fase da persecução penal depende de o Ministério Público Militar estar convencido da autoria e da materialidade do crime. A ação penal militar é impulsionada livremente pelo Ministério Público Militar, que oferece denúncia escrita de crime contra o seu autor. Com o recebimento da denúncia — decisão escrita do juiz de Direito — instaura-se a ação penal. A decisão do juiz de Direito de rejeitar a denúncia é recorrível.
Recentes decisões do Supremo Tribunal Federal (Habeas Corpus 237.395 e Recurso Ordinário em Habeas Corpus 142.608) determinaram a abertura de prazo para apresentação de resposta à acusação nos termos dos artigos 396 e 396-A do Código de Processo Penal comum. O artigo 396 do Código de Processo Penal comum prevê que, nos procedimentos ordinário e sumário, oferecida a denúncia ou queixa, o juiz, se não a rejeitar liminarmente, ordenará a citação do acusado para responder à acusação, por escrito, no prazo de 10 dias. O artigo 396-A estabelece que, na resposta, o acusado poderá apresentar preliminares e alegar tudo o que interesse à sua defesa, oferecer documentos e justificações, especificar as provas pretendidas e arrolar testemunhas, qualificando-as e requerendo sua intimação, quando necessário.
Outra decisão do Supremo Tribunal Federal (Habeas Corpus 127.900) deslocou o interrogatório que, até então, pelo Código de Processo Penal Militar era o primeiro ato processual da instrução criminal, para ser o último, aquele que encerra o juízo oral. O fundamento da decisão da Suprema Corte é o de que o acusado sendo interrogado ao fim da instrução criminal exerce com mais amplitude a autodefesa.
O juízo oral perante o Conselho de Justiça inicia-se com as declarações do ofendido, que não é obrigado a responder pergunta que possa incriminá-lo. O ato processual é presidido pelo juiz de Direito. Segue-se com a oitiva de até seis testemunhas de acusação. A testemunha é qualificada, compromissada a dizer a verdade sob pena de cometer falso testemunho e, em seguida, ouvida pelo juiz de Direito.
O Código de Processo Penal Militar, no artigo 418, adota o sistema presidencialista. O ofendido e as testemunhas são inquiridos pelo juiz de Direito e, por intermédio deste, pelos juízes militares do conselho, procurador, assistente de acusação e advogados. O advogado de defesa formulará as perguntas às testemunhas arroladas pela acusação por último. Da mesma forma, às testemunhas arroladas pela defesa o promotor de Justiça formulará as perguntas por último.
Por esse sistema presidencialista, o juiz de Direito pode recusar as perguntas das partes que forem ofensivas, impertinentes, sem relação com o fato descrito na denúncia, ou que importem em repetição de outra pergunta já respondida. Portanto, o controle das reperguntas das partes é feito pelo juiz. Assim, há diferença no juízo oral do Código de Processo Penal Militar com Código de Processo Penal comum, que adota o método do exame direto e cruzado para inquirição de testemunha.
No procedimento oral a parte pode contraditar a testemunha antes do início da colheita do depoimento (artigo 352, § 3º). A chamada contradita de testemunha é uma forma de impugnar a testemunha apontando os motivos que a tornem suspeita ou indigna de fé. O juiz de Direito ouve a testemunha, registra nos autos a contradita, mas só não defere o compromisso de dizer a verdade nos casos especificados na legislação. A contestação tanto de testemunha como do ofendido é feita após a prestação do depoimento, cujo objetivo é o de permitir a inquirição imediata da testemunha e do ofendido sobre os pontos contestados. O procedimento da contradita de testemunha e da contestação do depoimento é oral, sob o controle do juiz togado.
No juízo oral são ouvidas até três testemunhas de defesa por acusado. As partes poderão requerer a oitiva de peritos para esclarecimentos de laudos e exames por eles elaborados.
O interrogatório é um ato processual de natureza oral realizado perante o Conselho de Justiça, sempre na presença do defensor do acusado. Antes de seu início, o acusado tem o direito de entrevistar-se reservadamente com o seu defensor (Convenção Americana de Direitos Humanos, artigo 8, 2, “d”).
Pelo juiz de Direito o acusado é qualificado, cientificado da acusação pela leitura da denúncia e interrogado pelo juiz de Direito, que observará ao acusado o direito de permanecer em silêncio e que seu silêncio não poderá ser interpretado em prejuízo de sua defesa. Tal direito constitucional de permanecer em silêncio é garantido na Constituição Federal e no artigo 296, § 2º, do Código de Processo Penal Militar.
O juiz de Direito deve formular perguntas de modo a serem compreendidas pelo acusado, que não sejam obscuras, capciosas ou com duplo sentido, podendo induzir o acusado ao engano, afirmando como verdadeiro algo contra a sua vontade. Também não podem ser feitas sugestivas que são perguntas que sugerem o conteúdo da resposta desejada. Convém advertir que enredar o acusado com perguntas insidiosas para alcançar a verdade pode levar a construção de um falso culpado. O juiz ouve o acusado com espírito livre de qualquer juízo antecipado. O interrogatório hostil revela convicção do magistrado contra o acusado.
Os juízes militares integrantes do Conselho de Justiça, por intermédio do juiz togado, podem fazer perguntas ao acusado, assim como o promotor de Justiça e o defensor do acusado, dada a natureza jurídica do interrogatório como meio de defesa. Com o interrogatório, encerra-se a primeira fase do juízo oral com a participação do Conselho de Justiça.
As duas fases seguintes do procedimento ordinário são escritas. Na primeira, as partes podem requerer diligências para esclarecer fatos ou circunstâncias que interessem à apuração da verdade. Cabe ao juiz de direito avaliar se essas diligências são pertinentes e relevantes. Atendidas as diligências requeridas pelas partes, a fase seguinte é das alegações escritas.
Com a apresentação das alegações escritas, o procedimento retoma o juízo oral com a realização da sessão de julgamento. O acusado tem o direito de presença. Ou seja, o de acompanhar o julgamento. Instalada a sessão, procede-se a leitura das principais peças dos autos (denúncia, exames, depoimentos etc.).
O representante do Ministério Público sustenta oralmente em primeiro lugar. Em seguida, o assistente de acusação, se houver, e depois a defesa do acusado. O tempo de sustentação oral de três horas e de mais de uma hora para a réplica e treplica mostra-se excessivo.
A sustentação oral compõe o direito de defesa. O defensor pode apresentar tese principal e secundária. Alternativamente ao pedido de absolvição, o defensor pode concordar com o pedido de condenação do Ministério Público, desde que vantajoso para o acusado, como por exemplo, a desclassificação de crime doloso para culposo. O defensor não deve sustentar tese colidente com a apresentada pelo réu em sua autodefesa, sob pena de nulidade processual. A disciplina dos debates impõe o emprego de linguagem conveniente ao decoro dos tribunais.
É dever dos membros do Ministério Público manterem ilibada conduta pública e o advogado comete infração disciplinar ao manter conduta incompatível com a advocacia. O chamado aparte, que ocorre durante os debates, com o pedido de interromper a sustentação oral da parte ex adversa, é permitido por quem esteja fazendo a sustentação oral.
Com a conclusão dos debates orais, os juízes do Conselho de Justiça, em sessão pública, decidem as questões preliminares e se pronunciam sobre o mérito da causa. Podem os juízes militares pedir ao juiz togado esclarecimentos sobre questões de direito que se relacionem com o fato sujeito a julgamento. Ao dar tais esclarecimentos, o juiz togado não deve influenciar o juiz militar a votar num ou noutro sentido.
O Código estabelece uma ordem de votação pública. Vota em primeiro lugar, o juiz togado e depois os juízes militares por ordem inversa de hierarquia, do oficial mais moderno ou de menor patente ao mais antigo ou de maior patente, de modo que o superior ou o mais antigo não exerça influência no voto do oficial de patente inferior ou mais moderno.
Em sessão pública, são apurados os votos pela procedência ou improcedência da imputação feita na denúncia. Em caso de condenação, cada juiz faz a dosimetria da pena privativa de liberdade, decide pela concessão ou não do sursis (suspensão condicional da pena), fixa o regime prisional e reconhece ou não o direito do condenado recorrer da decisão em liberdade. Se pela diversidade de votos não se puder constituir a maioria para aplicação da pena, entende-se que o juiz que tiver votado por pena maior ou mais grave terá virtualmente votado por pena imediatamente menor ou menos grave. A leitura da sentença feita na própria sessão marca o prazo de recorrer.
Em resumo. Parcela significativa e importante do procedimento ordinário é oral, como a instrução criminal, os debates na sessão de julgamento e a votação. Mas estamos diante de um procedimento misto, com partes escritas.
Procedimento ordinário perante o juiz de Direito
O legislador não incluiu capítulo próprio do procedimento ordinário perante o juiz de direito para julgar os crimes cometidos contra civis. Aplicam-se, no que couber, as regras do procedimento ordinário realizado perante o Conselho de Justiça. São documentados o despacho de recebimento da denúncia, o pedido de diligências e as alegações finais. São produzidos oralmente os atos da instrução criminal. As partes são intimadas da sentença para efeito de recurso.
Procedimento especial nos crimes de deserção e de insubmissão
Trata-se de um procedimento misto, ou seja, oral e escrito, e abreviado.
O procedimento especial de deserção e de insubmissão se desenvolve em duas fases. Na fase pré-processual, é lavrado o termo de deserção para o desertor e o de insubmissão do convocado para o serviço militar que não se apresenta para a incorporação. Os referidos termos materializam os respectivos crimes e sujeitam o desertor e o insubmisso a prisão.
Capturado ou apresentado espontaneamente, o desertor é reincorporado e o insubmisso incluído para fins do processo. A fase processual é composta pelo recebimento escrito da denúncia. A instrução criminal e o julgamento são orais.
Procedimento misto no segundo grau de jurisdição
As razões e as contrarrazões por escrito são apresentadas ao tribunal. O processo é distribuído ao juiz relator por sorteio e colocado para apreciação e julgamento.
Nem todos os recursos criminais e ações de impugnação admitem sustentação oral. Cabe sustentação oral por vinte minutos no julgamento dos recursos de apelação (recurso ordinário contra decisão de primeiro grau, absolutória ou condenatória); recurso em sentido estrito (contra determinada decisão de primeiro grau de jurisdição); embargos infringentes e de nulidade (contra decisão de segundo grau de jurisdição tomada por maioria de votos ou que contenha nulidade); correição parcial (cabível para corrigir erro ou omissão, abuso ou ato tumultuário). Em duas ações de impugnação: revisão criminal (de processos findos) e Habeas Corpus.
Após a sustentação oral, o relator profere voto em sessão pública, seguindo-se com a palavra, para igual fim, o revisor, e os demais desembargadores militares na ordem inversa de antiguidade. A decisão do tribunal é documentada no voto do juiz relator.
Conclusão
A tendência da legislação processual penal militar dos países da América do Sul é a de adotar o sistema acusatório, senão totalmente puro, pelo menos que o processo penal tenha estrutura acusatória. No sistema acusatório ou no processo penal de estrutura acusatória, o juiz oral tem relevância. Além disso, é compatível com a instrução criminal e com o julgamento (debates) realizado pelo colegiado (Conselhos de Justiça), alinhado ao princípio da imediatidade.
Se tomarmos o sistema acusatório a partir da divisão de tarefas de julgar e de acusar, no caso brasileiro o órgão da acusação tem independência funcional para formular a imputação, pois, integra o Ministério Público do Estado, situação nem sempre verificável em outras legislações estrangeiras, posto que o Ministério Público é um apêndice da organização judiciária militar. Um segundo ponto muito importante são os predicamentos da magistratura brasileira – garantias constitucionais de vitaliciedade, inamovibilidade e irredutibilidade de vencimentos.
Assim, o juízo oral, ao lado da vedação da iniciativa do juiz na investigação (o magistrado não pode requisitar a instauração de inquérito policial militar, atribuição exclusiva do Ministério Público) e da vedação da substituição da atuação probatória do órgão da acusação, forma a tríade do sistema acusatório.
NR – O tema foi abordado durante o “VII Encontro Internacional sobre Justiça Militar e Direito Operacional” em Lima, Peru, nos dias 20, 21 e 22 de novembro de 2024, que reuniu, além do país-sede, magistrados e oficiais militares dos Estados Unidos, Colômbia, Chile, Paraguai, Guatemala, Equador, República Dominicana, Angola e México.
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