Podem os sócios integralizar as quotas subscritas com serviços?
5 de fevereiro de 2025, 13h20
A sociedade, isto é, o sujeito de direito autônomo e distinto das pessoas que a constituíram, para que possa exercer as atividades constantes no seu objeto social, necessita de recursos que, inicialmente, são aportados pelos sócios. Em outras palavras, a organização da atividade empresarial na forma de sociedade demanda capitalização, procedimento que envolve a subscrição de frações representativas desse fundo comum (o capital social) e a integralização, ato representativo da efetiva transferência dos recursos para a sociedade. Portanto, no momento de constituição da sociedade, o capital social corresponderá exatamente ao seu patrimônio, quadro que sofrerá mudanças após a prática dos negócios a que a pessoa jurídica se propõe.
Antes, todavia, de adentrar no ato societário de aporte de recursos para a formação do capital social, tema sobre o qual nos propomos a refletir, necessário passar, ainda que brevemente, pela instituição que é a “sociedade”.
De imediato, oportuno rememorar que as sociedades se classificam em simples ou empresárias pelo seu objeto, exceção às sociedades por ações e cooperativas, conforme se extrai do artigo 982, e parágrafo único do Código Civil [1].
Sem adentrar em reflexões a respeito da necessidade ou não de regimes diferenciados, o critério distintivo entre sociedade simples e empresária adotado pelo legislador assenta-se no objeto social [2]: a sociedade empresária exerce atividade econômica própria de empresário sujeita a registro, enquanto a sociedade simples exerce atividade econômica também sujeita a registro, mas não aquela que caracteriza o empresário. O número de colaboradores, auxiliares, a organização, a estrutura ou o modo de atuar no mercado não definem a classificação da sociedade, pois o que importa é o objeto delimitado no seu ato constitutivo.
E para se verificar se a atividade econômica é própria de empresário, se faz necessário analisar o conceito de empresário enunciado no artigo 966 do Código Civil: “Considera-se empresário quem exerce profissionalmente atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou serviços”. Ou seja, a sociedade empresária estrutura os fatores de produção (capital, mão de obra, insumos, tecnologia) para o exercício profissional da empresa.
O parágrafo único do artigo 966 do Código Civil expressamente excetua do conceito de empresário “quem exerce profissão intelectual, de natureza científica, literária ou artística, ainda que com o concurso de auxiliares ou colaboradores”. Portanto, a sociedade que tiver por objeto social o exercício de profissão intelectual (literária, artística ou científica) configura sociedade simples, salvo se o exercício dessas “atividades intelectuais, artísticas, científicas ou literárias for parte de uma atividade maior, na qual sobressai a organização” [3].
Em outras palavras, a sociedade constituída para o exercício de profissão intelectual é excluída do enunciado contido no caput do artigo 966 do Código Civil, “salvo se o exercício da profissão constituir elemento de empresa”, o que ocorre quando o objeto da sociedade contemplar outra atividade de natureza não intelectual (reveladora da condição de empresária) que acabe absorvendo a atividade intelectual, que, por conseguinte, se torna elemento daquela.
Sobre o assunto, esclarecedora a lição de Sérgio Campinho:
“O exercício da profissão intelectual será, dentro do contexto, em nosso entendimento, elemento de empresa, se nele não se encerrar a própria atividade. Os serviços profissionais se constituem, assim, em instrumento de execução da empresa. Os serviços profissionais são um elemento de uma atividade. Um exemplo da hipótese seria a situação das casas de saúde e hospitais em que a execução da profissão intelectual se apresenta como um dos elementos do exercício da empresa. Nessas sociedades não há um mero e exclusivo realizar da profissão intelectual, a qual vai consistir em um dos elementos da atividade econômica que será explorada de forma organizada” [4].
Foge aos objetivos desse ensaio explorar a técnica legislativa determinante da exclusão da profissão intelectual do conceito de empresário, interessando-nos tão somente chamar a atenção para o fato de que, no caso, o patrimônio intelectual dos integrantes da sociedade simples se sobressai em relação aos investimentos com bens, dinheiro ou direitos para a formação do capital social, razão pela qual na sociedade simples admite-se a contribuição com serviços, isto é, o sócio pode ingressar na sociedade e dela participar sem contribuir com recursos materiais.
Relação capital-trabalho entre sócios x sociedade
Evidentemente, um dos elementos essenciais de todas as sociedades é a contribuição dos sócios para a formação de um fundo comum (o capital social), recurso necessário para que a sociedade possa exercer as atividades definidas no seu objeto social. Ocorre que, somente as sociedades simples albergam a figura do sócio que contribui com serviços para a alcance e realização dos objetivos sociais. Isso porque nas sociedades simples a pessoa dos sócios é um ativo de significativa expressão.
Nas sociedades empresárias do tipo limitada e por ações não se admite a integralização (entenda-se, a realização) das quotas ou das ações subscritas (entenda-se, frações do capital social) com serviços, sendo indispensável a transferência de dinheiro, bens – materiais ou imateriais — ou crédito do sócio para a sociedade. Ou seja, a integralização deve ser feita com patrimônio específico do próprio sócio. Afirma o artigo 7º da Lei nº 6.404/76 que: “O capital social poderá ser formado com contribuições em dinheiro ou em qualquer espécie de bens suscetíveis de avaliação em dinheiro.” O Código Civil, por sua vez, deixa claro que nas sociedades limitadas “é vedada contribuição que consista em prestação de serviços.” (§ 2º, artigo 1.055).
É interesse reproduzir, inclusive, disposição relativa à impossibilidade de realização do capital com lucros futuros: “Não poderá ser indicada como forma de integralização do capital a sua realização com lucros futuros que o sócio venha a auferir na sociedade.” (Instrução Normativa DREI 81, de 2020; Anexo IV; Capítulo II; Seção I; item 4.3.3).
Embora seja comum em sociedades limitadas empresárias os sócios participarem com trabalho, estando à frente dos negócios e se relacionando diretamente com os clientes, isso não significa, sob a perspectiva jurídica, a possibilidade de integralização das quotas sociais subscritas com prestação de serviços. Em resumo, mesmo uma sociedade limitada empresária de perfil personalista, onde a pessoa do sócio tem uma função preponderante, o investimento para fins de participação no capital social deverá ser realizado em dinheiro, crédito ou bens – sejam materiais ou imateriais — que tenham expressão econômica e que permitam avaliação [5].
Conquanto até o contrato social da sociedade empresária possa dispor a respeito da necessária prestação de serviços por determinado (s) sócio (s), inclusive com vinculação ao pro labore, não se admite que a integralização das quotas subscritas se opere mediante serviços.
Uma questão interessante diz respeito a contribuição do sócio, para fins de participação no capital social da sociedade empresária, com know-how que, como se sabe, traduz-se em conhecimento técnico e experiência em determinada área.
Frente a essa situação, e partindo da premissa de que know-how é um bem jurídico de natureza imaterial [6], mostra-se possível ao sócio integralizar as quotas subscritas com know-how, desde que mensurável o seu valor econômico [7]. No caso, indispensável a avaliação do bem intangível e seu reconhecimento no contrato social como ativo, afiançando a sua incorporação ao patrimônio da pessoa jurídica.
[1] Art. 982. Salvo as exceções expressas, considera-se empresária a sociedade que tem por objeto o exercício de atividade própria de empresário sujeito a registro (art. 967); e simples, as demais.
Parágrafo único. Independentemente de seu objeto, considera-se empresária a sociedade por ações; e simples, a cooperativa.
[2] “Elemento-chave do regime-societário, o objeto social descreve a atividade econômica a ser exercida pela sociedade, definindo o que pode e o que não pode ela fazer, sendo o fundamento e o limite do poder de gestão.” (CAMILO JUNIOR, Ruy Pereira. Direito societário e regulação econômica. Barueri: Manole, 2018, pp. 304-305.
[3] TOMAZETTE, Marlon. Curso de Direito Empresarial: teoria geral e direito societário – vol. 1, 9. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2018, p. 76.
[4] CAMPINHO, Sérgio. Sociedades simples e empresárias: necessidade de uma revisão de conceitos. In: COELHO, Fabio Ulhoa; LIMA, Tiago Asfor Rocha; NUNES, Marcelo Guedes (coord.). Reflexões sobre o projeto de código comercial. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 431.
[5] Confira-se: “Apelação. Ação de Reconhecimento e Dissolução de Sociedade de Fato c/c Dano Moral e Pedido de Apuração de Haveres. Sentença que julgou improcedente a pretensão autoral. Inconformismo do autor. Pretensão de ter por reconhecida sua qualidade de sócio de fato de pessoa jurídica constituída pela requerida. Requerente que reivindica sua posição de sócio de trabalho. Empresa constituída sob a forma de limitada. Impossibilidade de integralização do capital por meio de trabalho. Inteligência do art. 1.055, § 2º, do CC. Ausência de provas documentais que corroborem o aporte de bens ou dinheiro na sociedade por parte do requerente. Descabimento do pleito formulado. Inexistência de danos extrapatrimoniais indenizáveis decorrentes de sua não inclusão nos quadros societários de empresa constituída pela requerida. Sentença mantida. Recurso Desprovido.” (TJ-SP; Apelação 1004156-21.2023.8.26.0224; Relator: Azuma Nishi; Órgão Julgador: 1ª. Câmara Reservada de Direito Empresarial; Data da Decisão: 02/08/2024).
[6] ZAITZ, Daniela. Direito & Know-how. Curitiba: Juruá, 2005, p. 193.
[7] LEONARDOS, Gabriel Francisco. Tributação da Transferência de Tecnologia. Rio de Janeiro: Forense, 2001, p. 76.
Encontrou um erro? Avise nossa equipe!