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PPA municipal 26/29 será o 1º integrado com plano anual de contratações

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  • é livre-docente em Direito Financeiro (USP) doutora em Direito Administrativo (UFMG) com estudos pós-doutorais em administração (FGV-RJ) procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo e professora (FGV-SP).

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4 de fevereiro de 2025, 8h00

Para além de teorias, fantasias, coisas do oriente e romances astrais, Belchior confessava que a sua alucinação era suportar o cotidiano e o seu delírio era a “experiência com coisas reais”. Segundo o saudoso poeta e cantor cearense, “amar e mudar as coisas” eram, de fato, os desafios que lhe interessavam mais.

Na lida diária com as contas municipais, a minha alucinação é refletir e tentar propor algumas rotas sobre como os prefeitos recém-empossados poderiam aprimorar o ciclo decisório local para entregar à sociedade, tanto quanto possível, serviços públicos mais efetivos.

É na base municipalista que emerge, de fato, a possibilidade de “mudar as coisas”. Ali é onde a gestão pública de nível da rua promove levantamentos os mais próximos e vívidos das necessidades sociais, até porque estruturalmente convive e dialoga com o cidadão a todo tempo.

Neste ano de 2025, aliás, uma confluência normativa é particularmente propícia para que os gestores públicos locais formulem políticas públicas amparadas por um robusto esforço de planejamento. Será a primeira vez que a elaboração do plano plurianual dos municípios poderá ter seu alcance estratégico integrado com o plano de contratações anual previsto no artigo 12, VII e §1º da Lei 14.133, de 1º de abril de 2021:

“Art. 12. No processo licitatório, observar-se-á o seguinte:
[…] VII – a partir de documentos de formalização de demandas, os órgãos responsáveis pelo planejamento de cada ente federativo poderão, na forma de regulamento, elaborar plano de contratações anual, com o objetivo de racionalizar as contratações dos órgãos e entidades sob sua competência, garantir o alinhamento com o seu planejamento estratégico e subsidiar a elaboração das respectivas leis orçamentárias.
§1º O plano de contratações anual de que trata o inciso VII do caput deste artigo deverá ser divulgado e mantido à disposição do público em sítio eletrônico oficial e será observado pelo ente federativo na realização de licitações e na execução dos contratos. […]”

Como a nova Lei Geral de Licitações e Contratos entrou plenamente em vigor apenas em 1º de janeiro de 2024, só agora com o PPA municipal 2026/2029 é que tende a ser empreendido — sistêmica e integradamente — o esforço de conectar os programas de duração continuada e os investimentos plurianuais com o adensamento qualitativo das demandas de contratação em bases anualizadas.

Segundo o artigo 5º do Decreto 10.947, de 25 de janeiro de 2022, que regulamenta o plano de contratações anual e institui o Sistema de Planejamento e Gerenciamento de Contratações no âmbito da administração pública federal, os objetivos que devem ser considerados durante a elaboração do plano são os seguintes:

“I – racionalizar as contratações das unidades administrativas de sua competência, por meio da promoção de contratações centralizadas e compartilhadas, a fim de obter economia de escala, padronização de produtos e serviços e redução de custos processuais;
II – garantir o alinhamento com o planejamento estratégico, o plano diretor de logística sustentável e outros instrumentos de governança existentes;
III – subsidiar a elaboração das leis orçamentárias;
IV – evitar o fracionamento de despesas; e
V – sinalizar intenções ao mercado fornecedor, de forma a aumentar o diálogo potencial com o mercado e incrementar a competitividade.”

O gestor é demandado a identificar — de forma consolidada e prévia — quais são as necessidades anuais de contratação para, entre outros fins, potencializar os ganhos de escala, prevenindo fracionamentos indevidos da despesa e buscando melhores condições de negociação com o mercado fornecedor. Tal macro compreensão permitiria que os entes políticos reduzissem custos gerenciais, padronizassem a demanda de bens e serviços, bem como alinhassem a governança estratégica do ente político, conectando os instrumentos de planejamento com as leis do ciclo orçamentário.

Spacca

Afinal, não há como o poder público adequadamente contratar bens, serviços e obras, sem claro entendimento acerca de como tais objetos se correlacionam com o escopo maior que mobiliza finalisticamente cada política pública ao longo do tempo, em termos de programa governamental.

A nova Lei de Licitações pertinentemente posiciona o processo de contratação como apenas mais uma etapa no ciclo das políticas públicas. A esse respeito, é pedagógico e potente o caput do artigo 18 da Lei 14.133/2021, segundo o qual: “a fase preparatória do processo licitatório é caracterizada pelo planejamento e deve compatibilizar-se com o plano de contratações anual […] e com as leis orçamentárias”. Justifica-se tal integração, na medida em que a ignorância sobre como determinada parte se insere no todo tende a comprometer a entrega de resultados e a encarecer a operação dos serviços governamentais.

Há de haver, pois, um dinâmico diálogo entre cada pretensão unitária de contratação com o plano anual correspondente. Ato contínuo, deve ser demonstrada a conexão de ambos (contratação unitária e plano de contratações anual) com o PPA, a LDO e LOA. Para atestar aludido acoplamento, deve ser formulado um “estudo técnico preliminar”, na forma do inciso I e §1º do artigo 18 da atual Lei de Licitações e Contratos. Sua finalidade é fundamentar a necessidade da contratação para caracterização do interesse público envolvido, bem como devem ser evidenciados “o problema a ser resolvido e a sua melhor solução, de modo a permitir a avaliação da viabilidade técnica e econômica da contratação”.

Mas onde reside, na origem, a identificação do que seria esse “problema a ser resolvido sob a perspectiva do interesse público” (artigo 18, §1º, I da Lei 14.133/2021), ao ponto de justificar uma contratação governamental? A bem da verdade, é o planejamento setorial das políticas públicas conjugado com o planejamento orçamentário que nos oferece — a sério — o diagnóstico dos problemas da sociedade, a eleição legítima de quais desses devem ser priorizados pelo Estado para fins de enfrentamento escalonado no tempo e a apresentação de algumas possíveis rotas de resolução, em termos de prognóstico.

O negligenciado, mas indispensável plano plurianual

É precisamente nesse contexto que se abre a oportunidade de, nos primeiros meses deste 2025, os prefeitos recém-empossados elaborarem conjuntamente o projeto de lei de plano plurianual e o plano de contratações anual.

O PPA, na forma do artigo 165, §1º da Constituição, equaliza duas funções estruturais do Estado brasileiro: fomento ao mercado e prestação de serviços públicos. Em ambos os casos, é possível manejar despesas de capital e programas de duração continuada, cuja vigência plurianual reclama ordenação legítima de prioridades ao longo do tempo.

É natural que muitos prefeitos escolham amplificar obras de engenharia e grandes parcerias com a iniciativa privada para marcar sua gestão, sem que semelhante compromisso seja apresentado em prol da consecução ordinária dos serviços públicos executados diretamente pelo município. Nisso surge um aparente dilema, cuja resolução deveria passar pela concepção republicana e democraticamente pactuada do porvir. Afinal, o desafio primordial dos planos plurianuais é estabelecer, de forma tecnicamente racional e politicamente legítima, o quanto pode ser destinado aos investimentos, de um lado, e o quanto deve ser assegurado para o custeio de programas de duração continuada, de outro.

É oportuno lembrar que a legitimidade é um princípio pouco debatido entre nós, muito embora conste solenemente do caput do artigo 70 da Constituição. Sua razão de ser e estar ali, ao lado da legalidade e da economicidade, precisa ser trazida à tona em tempos de franca e severa rediscussão dos parâmetros de ordenação legítima das prioridades orçamentárias e financeiras em nossa sociedade.

No constitucionalismo brasileiro, a noção de legitimidade, direta ou indiretamente, pressupõe parâmetros formais, como, por exemplo, o procedimento legislativo para aprovação das peças orçamentárias. Mas também reclama critérios substantivos, como a fixação de pisos de custeio para direitos fundamentais.

O que não podemos perder de vista é que há de haver balizas objetivas e prospectivas, bem como filtros processuais e intertemporais que determinem a equidade da distribuição dos recursos estatais entre as mais diversas políticas públicas. Duas são as dimensões envolvidas: tempo e quantidade de recursos. Isso porque a tempestividade dos repasses para satisfazer cada escolha governamental (alegadamente feita em nome da sociedade) é tão ou mais importante que o volume pecuniário das dotações envolvidas.

Já que é praticamente impossível o Estado atender a todos os pleitos de todos os sujeitos concomitantemente, é preciso eleger socialmente o que deve ser resolvido em primeiro, segundo, terceiro, quarto lugar e assim por diante… Também é preciso escolher quais problemas não cabe ao Estado tentar solucionar: esse, por sinal, é um complexo esforço de devolver a cada cidadão, à sociedade e ao mercado a clara compreensão dos limites da ação governamental.

A ordenação de prioridades no ciclo orçamentário é sempre a resolução socialmente pactuada de conflitos em uma gradação não só quantitativo-financeira, mas, sobretudo, temporal. Aliás, a própria palavra “prioridade” diz respeito à identificação do que deve, ou não, vir primeiro.

Não há outra forma de lidar com realidades complexas, senão ordenando prioridades, o que, ao nosso sentir, necessariamente implica planejar. Dito de modo ainda mais direto: priorizar legitimamente é planejar em diálogo com a sociedade. Isso porque planejar é promover o diagnóstico amplo dos problemas, contrastá-los e eleger coletivamente os que são prioritários, para, a partir dessa seleção inicial, conceber prognósticos factíveis para sua resolução ao longo do tempo.

Infelizmente, em nosso país, a fragilidade histórica do planejamento setorial, regional, nacional, econômico e orçamentário tem sido usada como pretexto para simplesmente negligenciarmos esse esforço democrático de ordenação de prioridades no médio e longo prazo. Assim é que muitos prefeitos preferem fazer um planejamento plurianual meramente protocolar, para, durante a execução orçamentária, terem margem de redesenho unilateral quase ilimitada na forma de créditos adicionais suplementares, remanejamentos, transposições e outros instrumentos análogos.

Randall Wray, em entrevista ao jornal Valor, questionava o cínico esvaziamento do planejamento estatal em face da permanente ação planificadora do próprio mercado:

“Toda economia é planejada. Sempre. Não existe uma economia que não seja planejada. A questão é quem faz o planejamento e quem se beneficia. A economia americana é planejada, mas infelizmente quem mais a planeja é Wall Street, para beneficiar Wall Street. O que precisamos fazer é tirar boa parte do planejamento das mãos de Wall Street e colocar nas mãos de representantes eleitos. Eles são supostamente os responsáveis pelo interesse público. O problema do Brasil é ainda maior, por causa de desigualdade. Tem alguém fazendo planejamento: quem está no topo da pirâmide. É preciso tirar o controle das mãos deles.”

 Não é possível, pois, aceitarmos que seja fragmentado ou minorado o papel do planejamento para as finanças públicas brasileiras e, em especial, para a base da vida coletiva que se desenvolve no nível municipal. Ora, nosso ordenamento pátrio trouxe um devido processo de escolhas fiscais, substantivamente lastreado nas prioridades eleitas em instrumentos normativos como o plano plurianual e o plano de contratações anual.

Quem opõe orçamento ao planejamento comete o mesmo erro de quem opõe discricionariedade à vinculação, na medida em que se esquece que todo ato discricionário é sempre parcialmente vinculado.

Fora do PPA, não há equacionamento legítimo, a médio prazo, da disputa orçamentária entre as mais diversas demandas socioeconômicas. Precisamos superar a tendência de alguns prefeitos, neste primeiro ano de mandato, de deixarem os programas de duração continuada expostos à desconstrução da sua prioridade intertemporal, para supostamente abrirem maior margem fiscal para novas obras de engenharia, renúncias de receitas e outras opções congêneres.

Parafraseando Belchior, a minha alucinação, neste início de mandato eletivo municipal, é demandar que sejam, de fato, cumpridas as normas constitucionais e legais relativas ao dever de adequada formulação e contínua integração entre o plano plurianual local relativo ao quadriênio 2026/2029 e o plano de contratações anual.

Não é demasiado lembrar que nossa realidade local ainda é dramaticamente suscetível a gestores públicos que tentam reinventar a roda a cada novo ciclo de governo e que, por isso, ficam reféns de “soluções” de ocasião vendidas por fornecedores de bens, prestadores de serviços e empreiteiros que clamam por obras novas. Nesse contexto, meu delírio “revolucionário” é apenas pedir que as prefeituras planejem conforme a lei e a Constituição.

Ainda que pareça alucinação ou delírio, não há como mudar as coisas e, efetivamente, assegurar qualidade aos gastos e políticas públicas, sem o basilar e óbvio ponto de partida do fortalecimento do planejamento…

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