Papel da intranscendência subjetiva das sanções nas transições políticas municipais
4 de fevereiro de 2025, 9h24
O Princípio da Intranscendência Subjetiva das Sanções, consagrado no artigo 5º, inciso XLV, da Constituição de 1988, estabelece, de forma inequívoca, que nenhuma penalidade poderá ultrapassar a esfera subjetiva do infrator, limitando os efeitos das sanções àqueles diretamente responsáveis pela prática do ato ilícito.
Ressalta-se que tal princípio, originariamente consagrado no âmbito penal pela Constituição brasileira, não foi explicitamente normatizado no contexto administrativo, notadamente no que diz respeito às relações entre entes federativos. Contudo, com o advento da Constituição de 1988 e o processo de constitucionalização do direito, o estudo do Direito Administrativo ganhou maior abrangência e profundidade.
Nesse cenário, tornou-se essencial analisar a aplicabilidade desse princípio às relações administrativas, considerando a necessidade de garantir maior segurança jurídica e eficiência nas interações entre os entes federativos [1]. É nesse sentido que Mello (2006) delimita que “reconhece-se a natureza administrativa de uma sanção pela natureza da sanção que lhe corresponde, e se reconhece a natureza da sanção pela autoridade competente para impô-la. Não há, pois, cogitar de qualquer distinção substancial entre infrações e sanções administrativas e infrações e sanções penais. O que as aparta é única e exclusivamente a autoridade competente para impor a sanção” [2].
Assim sendo, quando de sua aplicação à administração pública, o referido preceito adquire particular relevância em contextos que envolvam bloqueio ou limitação de repasse de verbas públicas a gestores atuais em razão de dívidas tributárias ou outras irregularidades fiscais deixadas por administrações pretéritas.
Tal prática, frequentemente justificada sob o pretexto de assegurar a responsabilidade fiscal e a observância dos princípios da moralidade e da eficiência, pode gerar graves distorções ao penalizar injustamente gestores que não tiveram qualquer vínculo com a origem das irregularidades, além de comprometer o pleno funcionamento de serviços públicos essenciais.
Essa situação revela uma tensão latente entre a preservação dos direitos fundamentais da coletividade, a autonomia administrativa e financeira dos entes federativos e a necessidade de efetivar a responsabilidade estatal.
Nesse contexto, portanto, torna-se imperativo aprofundar o debate jurídico e acadêmico sobre a compatibilidade entre a aplicação desse princípio e as práticas de limitação de repasses, buscando soluções que conciliem a eficiência administrativa com a intransigente observância dos direitos e garantias fundamentais, pilares indispensáveis ao Estado democrático de Direito.
Esse aprofundamento, importa dizer, assume especial relevância diante do cenário atual, marcado pela transição entre gestões políticas após as eleições municipais de 2024. Tal contexto evidencia a necessidade de um olhar atento para os repasses de recursos da União e dos Estados-membros aos municípios, considerando que possíveis bloqueios nas receitas municipais podem decorrer da má gestão financeira de administrações anteriores.
Tal realidade demanda reflexões criteriosas para evitar que as penalidades impostas às administrações municipais acabem por comprometer a continuidade dos serviços públicos e a governabilidade local, em prejuízo da coletividade e da autonomia administrativa dos entes federativos.
Hereditariedade de problemas administrativos: reflexões no período pós-eleições 2024
A transição administrativa decorrente das eleições municipais de 2024 tem imposto desafios significativos aos novos gestores, especialmente no que tange à continuidade de políticas públicas diante da escassez de recursos financeiros. Em diversos municípios brasileiros, prefeitos recém-empossados depararam-se com cofres vazios e dívidas volumosas herdadas de gestões anteriores, comprometendo a prestação de serviços essenciais à população.
O cenário atual, importa dizer, reflete a intensificação da polarização política que marcou as últimas eleições presidenciais, um fenômeno que se acentuou durante a conturbada transição entre a gestão anterior e a atual. Esse clima de divisão, alimentado por discursos radicalizados e um embate ideológico profundo, teve impactos diretos na forma como o governo atual se estabelece e enfrenta desafios políticos e financeiros, dificultando o diálogo, a construção de consensos necessários para a governabilidade e, acima de tudo, a continuidade de políticas públicas.
Em um cenário polarizado, as novas gestões municipais enfrentam dificuldades imensas, não apenas pelo legado político da polarização, mas também pela precariedade financeira deixada por prefeitos que, ao perderem a reeleição, intencionalmente dificultam o trabalho de seus sucessores.
A falta de transparência, o desmantelamento de programas e à não execução de projetos essenciais deixam as novas administrações em uma posição extremamente vulnerável. Essa situação resulta em uma crise de governança local, onde os gestores emergentes, ao invés de focar em ações para o bem-estar da população, precisam primeiramente contornar os obstáculos financeiros e administrativos criados pela gestão anterior.
Em nível municipal, esse contexto se traduz em uma gestão cada vez mais fragmentada, onde, ao invés de uma colaboração construtiva para resolver os problemas locais, o foco é a destruição do outro lado político. Isso gera um ciclo vicioso que afasta as possibilidades de um governo democrático e eficiente, capaz de garantir a continuidade das políticas públicas essenciais para a população.
No estado de Minas Gerais, a exemplo, relatos indicam que a ausência de recursos, ocasionada, principalmente, pela redução no Fundo de Participação dos Municípios (FPM), tem afetado desde o pagamento de funcionários públicos até a manutenção de serviços básicos, como coleta de lixo e saúde [3]. Situação semelhante é observada no Maranhão, onde prefeitos enfrentam dívidas acumuladas e falta de planejamento financeiro, resultando na interrupção de serviços públicos essenciais [4].
Tais cenários, recorrentes em períodos de transição governamental, reforçam a necessidade de um debate aprofundado acerca da responsabilidade fiscal e da criação de mecanismos que promovam maior transparência e eficiência nesse processo. Esses instrumentos devem garantir não apenas a continuidade das políticas públicas e a proteção dos direitos fundamentais dos cidadãos, mas também a responsabilização efetiva daquelas cujas condutas resultaram no comprometimento das receitas municipais.
Sob essa perspectiva, o Princípio da Intranscendência Subjetiva das Sanções, no âmbito do Direito Administrativo, tem como objetivo fundamental assegurar que penalidades e restrições sejam limitadas exclusivamente à pessoa do infrator, de forma a não prejudicar terceiros que não tenham contribuído para a prática do ilícito.
Necessidade de neutralizar riscos potenciais que comprometam a execução de políticas públicas ou a continuidade de serviços essenciais à coletividade
Diante desse contexto, foram submetidas ao crivo do Supremo Tribunal Federal situações em que inadimplências ou irregularidades eram resultado de atos praticados pela própria administração pública direta em gestões anteriores. Assim, as restrições decorrentes dessas condutas atingiram o próprio município, que passou a sofrer os efeitos de penalidades como a inscrição em cadastros federais de inadimplência.
Para os casos em questão, a controvérsia residia na possibilidade de aplicação do princípio da intranscendência das sanções, visando assegurar que as penalidades e restrições não ultrapassem a esfera pessoal do agente infrator. Tal aplicação, a dizer, busca evitar a violação ao princípio da impessoalidade, ao mesmo tempo em que previne a subjetivação e personificação do ente municipal. Isso se torna particularmente relevante em situações nas quais as irregularidades decorrem de atos praticados por gestões anteriores do Executivo, sem qualquer relação direta com a administração pública atual.
Nesse viés, da análise de diversas ações civis originárias submetidas à apreciação do STF revelou-se que, em situações excepcionais, prevalece a aplicação do princípio da intranscendência subjetiva das sanções. Tal postura se justifica pela necessidade de neutralizar riscos potenciais que comprometam a execução de políticas públicas ou a continuidade de serviços essenciais à coletividade. Notadamente, esse entendimento tem sido aplicado mesmo nos casos em que as irregularidades foram perpetradas por administrações anteriores [5].
Neste sentido, o princípio da intranscendência tem sido aplicado com o objetivo de evitar que a atual administração pública seja penalizada por restrições capazes de inviabilizar sua atuação, especialmente quando o administrador eleito democraticamente não é responsável direto pelas irregularidades praticadas. Assim, as causas que ensejam a inscrição nos cadastros federais de inadimplentes são imputáveis às administrações anteriores, resguardando-se a continuidade das políticas públicas.
Indo ao encontro deste entendimento, inclusive, foi sumulada pelo Superior Tribunal de Justiça a seguinte decisão, a qual versa sobre o princípio da intranscendência subjetiva das sanções. Vejamos:
Súmula 615 – STJ: Não pode ocorrer ou permanecer a inscrição do município em cadastros restritivos fundada em irregularidades na gestão anterior quando, na gestão sucessora, são tomadas as providências cabíveis à reparação dos danos eventualmente cometidos.
Em mesmo sentido, a Súmula 46-AGU acrescenta que:
“Será liberada da restrição decorrente da inscrição do município no Siafi ou Cadin a prefeitura administrada pelo prefeito que sucedeu o administrador faltoso, quando tomadas todas as providências objetivando o ressarcimento ao erário.”
Sob essa perspectiva, o princípio da intranscendência é interpretado como uma vedação à imposição de sanções às administrações atuais por atos praticados por gestões anteriores, evitando-se, assim, a violação a esse postulado fundamental. Ademais, o Supremo Tribunal Federal tem demonstrado preocupação com os graves impactos das restrições sobre o interesse coletivo, especialmente nos casos em que essas resultam no bloqueio de transferências de recursos federais. Em tais situações, a corte tem ordenado a liberação e o repasse dessas verbas, visando prevenir prejuízos irreparáveis à população.
Importa ainda destacar que, embora haja argumentos e situações que defendam uma interpretação mais limitada do princípio da intranscendência das sanções, sua aplicação enfrenta questionamentos, especialmente nos casos em que a inadimplência deriva de atos praticados pela administração pública direta em gestões anteriores. Esse cenário desafia a compatibilidade entre o princípio e as consequências financeiras impostas ao ente público, evidenciando a tensão entre a responsabilidade fiscal e a preservação da autonomia administrativa, particularmente quando o município passa a sofrer os efeitos de condutas realizadas por administrações passadas.
Nesse sentido, merece destaque ressaltar comentário extraído do julgamento da ACO 1.946/SC, onde o pleno já estabeleceu que o princípio em questão “impede a imposição de severas penalidades a administrações públicas atuais em decorrência de atos praticados por gestões anteriores”. Essa interpretação visa garantir a proteção da administração atual contra sanções que poderiam comprometer a continuidade administrativa e prejudicar o interesse coletivo [6].
Em resumo, a implementação do princípio da intranscendência subjetiva das penalidades visa resguardar as administrações subsequentes de penalidades decorrentes de ações realizadas por administrações passadas. Isso assegura a persistência das políticas públicas e a independência financeira dos municípios, evitando que falhas passadas afetem a prestação de serviços indispensáveis à população.
A visão dos tribunais superiores, como o STF, enfatiza a importância de balancear a responsabilidade fiscal com a eficácia administrativa, possibilitando a aplicação de penalidades de forma equitativa, sem prejudicar a governabilidade e o bem comum. Assim, esse princípio funciona como um mecanismo de proteção à gestão pública eficaz, garantindo que a administração não seja interrompida por penalidades oriundas de erros que não são responsabilidade dos gestores democraticamente eleitos.
Em conclusão, é imperativo que o debate sobre a aplicabilidade desse princípio seja aprofundado, especialmente considerando os desafios da governança local no período pós-eleitoral, para garantir que as penalidades administrativas não se transformem em obstáculos à boa gestão pública, mas sim em medidas que assegurem a responsabilidade fiscal sem comprometer a capacidade do ente federativo de cumprir seu papel perante a sociedade. A manutenção da autonomia administrativa e da continuidade dos serviços públicos é, sem dúvida, um valor a ser preservado no Estado democrático de Direito.
[1] PAULA, Marciely Ferreira de. Aplicação do princípio da intranscendência subjetiva das sanções pelo Supremo Tribunal Federal às restrições impostas pela União aos entes federados. São Paulo: Dialética, 2022.
[2] Celso António Bandeira de Mello, Curso de Direito Administrativo, 21a ed., pp. 805/820, São Paulo, Malheiros, 2006
[3] https://www.correiobraziliense.com.br/politica/2025/01/7039895-novos-prefeitos-reclamam-de-dividas-e-cofres-vazios-em-minas-gerais.html?utm_source=chatgpt.com
[4] https://oimparcial.com.br/noticias/2025/01/prefeituras-do-maranhao-enfrentam-dificuldades-financeiras/?utm_source=chatgpt.com
[5] Disponível em: https://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/visualizarEmenta.asp?s1=000286929&base=baseAcordaos
[6] Disponível em: http://stf.jus.br/portal/jurisprudencia/visualizarEmenta.asp?s1=000237138&base=baseAcordaos.
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