Dedutibilidade das perdas não técnicas de energia elétrica
5 de fevereiro de 2025, 8h00
Nesta semana, trataremos dos precedentes do Carf acerca da dedutibilidade das perdas não técnicas de energia elétrica.
Considerações gerais sobre o tema
O processo de produção e distribuição de bens e serviços destinados à comercialização pode ser mais ou menos complexo, no entanto, é extremamente comum que haja algum tipo de perda de matéria-prima, produtos em elaboração ou até mesmo de produtos acabados em alguma fase da produção, transporte ou comercialização.
Diante de tal cenário, é natural que uma parcela do Estoque não esteja mais apta a ser comercializada em condições normais e deva ser baixada como perda no resultado do exercício.
Ao se debruçar sobre a terminologia utilizada na Contabilidade Custos, Eliseu Martins definiu perda como o bem ou serviço que é consumido de forma anormal e involuntária [1].
Como consequência, a perda não se confunde com despesa, visto que não se trata de um sacrifício feito com intenção de obtenção de receita, justamente em função da sua anormalidade e involuntariedade [2].
Ademais, Eliseu Martins pontua que por mais que seja comum o uso da expressão “Perdas de material na produção de inúmeros bens e serviços”, a quase integralidade destas “perdas” é um custo, visto que são valores sacrificados de maneira normal no processo de produção, sendo parte de um sacrifício já conhecido até por antecipação para a obtenção do produto ou serviço e da receita desejada [3].
Ainda no âmbito da Contabilidade de Custos, Eliseu Martins alerta para a necessidade de diferenciação entre as perdas de produção normais e as anormais. As normais seriam aquelas inerentes ao próprio processo de produção, possuindo previsibilidade e fazendo parte da expectativa da empresa. Por outro lado, as anormais são aquelas que ocorrem de maneira involuntária e não representam sacrifício premeditado, tais quais aquelas decorrentes de danificações extraordinárias de materiais por obsoletismo, degeneração, incêndio, desabamento etc [4].
Nessa linha, perdas normais, tais como aquelas relacionadas com o custo do material perdido no processo de produção, farão parte do custo dos produtos fabricados ou dos serviços prestados. Por sua vez, perdas normais deixam de fazer parte do custo da produção e são registradas contabilmente diretamente no resultado do exercício em função de serem aleatórias e não voluntárias [5].
No âmbito da apuração do imposto de renda da pessoa jurídica (IRPJ), os custos dos produtos fabricados ou dos serviços prestados são dedutíveis como regra geral a menos que haja uma previsão legal determinando a sua indedutibilidade [6].
No que tange às perdas, o artigo 46, V, da Lei nº 4.506/64 [7] estabelece que são custos dedutíveis as despesas e os encargos relativos à aquisição, produção e venda dos bens e serviços objeto das transações de conta própria, tais como as quebras e perdas razoáveis, de acordo com a natureza do bem e da atividade, ocorridas na fabricação no transporte e manuseio.
O inciso VI do referido artigo [8] dispõe ainda que a dedutibilidade das quebras ou perdas de estoque por deterioração, obsolescência ou pela ocorrência de riscos não cobertos por seguro, está condicionada à comprovação: (i) por laudo ou certificado de autoridade sanitária ou de seguranças que especifique e identifique as quantidades destruídas ou inutilizadas, e as razões da providência; (ii) por certificado de autoridade competente nos casos de incêndios, inundações, ou outros eventos semelhantes; e (iii) mediante laudo de autoridade fiscal chamada a certificar a destruição de bens obsoletos, inventáveis ou danificados, quando não houver valor residual apurável.
Cumpre destacar que o artigo 46, V e VI, da Lei n. 4.506/64 teve o seu texto integralmente transportado para o artigo 303 do Decreto n. 9.580/18 (RIR/18), que integra a Subseção III “Do custo de bens ou serviços” do capítulo V “Lucro Operacional” do referido decreto.
Em decorrência das disposições legais da Lei n. 4.506/64, ainda que as quebras ou perdas pudessem ser contabilmente classificadas como despesas, elas são equiparadas a custos para fins de dedutibilidade do IRPJ, dado que o caput de seu artigo 46 expressamente determina que: “são custos as despesas e os encargos (…) tais como”.
Trata-se de caso de ficção legal, isto é, o legislador está atribuindo o regime jurídico de dedutibilidade dos custos para algumas modalidades de perdas que podem ser registradas entre as despesas. Ao tratar do conceito de ficção jurídica, Luís Eduardo Schoueri propugna que: “ficção jurídica é uma norma, através da qual o legislador determina que se apliquem, a dada hipótese de incidência (“hipótese ficta”), determinadas sanções previamente definidas para outra situação (base da ficção). A ficção configura, assim, mera remissão legal” [9].
Outro dispositivo legal que é bastante citado nos precedentes envolvendo perdas é o artigo 47, §3º, da Lei nº 4.506/64 [10], que atribui dedutibilidade às despesas operacionais (não computadas nos custos) com prejuízos por desfalque, apropriação indébita ou furto por empregados ou terceiros desde que haja instauração de inquérito segundo a legislação trabalhista ou seja apresentada queixa perante a autoridade policial.
No âmbito do setor elétrico, são extremamente comuns as perdas de energia elétrica no processo de distribuição. Nesse sentido, há a divulgação anual pela Superintendência de Gestão Tarifária e Regulação Econômica da Aneel do Relatório de Perdas de Energia Elétrica na Distribuição.
Segundo o relatório publicado em 2024 e relativo ao ano de 2023, o transporte de energia, tanto na rede básica quanto na distribuição, fatalmente resulta em perdas técnicas, visto que parte da energia se dissipa ao longo do processo de transmissão, transformação de tensão e medição.
As perdas na rede básica são determinadas pela diferença entre a energia gerada e a entregue às redes de distribuição, sendo elas mensuradas mensalmente pela Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE) e suportadas igualmente entre geradoras e consumidores. Em 2023, essas perdas representaram cerca de 2,3% da energia gerada.
Já na distribuição, as perdas são calculadas a partir da diferença entre a energia adquirida pelas distribuidoras e a efetivamente faturada aos consumidores.
As perdas técnicas são aquelas inevitáveis em qualquer sistema de distribuição, sendo reconhecidas nas tarifas pela Aneel. Por sua vez, as perdas não técnicas são obtidas pela diferença entre as perdas totais e as técnicas. Elas decorrem, principalmente, de furtos (ligações clandestinas e desvios diretos da rede), fraudes (adulteração de medidores ou desvios), além de erros de leitura, medição e faturamento.
Tendo em vista o registro contábil de perdas não técnicas pelas distribuidoras de energia elétrica, torna-se cabível discutir a dedutibilidade ou não de tais valores.
Precedentes do Carf
Feitas as considerações gerais sobre o tema, passaremos à análise dos precedentes do Carf que tratam do assunto.
No Acórdão 1402-004.314 (de 10/12/19) [11], a turma negou provimento ao Recurso Voluntário, por voto de qualidade, mantendo o crédito tributário lançado.
O conselheiro relator entendeu que as perdas não técnicas não integram o conceito de perdas razoáveis, estando diretamente associadas à gestão comercial da distribuidora, não se constituindo, em custo do serviço prestado, só podendo ser dedutíveis quando houver inquérito instaurado nos termos da legislação trabalhista ou quando apresentada queixa perante a autoridade policial, o que não teria ocorrido no caso concreto.
A mesma turma julgou de maneira semelhante no Acórdão 1402-004.517 (de 10/03/20), mais uma vez, por voto de qualidade.
Embora a fiscalização entenda que as perdas não técnicas são alheias à atividade e são gerenciáveis, a conselheira relatora [12] afirma que elas são intrínsecas à atividade e que a distribuidora não pode se furtar a operar em áreas com maior complexidade socioeconômica, mesmo que isso implique em níveis mais elevados de perdas não técnicas.
Por outro lado, o redator designado [13] reafirma o conteúdo do seu voto no já citado Acórdão 1402-004.314.
No Acórdão 1004-000.155 (de 10/04/24) [14], a turma deu provimento, de forma unânime, ao Recurso Voluntário do contribuinte, exonerando o crédito tributário lançado.
O relator ponderou que as perdas não técnicas são intrínsecas à atividade de distribuição de energia elétrica diante de sua própria metodologia do cálculo, assim como elas são impossíveis de serem evitadas na realidade atual do país, razão pela qual devem integrar o custo do serviço prestado.
Nos Acórdãos n. 1101-001.349 e 1101-001.350 (ambos de 16/07/24) [15], a turma deu provimento, de forma unânime, ao Recurso Voluntário do contribuinte, exonerando o crédito tributário lançado.
As autoridades fiscais lavraram os autos de infração com base no entendimento de que as perdas não técnicas de uma distribuidora de energia não seriam inerentes à atividade da empresa, não podendo ser consideradas custos. Sendo assim, a eventual dedutibilidade de tais gastos como despesas operacionais exigiria a comprovação do prejuízo, a imputação da autoria a terceiros e a existência de queixa ou representação criminal tempestiva com a individualização dos fatos.
O contribuinte havia apresentado cópias de duas notificações protocoladas perante uma delegacia de polícia informando o furto de energia elétrica, no entanto, as autoridades fiscais entenderam eu não houve imputação de autoria aos crimes e que as notificações eram genéricas e abrangiam lapsos temporais extensos.
O conselheiro relator apontou que se a própria Aneel, que é responsável por definir os custos das distribuidoras, reconhece a inevitabilidade das perdas não técnicas e autoriza o seu repasse na tarifa, não haveria como negar a sua natureza de custo para a distribuidora.
Ademais, o relator afirma que as perdas se revelam como um elemento intrínseco à própria operação da recorrente, um ônus indissociável do cumprimento de seu objetivo social, de modo que não seria possível fornecer energia sem que haja as perdas não técnicas.
No que tange ao ponto de que a notícia-crime seria intempestiva e genérica, o relator assina que a legislação tributária usou o termo “queixa” de forma inadequada, devendo ser interpretado o termo como “notícia de crime”, que diferentemente da queixa-crime, não exige a individualização dos autores do delito, bastando a comunicação do fato à autoridade policial.
Ademais, a exigência de individualização dos autores dos furtos de energia, em um contexto de complexa realidade socioeconômica como a brasileira, seria desarrazoada e, muitas vezes, impossível de ser cumprida, não havendo a distribuidora como deixar de fornecer energia elétrica em áreas com altos índices de furtos.
O relator conclui que ainda que as perdas não técnicas excedam o limite regulatório, não há como não as caracterizar como perdas normais inerentes à produção ou prestação de serviços, devendo ser parte do custo nos termos do Pronunciamento Contábil CPC 16 (Estoques), ainda que tal norma não trate especificamente de energia elétrica.
No Acórdão nº 1202-001.394 (de 10/09/24), a turma negou provimento ao Recurso Voluntário, por voto de qualidade, mantendo o crédito tributário lançado.
O conselheiro relator [16] manifestou o entendimento de que as perdas não técnicas decorrem da exploração da atividade da distribuidora, sendo um gasto inerente à consecução de seu objeto social. Além disso, a própria Aneel reconhece que as perdas não técnicas, até o limite regulatório, são inerentes à atividade de distribuição de energia elétrica. O relator pontua que não seria razoável transferir a responsabilidade de identificação dos autores dos furtos para a distribuidora, visto que nem as autoridades públicas responsáveis pela segurança pública conseguem resolver o problema.
Por sua vez, o conselheiro redator [17] do voto vencedor menciona que não houve o queixa ou representação criminal dirigida à autoridade policial, que individualizasse a situação fática e identificasse os autores do potencial crime, sendo que não seria possível aceitar queixas feitas de forma vaga, imprecisa e genérica, sem conterem uma individualização e detalhamento das práticas que ensejaram o furto de energia elétrica e, por conseguinte, sem conterem qualquer indicação de quem seriam os supostos infratores.
Conclusão
Diante de todo o exposto, nota-se que a matéria ainda segue bastante controversa, visto que parte dos julgadores tem se voltado para a questão formal da apresentação de queixa perante a autoridade policial, ao passo que outros julgadores têm avaliado o tema sob uma perspectiva das operações das entidades e a inviabilidade da identificação da autoria dos furtos.
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[1] MARTINS, Eliseu. Contabilidade de Custos. 11ª ed. São Paulo: Atlas, 2023. p. 11.
[2] MARTINS, Eliseu. Contabilidade de Custos. 11ª ed. São Paulo: Atlas, 2023. p. 11.
[3] MARTINS, Eliseu. Contabilidade de Custos. 11ª ed. São Paulo: Atlas, 2023. p. 11.
[4] MARTINS, Eliseu. Contabilidade de Custos. 11ª ed. São Paulo: Atlas, 2023. p. 109.
[5] MARTINS, Eliseu. Contabilidade de Custos. 11ª ed. São Paulo: Atlas, 2023. p. 109.
[6] Decreto-Lei n. 1.598/77: “Art 6º – (…) § 2º – Na determinação do lucro real serão adicionados ao lucro líquido do exercício:
- a) os custos, despesas, encargos, perdas, provisões, participações e quaisquer outros valores deduzidos na apuração do lucro líquido que, de acordo com a legislação tributária, não sejam dedutíveis na determinação do lucro real;”.
[7] Lei n. 4.506/64: “Art. 46. São custos as despesas e os encargos relativos à aquisição, produção e venda dos bens e serviços objeto das transações de conta própria, tais como: (…)
V – As quebras e perdas razoáveis, de acôrdo com a natureza do bem e da atividade, ocorridas na fabricação no transporte e manuseio;”.
[8] Lei n. 4.506/64: “Art. 46. (…)
VI – As quebras ou perdas de estoque por deterioração, obsolescência ou pela ocorrência de riscos não cobertos por seguro, desde que comprovadas:
- a) por laudo ou certificado de autoridade sanitária ou de seguranças que especifique e identifique as quantidades destruídas ou inutilizadas, e as razões da providência;
- b) por certificado de autoridade competente nos casos de incêndios, inundações, ou outros eventos semelhantes;
- c) mediante laudo de autoridade fiscal chamada a certificar a destruição de bens obsoletos, inventáveis ou danificados, quando não houver valor residual apurável”.
[9] SCHOUERI, Luís Eduardo. Distribuição Disfarçada de Lucros. São Paulo: Dialética, 1996. p. 164.
[10] Lei n. 4.506/64: “Art. 47. São operacionais as despesas não computadas nos custos, necessárias à atividade da emprêsa e a manutenção da respectiva fonte produtora. (…)
- 3º Sòmente serão dedutíveis como despesas os prejuízos por desfalque, apropriação indébita, furto, por empregados ou terceiros, quando houver inquérito instaurado nos têrmos da legislação trabalhista ou quando apresentada queixa perante a autoridade policial”.
[11] Conselheiro Marco Rogério Borges.
[12] Conselheira Junia Roberta Gouveia Sampaio.
[13] Conselheiro Marco Rogério Borges.
[14] Conselheiro Jeferson Teodorovicz.
[15] Conselheiro Itamar Artur Magalhães Alves Ruga.
[16] Conselheiro Fellipe Honório Rodrigues da Costa.
[17] Conselheiro Maurício Novaes Ferreira.
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