Opinião

O recuo como elemento do direito de construir e categoria do Direito Urbanístico

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4 de fevereiro de 2025, 13h20

O recuo é uma categoria jurídica essencial no direito de construir, relacionado diretamente ao uso e ocupação do solo urbano. Trata-se de um elemento técnico que estabelece distâncias mínimas a serem respeitadas por edificação em relação, via de regra, aos limites do terreno onde está sendo construída, às vias públicas e às propriedades vizinhas. O recuo tem como objetivo garantir a salubridade, a segurança, a ventilação, a iluminação e a estética urbana, além de contribuir para a função social da propriedade.

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Construção civil, compra de imóvel na planta

Com isso, o recuo também é um instrumento urbanístico que visa ordenar o espaço urbano, estabelecendo distâncias mínimas a serem respeitadas pelas edificações dentro daquilo que se conforma a cidade. No Brasil, o recuo está previsto na legislação municipal, em conformidade com o plano diretor, instrumento básico da política de desenvolvimento e expansão urbana, conforme estabelecido pelo Estatuto da Cidade (Lei nº 10.257/2001).

Nesse sentido, o recuo está submetido à função social da propriedade, devendo operar como um mecanismo de sua concretização, atuando duplamente, ao impor limites ao direito de construir em prol do bem-estar coletivo, e conformando este direito em sua perspectiva positiva, ou seja, na necessidade de um fazer, observado na configuração da cidade. Repetindo Hely Lopes Meirelles (2012, p. 45), “a propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor”. Essa visão é compartilhada por autores estrangeiros, como o francês Jean-Baptiste Auby (2010, p. 67), que destaca que o recuo é uma das formas de garantir que o direito de propriedade não se sobreponha aos interesses coletivos.

É nesta razão que o recuo está intrinsecamente ligado à função social da propriedade, justificando-se pela necessidade de garantir a qualidade de vida urbana, a preservação do meio ambiente e a harmonia estética das cidades. Esses novos padrões, produzidos pela constitucionalização da propriedade urbana, tem a capacidade de gerar novos elemento de configuração para a legitimação de aplicação dos recuos, da quais, muitas vezes, ultrapassam ditames apenas técnicos, compartilhando-se com a vocação social e coletiva das cidades, expressa na participação necessária para a elaboração de planos diretores.

Historicamente para fins de recuo são levados em consideração a via pública, o próprio terreno onde a construção ocorrerá e as propriedades vizinhas, o que produziu durante muito tempo a distinção entre a avaliação dos recuso no campo dos interesses privados, regulados pelos Direito Civil, e do interesse público, regulado pelo Direito Administrativo (Meirelles, 1994).

Prevalência das categorias e institutos de Direito Urbanístico

Com a inserção do direito de propriedade na Constituição e com a sua necessária conformação face sua função social, ganha-se uma combinação que produzem os principais elementos legitimadores do recuo no direito de construir. Isso permite a ampliação do espaço público que deve ser elemento de conformação da aplicação de uma regra jurídica que prescreve o recuo, alcançando bens coletivos até então desconsiderados ou apenas avaliados a partir do poder de polícia do Estado, como ocorria com a limitação administrativa (Meirelles, 1994, p.74-75).

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Neste sentido, a divisão apresentada por Maria Silvia Zanella Di Pietro (2020, p.172-173), entre limitação administrativa e servidão administrativa, deve ser revisitada para se observar que a categoria recuo está mais próxima do primeiro instituto, ainda que deva ser avaliada de forma distinta, a partir da lógica de cumprimento da função social da propriedade. Isso porque, como já se explicou, o exercício da função social ocorre por obrigações inerentes ao direito de propriedade, constitucionalizado em 1988, o que só se realiza ao cumprir sua função, garantindo um âmbito obrigacional.

A limitação ao direito de construir trazida pela categoria recuo, torna-se assim a forma administrativa que conforma a propriedade urbana em face de obrigações negativas, produzidas pela função social da propriedade, expressas como uma obrigação de não fazer, ou de obrigações positivas, de fazer, ambas impostas em razão e em benefício do interesse público genérico.

As servidões administrativas, por sua vez, se distinguem da categoria recuo, porque “[…] implicam a constituição de direito real de uso e gozo, em favor do poder público ou da coletividade, paralelo ao direito do proprietário, que perde, por essa forma, a exclusividade de poderes que exercia sobre o imóvel de sua propriedade” (Di Pietro, 2020, 172). Neste caso, como ensinava Meirelles (1994, p.73), as servidões administrativas podem gerar indenização.

Desta forma, determinadas distinções, tão frequentes no âmbito do Direito Administrativo, não se encaixam tão bem diante de categorias que ultrapassaram essa esfera do Direito Público e alcançaram o Direito Urbanístico, sobretudo diante da perspectiva da constitucionalização da propriedade urbana e de sua conformação pelos planos diretores e pelas legislações urbanísticas municipais, como é o caso do recuo.

Isso constata-se em uma divisão que Meirelles (1994) fazia entre a limitação administrativa e as restrições civis de vizinhança. Ainda que permaneçam estas válidas, deve o Direito Urbanístico prevalecer. Nesse sentido já entendeu o Tribunal de Justiça de São Paulo, afirmando que a possível contradição entre regras civilistas e urbanísticas não ocorre, sendo tais parâmetros legitimados diante da inteligência dos artigos 24, inciso I, e 30, incisos I e II, da Constituição Federal. (São Paulo, TJ-SP, 2023).

Essa avaliação que envolve a reformulação de categorias do Direito Administrativo, Civil e Urbanístico, na compreensão de prevalência de institutos como o direito de vizinhança, a limitação administrativa, a servidão administrativa e o recuo urbanístico, fazendo prevalecer no âmbito do direito de construir as categorias e institutos de Direito Urbanístico, ainda que possam continuar existindo os demais, pode ser identificada em julgamento do Superior Tribunal de Justiça, sobretudo ao confirmar a inexistência de indenização frente aos recuos e demais categorias presentes nas legislações urbanísticas (Brasil, STJ, 2024).

Outro elemento que corrobora essa nova razão dada pela constitucionalização da propriedade urbana é aquela necessária para o cumprimento da função social da propriedade, que se desenvolve como obrigação negativa, e não mais como limite sustentado sobre o poder de polícia. Essa visão faz do recuo um instrumento essencial para garantir a harmonia entre o direito de propriedade e os interesses coletivos.

De certa forma, já na edição de 1994, a obra Direito de Construir, de Hely Lopes Meirelles, ainda que mantivesse a distinção entre direito de vizinhança e limitações administrativas, uma sustentada no espectro civilista, a outra pela ordem pública, aborda o livro, primeiramente, que a vertente de direito civil seria garantidora de um direito subjetivo em detrimento de uma abordagem genérica e coletiva da segunda. No entanto, logo em seguida, a própria obra explica que, tal distinção desaparecia, em razão da função social da propriedade, sendo reconhecida a existência de direitos subjetivos individuais provenientes de normas genéricas e coletivas também (Meirelles, 1994, p.74-75).

Assim, o recuo é instrumento essencial para impor restrições ao direito de construir em benefício da coletividade (Silva, 2019, p. 45), o que faz com que a relação entre o recuo e a qualidade de vida urbana, seja direta, destacando a aplicação dos recuos como mecanismo importante para garantir a salubridade e a segurança das edificações (Oliveira, 2020, p. 78). Isto não está voltado apenas para a relação de uma coletividade difusa, podendo ser destaque em relações individualizáveis, como a que acontece entre vizinhos ou condôminos.

No Brasil, como já visto, a competência para legislar sobre os recuso segue a mesma do uso e ocupação do solo, que segundo o artigo 30, VIII, da Constituição, é dos municípios. Dessa forma, cada município deve estabelecer, em sua legislação urbanística, os parâmetros para os recuos necessários, que poderão ser distintos em cada zona da cidade.

Esses parâmetros variam de acordo com o zoneamento urbano, que define as diferentes áreas da cidade, em relação à qualidade do uso e ocupação do solo (residencial, comercial, industrial, mista, etc.) e as condições específicas existentes para cada uma delas. Por isso, a legislação que trata dos recuos no campo do direito urbanístico deve observar as diretrizes estabelecidas pelo plano diretor, que é o instrumento básico da política de desenvolvimento urbano.

Os recuos como outros parâmetros urbanísticos, também devem trazer, além de elementos técnicos, as escolhas e desejos da população, o que ocorre por meio da participação da população na elaboração das leis urbanísticas municipais. Isso, porque a conformação da função social da propriedade inclui a categoria dos recuos, que são necessários para garantir a qualidade de vida urbana. Essa abordagem é semelhante à adotada em outros países, como os Estados Unidos, onde os zoning codes estabelecem os setbacks (recuos) em função do tipo de zoneamento e das características da via pública (Fischel, 2015, p. 123).

O conceito de setback é amplamente utilizado para estabelecer distâncias mínimas entre as edificações e os limites do terreno. Trata-se de um conceito regulamentado pelos códigos de zoneamento municipais, e tem como objetivo garantir a privacidade, a ventilação e a iluminação das edificações (Fischel, 2015, p. 123).

Na França, por sua vez, o retrait é o equivalente ao recuo, e é regulamentado pelo Plan Local d’Urbanisme, que é o instrumento de planejamento urbano municipal. O retrait é estabelecido em função da altura da edificação e da largura da via pública, e tem como objetivo garantir a harmonia estética e a segurança das construções (Auby, 2010, p. 67).

Por tanto, o recuo é uma categoria de Direito Urbanístico, que deve ser regulada em legislação local municipal, aprovada em conjunto com planos diretores, leis de zoneamento, códigos urbanísticos, Códigos de obras e demais legislações que se dispuserem a implementar a função social da propriedade e da cidade.

 


Referências bibliográficas

AUBY, Jean-Baptiste. Droit de l’Urbanisme. Paris: Dalloz, 2010.

BRASIL, STJ, AREsp n. 2.480.691, Ministro Afrânio Vilela, DJEN de DJe 08.11.2024.

DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 33. ed. São Paulo: Forense, 2020.

FISCHEL, William A. Zoning Rules! The Economics of Land Use Regulation. Cambridge: Lincoln Institute of Land Policy, 2015.

MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Municipal Brasileiro. 18. ed. São Paulo: Malheiros, 2012.

OLIVEIRA, José Carlos de. Recuo e Qualidade de Vida Urbana. Revista Urbanismo e Sustentabilidade, v. 12, n. 3, p. 78-90, 2020.

SÃO PAULO, TJSP, Ap. Cível 0109532-51.2010.8.26.0100; Rel. Des. Sá Duarte, j. 15.5.2023, DJe 16.05.2023.

SILVA, João Pedro da. A Função Social da Propriedade e o Recuo no Direito de Construir. Revista Direito Urbanístico, v. 8, n. 2, p. 45-60, 2019.

Autores

  • éadvogado, mestre em direito pela UFSC, professor da Faculdade de Direito Uniavan e da Escola Superior de Advocacia (ESA-SC), membro da Comissão de Direito Urbanístico da OAB-SC, procurador e secretário de Governo e Planejamento Estratégico de Itapema-SC (2006-2011), prefeito de Porto Belo-SC (2013-2016), assessor jurídico-parlamentar na Assembleia Legislativa de SC (2017-2018).

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