Da nacionalidade de sentença arbitral: sobre o REsp 2.179.098/RJ
5 de fevereiro de 2025, 19h34
Interessante caso envolvendo uma ação anulatória de sentença arbitral na origem tramita atualmente perante a 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça. Trata-se do REsp 2179098/RJ, em que litigam Sinopec International Petroleum Service Corporation (SIPSC), autora na origem e ora recorrente, e, do outro lado, Companhia Nacional de Dutos S.A. (Conduto) e Transportadora Associada de Gás S.A. (TAG), réus na origem. Entre as discussões debatidas em sede de recurso especial, está a jurisdição do Poder Judiciário brasileiro para julgar a ação anulatória originária. [1]
Na arbitragem questionada pela autora da ação anulatória [2], restou estabelecido à época, por meio das convenções de arbitragem e do termo de arbitragem pactuados entre as partes, que a sede da arbitragem seria a cidade de Londres; a London Court of International Arbitration (LCIA) seria responsável por administrar o procedimento arbitral; as regras da Comissão das Nações Unidas para o Direito Comercial Internacional de 1976 seriam aplicáveis ao procedimento arbitral, complementadas pelas regras da Uncitral de 2010; a legislação brasileira seria aplicada ao caso; o idioma da arbitragem seria inglês; e a sentença arbitral seria proferida em Londres. Além disso, todos os árbitros eram brasileiros e a maior parte dos atos procedimentais foram praticados e faturados no Brasil (v.g. citação das partes, audiências arbitrais e produção de prova pericial).
Uma das controvérsias submetidas ao Superior Tribunal de Justiça cinge em decidir sobre a nacionalidade da sentença arbitral proferida, se estrangeira ou brasileira. A controvérsia tem relevância, tendo em vista que, caso se entenda que a sentença arbitral seja estrangeira, o Poder Judiciário não terá competência para julgar a ação anulatória.
Isso porque sentenças arbitrais estrangeiras não podem ser reconhecidas e executadas no Brasil — e, portanto, teoricamente objeto de anulação —, enquanto não tiverem sido homologadas pelo STJ, nos termos do artigo 35 da Lei de Arbitragem. [3] Sobre o tema, veja-se que a Lei de Arbitragem tratou das sentenças arbitrais estrangeiras em capítulo próprio, a partir do artigo 34, ao passo que a ação anulatória consta no artigo 32, em capítulo anterior. Tal separação de temas em capítulos distintos tem sua razão de ser: o artigo 32 é previsto para anulação tão somente de sentenças arbitrais nacionais. [4]
Registra-se, de todo modo, que a jurisprudência do STJ já é pacífica no sentido de que, ainda que homologada, a sentença arbitral estrangeira, que passa a produzir seus efeitos no território nacional, não pode ser objeto de revisão ou modificação por quaisquer órgãos do Poder Judiciário. [5]
Pois bem. O principal dispositivo legal que será objeto de exame pelo STJ no REsp 2.179.098/RJ, para definição da nacionalidade da sentença arbitral, é o artigo 34, parágrafo único, da Lei de Arbitragem. Segundo o referido artigo, “considera-se sentença arbitral estrangeira a que tenha sido proferida fora do território nacional”.
Critério territorial para nacionalidade de sentença
É pacífico em doutrina [6] e jurisprudência [7] que o legislador brasileiro, com inspiração na Convenção de Nova York de 1958 e em legislações estrangeiras, como a espanhola, adotou critério territorial-geográfico para a definição da nacionalidade da sentença arbitral, de modo que, para ser nacional, deve a sentença ser proferida em território brasileiro. Não há relevância, portanto, para o direito brasileiro, para fins de definição de nacionalidade de sentença arbitral, a língua adotada no procedimento, a nacionalidade dos árbitros ou das partes, o local onde certos atos processuais foram praticados, entre outros itens.
A Lei de Arbitragem brasileira optou pelo uso do modelo monista, no qual não há tratamento diferenciado entre arbitragens nacionais e internacionais, bem como distinção de regras entre um procedimento doméstico e estrangeiro. Somente há um regime jurídico no Brasil, qual seja, aquele voltado para arbitragens cujas sentenças foram proferidas no território brasileiro.
No caso concreto, na última página da sentença arbitral questionada, especificamente acima da assinaturas dos árbitros e da data da decisão, consta que o local da arbitragem (Place of Arbitration) seria Londres, Inglaterra. Diante dessa informação, seria, então, a referida sentença estrangeira?
Segundo a parte autora, ora recorrente, a resposta é negativa. Alega, com base em provas anexadas aos autos, que, no momento em que proferida e assinada a sentença arbitral, os três árbitros estariam no Brasil, apesar de o local da arbitragem em que consta na sentença ser Londres. Desse modo, compreende a autora que a sentença, uma vez proferida por árbitros que se encontravam fisicamente no Brasil, seria nacional, independentemente do que consta escrito na sentença.
Lugar físico dos árbitros é irrelevante
A respeito desse ponto, a meu ver, o lugar físico onde estão os árbitros no momento em que proferem a sentença é juridicamente irrelevante. Parece-me uma formalidade excessiva, além de não prevista em lei e fora da praxe do mercado, defender que deveriam ter os árbitros se deslocado fisicamente para o país onde as partes acordaram que seria proferida a sentença. O lugar em que proferida a sentença é uma ficção jurídica criada, em regra, pelas partes contratualmente.
No caso concreto, cabia aos árbitros apenas estabelecer como local em que proferida a sentença arbitral aquele previamente pactuado pelas partes. Nesse sentido, o que vigora — e deve prevalecer — é o princípio da autonomia privada das partes que, no momento que pactuaram no termo de arbitragem que a sentença seria proferida em Londres, estabeleceram, desde logo, em livre manifestação de vontade, que a sentença arbitral seria estrangeira.
Com efeito, o que se deve perquirir, em verdade, é a comunhão de interesses das partes quanto ao país onde desejam que a arbitragem concentre seus efeitos jurídicos. Não por acaso, o artigo 26, IV, da Lei de Arbitragem dispõe que a indicação do lugar de prolação da sentença arbitral constitui requisito essencial do compromisso arbitral, cabendo, assim, exclusivamente às partes tal definição.
Caso fosse do interesse das partes exigir dos árbitros o seu deslocamento físico até o local estipulado para a elaboração e assinatura da sentença, essa exigência deveria ter sido previamente prevista em contrato, eis que a legislação não impõe tal obrigação. Ainda, sabe-se que, naturalmente, tal deslocamento físico acarretaria custos às partes, incluindo passagens áreas, hospedagem e remuneração pelas horas despendidas pelos árbitros dentro do território designado para a prolação da sentença. Nada disso, contudo, foi aparentemente debatido durante o procedimento arbitral ora questionado, mas apenas na ação anulatória, após a autora ser derrotada em sede arbitral.
Ademais, não se pode ignorar o contexto do mundo digital e globalizado em que a sociedade contemporânea se encontra inserida, influenciando diretamente a prática arbitral. Essa realidade não apenas transforma dia após dia as dinâmicas sociais e econômicas do mundo atual, como também redefine o modo como é conduzido o procedimento pelos tribunais arbitrais.
Tribunal arbitral
A título ilustrativo, pode-se mencionar o período da pandemia, durante o qual, em regra, nenhum árbitro precisou se deslocar fisicamente de sua residência para o local da arbitragem, e, ainda assim, diversas sentenças — tanto nacionais como estrangeiras — foram proferidas nesse intervalo de tempo sem demais questionamentos. No caso concreto, não se afigura correto exigir que a parte recorrida, após definir que a sentença de seu caso seja estrangeira, tenha de investigar e monitorar o local exato onde os árbitros estavam no momento da prolação da sentença — se no seu escritório do Rio de Janeiro, em uma casa de veraneio ou em um quarto de hotel no exterior.
Há também que ressaltar dois detalhes importantes do caso: o artigo 16.3 do Regulamento da LCIA prevê que “o Tribunal Arbitral pode realizar qualquer audiência em qualquer local geográfico conveniente, em consulta com as partes e deliberar em qualquer local geográfico de sua escolha; e se esse(s) local(is) for(em) outro(s) que não a sede da arbitragem, a arbitragem será, no entanto, tratada para todos os efeitos como uma arbitragem conduzida na sede da arbitragem e qualquer ordem ou sentença arbitral como tendo sido proferida nessa sede”; e o artigo 18.1 do Regulamento da Uncitral dispõe que “(…) A sentença arbitral considera-se proferida no local da arbitragem”.
Ainda que superado o debate quanto ao local físico em que se encontram os árbitros no momento que prolatam e assinam a sentença arbitral, outro tópico interessante tratado no caso é se o lugar em que proferida a sentença arbitral é sinônimo de lugar da sede da arbitragem. Isto é, se, sendo Londres designada a sede da arbitragem, significa isso dizer que as partes, respaldadas pela lei brasileira, teriam consequentemente pactuado que a sentença também deveria ser proferida em Londres.
Em âmbito internacional, o conceito de sede de arbitragem e suas consequências jurídicas dependem do que prevê a lei do país da sede. No entanto, sabe-se que a lei da sede arbitral, em regra, rege diretamente uma série de questões jurídicas específicas que afetam qualquer arbitragem internacional — não por outra razão, sua prévia fixação em convenção de arbitragem acontece na maioria absoluta dos casos.
Conforme explica Gary Born, a sede da arbitragem pode ser responsável por reger: a legislação arbitral nacional aplicável à arbitragem; a lei “processual” da arbitragem, incluindo a lei aplicável à relação “externa” entre a arbitragem e o direito nacional e os tribunais (como o controle de anulação da sentença); a lei presumivelmente aplicável à validade substancial do acordo de arbitragem; a lei aplicável aos procedimentos “internos” da arbitragem (incluindo requisitos de igualdade de tratamento e devido processo legal); entre outros itens. [8]
Local da sentença para legislação brasileira
No Brasil, contudo, o legislador optou por não utilizar o termo “sede” de arbitragem na Lei 9.307/96. Simplesmente, consignou que a sentença arbitral é estrangeira quando proferida fora do território brasileiro, nos termos do artigo 34, parágrafo único. Em nenhum momento se referiu ao termo “sede” ou “local” da arbitragem, tendo apenas pontuado sobre a obrigatoriedade de designação de local para prolação da sentença no momento da elaboração do compromisso arbitral e da sentença arbitral (artigo 10, IV e artigo 26, IV, da Lei de Arbitragem, respectivamente).
Figuras brasileiras de autoridade em arbitragem divergem frontalmente sobre o assunto. Em parecer dado favoravelmente à recorrente, anexado aos autos, Selma Lemes defende que a definição da sede da arbitragem não tem relação alguma com a nacionalidade da sentença arbitral, constituindo a definição de sede “um uso da arbitragem internacional, que tem sua origem em práticas internacionais, para localizar a sentença arbitral e vinculá-la a um sistema jurídico determinado”. De outro lado, em parecer fornecido à recorrida, também disponibilizado nos autos, Pedro Batista Martins afirma que local, lugar ou sede de arbitragem se traduz e representa o mesmo que o lugar em que proferida a sentença, possuindo ambos o mesmo sentido jurídico.
Os defensores dessa segunda tese, afirmam que eventual diferenciação entre sede e local em que proferida a sentença pode causar graves consequências às partes, no cenário eventual em que pactuam que a sede de arbitragem será em um país e a assinatura da sentença arbitral, ocasionalmente, ocorre em outro. Para Adriana Braghetta, em obra exclusiva sobre o assunto, ambos devem ser encarados como sinônimos. Compreende a autora que a sede de arbitragem possui papel relevante para: a definição da nacionalidade do laudo com reflexos na sua execução; a definição da competência do Judiciário que controlará o laudo via ação de anulação; a verificação de sua influência, de forma subsidiária, para a regularidade da validade da convenção arbitral; e a análise das disposições procedimentais imperativas da sede. [9]
Não se sabe ao certo como o tema será enfrentado pelo Superior Tribunal de Justiça, por ausência de precedentes similares anteriores, mas tal debate tem repercussões práticas para a arbitragem brasileira. A decisão da Corte Superior sobre o assunto será importante para identificarmos se o Brasil seguirá a tendência internacional de considerar a sede arbitral elemento central para a definição de uma série de consequências jurídicas importantes para a arbitragem, a exemplo do lugar em que será proferida a sentença arbitral. Independentemente do entendimento que venha a ser adotado, é fundamental que as partes contratantes estejam cientes das implicações jurídicas ao definir a sede da arbitragem e o local de prolação da sentença, a fim de evitar futuras discussões legais e proteger a efetividade do processo arbitral.
[1] Processo n. 0158867-88.2020.8.19.0001 distribuída perante a 45ª Vara Cível do Foro do Rio de Janeiro.
[2] Procedimento arbitral LCIA n. UN152998.
[3] Art. 35. Para ser reconhecida ou executada no Brasil, a sentença arbitral estrangeira está sujeita, unicamente, à homologação do Superior Tribunal de Justiça.
[4] O art. 38, IV, da Lei de Arbitragem também é um indicativo de que o legislador não autoriza que a sentença arbitral estrangeira seja objeto de anulação pelo Poder Judiciário brasileiro, quando estabelece que “somente poderá ser negada a homologação para o reconhecimento ou execução de sentença arbitral estrangeira, quando o réu demonstrar que: VI – a sentença arbitral não se tenha, ainda, tornado obrigatória para as partes, tenha sido anulada, ou, ainda, tenha sido suspensa por órgão judicial do país onde a sentença arbitral for prolatada.
[5] AgRg na Rcl n. 14.005/SP, Relator Ministro João Otávio de Noronha, Corte Especial, julgado em 16.09.2015, DJe de 05.10.2015.
[6] Por todos: CARMONA, Carlos Alberto. Arbitragem e processo: um comentário à lei n. 9.307/96. São Paulo: Atlas, 2009. 3ª edição. p. 439.
[7] REsp n. 1.231.554/RJ, Relatora Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 24.05.2011, DJe de 1º.06.2011.
[8] BORN, Gary, International Commercial Arbitration, 3rd edn, Kluwer Law International, 2024. Ch 14.
[9] BRAGHETTA, Adriana. A Importância da Sede de Arbitragem: visão a partir do Brasil. Rio de Janeiro: Renovar, 2010.
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