Opinião

Mediação antirracista e o protocolo para julgamento com perspectiva racial

Autores

5 de fevereiro de 2025, 15h27

Em novembro de 2024, foi lançado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) o Protocolo para Julgamento com Perspectiva Racial, de aplicação obrigatória pelo Poder Judiciário. O documento traz conceitos importantes e exemplos práticos para que juízes não reproduzam estereótipos de raça que reforcem o racismo e a discriminação na condução dos processos e nas decisões judiciais. Observa-se, da leitura do documento, que o protocolo não é aplicável aos indígenas [1].

O protocolo traz o conceito de racismo, previsto na Convenção Interamericana contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância:

“Racismo consiste em qualquer teoria, doutrina, ideologia ou conjunto de ideias que enunciam um vínculo causal entre as características fenotípicas ou genotípicas de indivíduos ou grupos e seus traços intelectuais, culturais e de personalidade, inclusive o falso conceito de superioridade racial. O racismo ocasiona desigualdades raciais e a noção de que as relações discriminatórias entre grupos são moral e cientificamente justificadas” [2].

Para uma compreensão mais profunda dessa dinâmica, destacam-se os estudos de Moreira, Almeida e Corbo [3], que fazem uma distinção crucial entre três conceitos frequentemente confundidos: racismo enquanto sistema de dominação (estrutura), preconceito racial como reação emocional motivada pela circulação de representações negativas de minorias (componente psicológico) e discriminação racial enquanto prática individual e institucional (conjunto de ações que operacionalizam o racismo).

Neste contexto, os autores afirmam que “agentes públicos e privados interpretam traços fenotípicos como sinal de inferioridade moral e de periculosidade social, vinculando padrões culturais, políticos, sociais e econômicos de pessoas negras à ideia de degeneração” [4]. Essa interpretação revela como o racismo se perpetua não apenas através de ideias e teorias, mas também por meio da construção e disseminação de estigmas sociais que associam determinadas características físicas e culturais a atributos negativos, justificando, assim, práticas discriminatórias e excludentes.

Protocolo e mediação

Feitas tais considerações, registre-se que o protocolo foi especialmente direcionado ao processo judicial e aos juízes, mas nada fala a respeito dos mediadores e da mediação de conflitos. Assim como o Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero, que também não traz referências expressas a respeito de sua aplicação na mediação e aos mediadores, destaca-se o cabimento tanto da perspectiva de gênero quanto da perspectiva racial em todos os meios de solução de conflitos, e não só no processo judicial, que é apenas uma das portas de acesso à justiça [5].

Os profissionais do sistema de Justiça devem estar atentos, portanto, às raízes das desigualdades estruturais que permeiam os mecanismos de resolução de controvérsias, pois as questões raciais moldam as relações e os conflitos na sociedade. Vale mencionar as específicas considerações trazidas no protocolo destinadas aos processos judiciais, no que diz respeito às mulheres negras e às pessoas negras idosas, para uma melhor ponderação [6].

Ao mencionar esses dois grupos, o protocolo pretende destacar a vinculação entre duas categorias de opressões sociais distintas, com consequências sociais e jurídicas também distintas, mas que incidem sobre um mesmo indivíduo ou grupo, ocasionando uma “discriminação interseccional” [7]. Quando se trata de grupos racializados, com frequência ocorrem “trombamentos” e “intersecções” de discriminações, de forma que o peso combinado das estruturas marginaliza pessoas que estão na base, não podendo escolher apenas uma das opressões para ofertar soluções ou justiça [8].

Spacca

Atentando-se ao tratamento desses indivíduos no âmbito do Poder Judiciário, verifica-se se estão sendo atendidas as demandas desses grupos com os recursos procedimentais específicos necessários, se há garantia de segurança física, emocional e psicológica, se não existem barreiras culturais e linguísticas, e se há fornecimento de explicações claras sobre o funcionamento dos métodos disponíveis para a resolução de conflitos.

Merece destaque o item 4.1 do Protocolo, que trata da aproximação das partes. O item traz perguntas e reflexões que exemplificam como o julgador pode ser sensível às questões raciais, sem que isso viole sua imparcialidade.

Os exemplos mostram que, assim como os juízes, é desejável que os mediadores tenham a capacidade de identificar e interromper dinâmicas discriminatórias que possam surgir no percurso da mediação. Caso contrário, o procedimento perde seu valor e se torna ineficaz, criando um ambiente que pode reforçar ainda mais as desigualdades estruturais.

Assim como no processo judicial, na mediação é necessário que se considere a segurança emocional e física das partes. Para mulheres negras, por exemplo, mediadores devem estar atentos não apenas as questões como a violência doméstica, a discriminação e a vulnerabilidade social, mas garantir acima de tudo que as pessoas se sintam respeitadas e acolhidas durante o procedimento. Considerando, principalmente, que chegar até a etapa do processo judicial já é uma grande dificuldade para este grupo, porquanto são desencorajados e possuem uma baixa confiabilidade no sistema de justiça.

Mediação antirracista

Em suma, adaptar as diretrizes do Protocolo para Julgamento com Perspectiva Racial para a mediação implica em um movimento de sensibilização contínua dos mediadores quanto à complexidade das dinâmicas raciais e de gênero que afetam as partes, além de integrar práticas inclusivas que garantam que todas as vozes sejam ouvidas e respeitadas. Ao incorporar novas lentes, os mediadores podem contribuir de forma significativa para a promoção da igualdade no sistema de justiça [9].

Esse movimento não visa a resolução de conflitos de forma padronizada, mas a promoção de uma justiça que reconheça e valorize as desigualdades históricas e contemporâneas que afetam pessoas e grupos. Ao agir dessa forma, a mediação também contribui para a reparação das injustiças raciais, promovendo a dignidade e a equidade.

Afirma-se, portanto, que mediação, ao ser adaptada de acordo com as diretrizes do Protocolo, pode colaborar para a formação de uma “cultura de mediação antirracista”. Esse termo reflete a intenção de ir além da simples neutralidade do mediador, assumindo uma postura ativa contra o racismo estrutural e as dinâmicas discriminatórias que permeiam a sociedade e, por consequência, os procedimentos de mediação. Além disso, objetiva tornar a mediação consciente [10] das dinâmicas raciais, reconhecendo que o racismo pode se manifestar de diversas formas e em diferentes contextos, não apenas em situações óbvias de discriminação explícita.

A mediação antirracista enquanto categoria se caracteriza por um compromisso do mediador em reconhecer as desigualdades raciais presentes nas relações e nos conflitos, além de tomar medidas concretas para desafiá-las. Isso inclui ações como: a) reconhecer as dinâmicas de poder racial presentes nas narrativas das partes: o mediador antirracista identifica e lida com as tensões raciais que podem surgir durante a mediação; b) interromper práticas discriminatórias: a mediação antirracista envolve o mediador atuando ativamente para interromper qualquer manifestação de racismo explícito ou implícito durante o processo de mediação; c) incorporar práticas inclusivas e sensíveis: os cursos de formação e capacitação permanente de mediadores devem considerar a educação jurídica antirracista; assim como as instituições de ensino superior; d) desafiar as desigualdades estruturais: a mediação antirracista vai além do processo de negociação em si, buscando também refletir e questionar as estruturas sociais mais amplas que influenciam o conflito, como as desigualdades raciais, de classe, gênero e outros fatores interseccionais.

Ao adotar essas práticas, a mediação antirracista não só visa resolver o conflito, mas também contribui para um ambiente jurídico mais consciente, combatendo o racismo de maneira ativa dentro do próprio procedimento de resolução de conflitos.

 


[1] Segundo o protocolo: “A cor parda – relacionada a pessoas com ascendência negra não engloba, portanto, a condição dos indígenas, que remete a um status jurídico diferenciado e, no âmbito do CNJ, encontra proteção especial nas Resoluções n. 287/2019, 453/2022, 454/2022, 512/2023, e 524/2023, entre outras”. BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Protocolo para Julgamento com perspectiva racial. Brasília: Conselho Nacional de Justiça. 2024, p. 31-32. Disponível em: https://atos.cnj.jus.br/files/compilado175836202411256744bacc89b57.pdf, Acesso em 31 jan. 2024.

[2] BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Protocolo para Julgamento com perspectiva racial. Brasília: Conselho Nacional de Justiça. 2024, p. 34. Disponível em: https://atos.cnj.jus.br/files/compilado175836202411256744bacc89b57.pdf, Acesso em 31 jan. 2024.

[3] MOREIRA, Adilson José; ALMEIDA, Philippe Oliveira de; CORBO, Wallace. Manual de educação jurídica antirracista: direito, justiça e transformação. São Paulo: Contracorrente, 2022, p. 113.

[4] MOREIRA, Adilson José; ALMEIDA, Philippe Oliveira de; CORBO, Wallace. Manual de educação jurídica antirracista: direito, justiça e transformação. São Paulo: Contracorrente, 2022, p. 116.

[5] GOULART, Juliana Ribeiro; BARBOSA, Gabriela Jacinto. É urgente a formação de profissionais da mediação na perspectiva de gênero. Consultor Jurídico, 14 abr. 2024. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2024-abr-14/e-urgente-a-formacao-de-profissionais-da-mediacao-na-perspectiva-de-genero/. Acesso em: 17 jun. 2024.

[6] BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Protocolo para Julgamento com perspectiva racial. Brasília: Conselho Nacional de Justiça. 2024, p. 56-57. Disponível em: https://atos.cnj.jus.br/files/compilado175836202411256744bacc89b57.pdf, Acesso em 31 jan. 2024.

[7] CRENSHAW, Kimberle. A intersecionalidade na Discriminação de Raça e Gênero. Painel 1: “Cruzamento: raça e gênero”. 2002, p. 8. Disponível em: https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/4253342/mod_resource/content/1/IntersecionalidadeNaDiscriminacaoDeRacaEGenero_KimberleCrenshaw.pdf. Acesso em: 22 jan. 2025.

[8] CRENSHAW, Kimberle. A intersecionalidade na Discriminação de Raça e Gênero. Painel 1: “Cruzamento: raça e gênero”. 2002, p. 12. Disponível em: https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/4253342/mod_resource/content/1/IntersecionalidadeNaDiscriminacaoDeRacaEGenero_KimberleCrenshaw.pdf. Acesso em: 22 jan. 2025.

[9] GOULART, Juliana Ribeiro; BARBOSA, Gabriela Jacinto. Mediação judicial e protocolo para julgamento com perspectiva de gênero: novas possibilidades para o sistema de justiça consensual. BARBOSA, Gabriela Jacinto; ELEUTÉRIO, Júlia Melim Borges Eleutério; CASCAES, Luciana da Veiga Cascaes (orgs.). Protocolo para julgamento com perspectiva de gênero. Vol. 2. Florianópolis: Habitus Editora, 2025, p. 19.

[10] MOREIRA, Adilson. Consciência racial como consciência cívica. Disponível em: https://www.geledes. org.br/consciencia-racial-como-consciencia-civica/. Acesso em: 31 jan. 2025.

Autores

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!