Opinião

Dolo específico: consciência ilícita de favorecer o destinatário preferido

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5 de fevereiro de 2025, 9h22

A Lei de Improbidade Administrativa (Lei nº 8.429/1992) passou por significativas alterações com o advento da Lei nº 14.230/2021, que trouxe mudanças na responsabilização dos agentes públicos. Entre as principais modificações, destaca-se a exigência da comprovação do dolo específico para que se configure a improbidade administrativa. Antes da reforma legislativa, a mera violação dos princípios administrativos poderia ser suficiente para a imputação de responsabilidade, mesmo sem intenção deliberada do agente público. Com a nova redação da lei, a improbidade administrativa deixou de ser reconhecida nos casos de culpa, passando a exigir que a conduta do agente público seja dolosa, ou seja, que haja uma vontade consciente e direcionada para a obtenção de um resultado ilícito.

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Essa mudança impôs um ônus probatório mais rigoroso ao Ministério Público e aos órgãos de controle, tornando necessário demonstrar, de forma inequívoca, que o agente público não apenas descumpriu a lei, mas também o fez com a intenção específica de lesar a administração pública ou obter benefício indevido para si ou para terceiros. Assim, a delimitação do dolo específico tornou-se ainda mais relevante, pois agora se exige não apenas a prática do ato ilícito, mas também a demonstração de que ele ocorreu com um fim especial de agir. Dessa forma, não há que se falar em improbidade administrativa em casos de meros erros administrativos ou interpretações equivocadas da norma, sem que se demonstre a intenção específica de causar prejuízo ao erário ou violar princípios administrativos com objetivos escusos.

Nesse sentido, o dolo específico refere-se à vontade consciente e direcionada para a obtenção de um resultado específico, distinguindo-se do dolo genérico, que se caracteriza pela simples intenção de praticar o ato ilícito. No contexto da improbidade administrativa, a conduta do agente precisa ser motivada pelo propósito deliberado de beneficiar um terceiro ou auferir vantagem indevida. Com a alteração legislativa, esse elemento tornou-se requisito essencial para a configuração das infrações previstas na Lei de Improbidade Administrativa (LIA). Isso significa que não basta comprovar que o agente público praticou um ato contrário aos princípios administrativos; é necessário demonstrar que ele o fez com o objetivo deliberado de alcançar um benefício ilícito. Essa mudança tem impacto direto na caracterização de atos como direcionamento de licitação, nepotismo e contratação irregular de servidores temporários.

Princípio fundamental, bem comum, ética e dever moral

O princípio da probidade está enraizado nos princípios e valores que regem a administração pública e busca garantir que os agentes públicos atuem com ética e integridade, promovendo a confiança e a justiça no relacionamento entre o Estado e a sociedade. A LIA tutela a probidade na organização do Estado e no exercício de suas funções, assegurando a integridade do patrimônio público e social. Dessa forma, a probidade administrativa configura-se como princípio fundamental da administração pública, diretamente relacionado à ética, honestidade, moralidade e integridade no exercício das funções públicas. Sendo assim, é dever do agente público agir em conformidade com a lei, respeitando as normas e regulamentos que regem sua atividade, tratando a todos com igualdade, sem discriminação ou favorecimentos indevidos. Deve proceder com honestidade, integridade e boa-fé, buscando sempre o bem comum.

Nessa perspectiva, a ética, segundo Kant (1785) [1], prioriza o dever e a obrigação moral, independentemente das consequências das ações. Para o filósofo, a moralidade de uma ação reside no cumprimento do dever pelo dever. Agir moralmente é agir por respeito à lei moral, não por inclinação ou para alcançar um objetivo específico. Essa distinção é fundamental, pois diferencia ações morais de ações simplesmente conformes ao dever, mas motivadas por outros interesses particulares.

No caso dos atos administrativos vinculados, o agente público não possui liberdade de escolha. Ele tem o dever funcional de agir conforme a lei, praticando o ato exatamente como ela determina. O descumprimento desse dever acarreta responsabilidades para o agente e resulta na ilegalidade do ato praticado. A relação entre o ato vinculado e o dever do agente público é, portanto, uma manifestação clara do princípio da legalidade e da submissão da administração pública à lei.

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Como resultado, o ato vinculado é a concretização máxima desse princípio, pois nele a lei predetermina todos os aspectos da atuação administrativa, não deixando margem para a discricionariedade do agente público. Depreende-se, assim, que o agente público, quando incorre em qualquer tipo de improbidade, mesmo que não ocorra perda patrimonial ou prejuízo ao erário, sua ação merece reprovação sancionatória por ofensa ao princípio da probidade, tutelado pela Constituição.

Com efeito, a LIA, ao definir a responsabilização do agente público diante da sua conduta típica com dolo específico, exige que seu comportamento seja direcionado para favorecer um terceiro ou auferir vantagem indevida. O agente, quando descumpre a lei, o faz de vontade consciente e direcionada, ciente do risco do resultado e assumindo sua responsabilidade, pois tem um objetivo determinado a alcançar. Não age, portanto, de forma graciosa ou ingênua. Mesmo que não traga prejuízo ao erário – o que precisa ser demonstrado –, sua conduta avilta diretamente os princípios da impessoalidade, da legalidade e da moralidade administrativa.

Direcionamento de licitação e nepotismo

Nesse contexto, há diversas situações que demonstram a presença do dolo específico na administração pública. Na hipótese de dispensa indevida de licitação, por exemplo, há projeção de uma disposição premeditada. O dolo manifesta-se na vontade consciente de praticar uma ação ou omissão que resulta em um dano ou prejuízo a outrem, beneficiando um destinatário específico. Isso porque, a licitação, por sua natureza, tem a função de garantir a igualdade de oportunidades a todos os interessados. Já a contratação direta, quando realizada de forma indevida por dispensa ou inexigibilidade, favorece indevidamente um beneficiado escolhido pelo gestor.

Como proclama o título deste artigo, o dolo específico é a vontade consciente de cometer um ilícito para favorecer o resultado ao seu destinatário final, o preferido da gestão. O agente quando direciona o edital para favorecer seu escolhido, ou contrata de forma direta e indevida, tem como intenção presentear seu privilegiado beneficiário. A revelação essencial é que o gestor público, que tem o dever de conhecer e aplicar a lei, quando incorre em sua violação, o faz por vontade própria e consciente, mas com um objetivo consequente que irá contemplar um terceiro. Esse favorecimento não ocorre por acaso, pois não existe fortuito no desvio de finalidade da lei.

Aqui, não cabe especular se o destinatário das dádivas do erário irá recompensar aquele agente público ou gestão responsável pelo ato ilícito. Entretanto, ingenuidade ignorar os sucessivos precedentes de escândalos na coisa pública. Vale ressaltar que tais práticas ilícitas frequentemente se manifestam por meio de diferentes estratégias de manipulação dos processos administrativos, demonstrando um padrão sistemático de condutas que violam os princípios da administração pública.

Saliente-se que núcleo da conduta do tipo “frustrar a licitude de processo licitatório” significa qualquer ato que prejudique, inutilize, afete ou reduza o vigor competitivo de sua lisura, isenção ou imparcialidade. Assim, a ocorrência de quaisquer manipulações que influenciem no resultado do certame configurará, em sua totalidade, a conduta ilícita descrita pela norma de regência. O evento de dano ao erário mediante superfaturamento ou sobrepreço representa o exaurimento do tipo ilícito, cujo destinatário preferencial na ponta do procedimento é o elemento caracterizador do dolo específico, pois, desde o início do processo, esse é o fim especial desejado pelo agente público responsável.

Outro exemplo claro de dolo específico ocorre no nepotismo, quando o agente público favorece um parente ao conceder-lhe uma função ou cargo público. Nessa situação, há plena ciência da ilicitude, pois o gestor conhece as normas que regem a administração pública e, mesmo assim, decide violá-las em benefício de um familiar. Da mesma forma, a contratação irregular de servidores temporários pode configurar improbidade administrativa, caso seja realizada com o objetivo de obter apoio político ou votos para si ou para seus candidatos. Nesse caso, a conduta dolosa é consciente ao desprezar os princípios da legalidade, impessoalidade e moralidade, visando obter vantagem indevida de natureza eleitoral. A mesma linha de entendimento se aplica na suposição da figura do “servidor fantasma”.

Diante disso, a exigência do dolo específico na Lei de Improbidade Administrativa, consolidada com a reforma legislativa de 2021, trouxe um novo paradigma na responsabilização dos agentes públicos. Se, por um lado, a mudança evita punições desproporcionais para condutas meramente culposas, por outro, exige maior rigor na apuração e demonstração da intenção ilícita do gestor. Dessa forma, para que se configure a improbidade administrativa, é imprescindível comprovar não apenas a ilicitude do ato, mas também a finalidade específica de lesar a administração pública ou obter vantagem indevida. Essa mudança, como demonstrado, impacta diretamente o julgamento de casos como direcionamento de licitação, nepotismo e contratação irregular, exigindo que os órgãos de controle aprimorem seus métodos investigativos e probatórios.

Assim, a doutrina e a jurisprudência precisarão evoluir no sentido de consolidar os critérios de prova do dolo específico, garantindo que a aplicação da Lei de Improbidade Administrativa continue sendo um instrumento eficaz de combate à corrupção, sem comprometer a segurança jurídica dos gestores públicos. O desafio que se impõe, a partir da reforma da lei, é equilibrar o rigor necessário ao combate à corrupção com a segurança jurídica essencial à boa governança.

 


[1] Fundamentação da Metafísica dos Costumes” (Grundlegung zur Metaphysik der Sitten)

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