HC para reconhecimento de atipicidade da conduta após celebração do ANPP
4 de fevereiro de 2025, 17h26
O acordo de não persecução penal (ANPP) surgiu como uma das inovações legislativas inseridas no Código de Processo Penal pro meio da Lei nº 13.964/2019 (“pacote anticrime”), sendo definido, em apertada síntese, como uma espécie de negócio jurídico pré-processual, celebrado entre o Ministério Público e o investigado, assistido de seu defensor.
Nele, as partes negociam as cláusulas a serem cumpridas pelo acusado, que, ao final, é beneficiado pela extinção da punibilidade. O acordo possui previsão legal no artigo 28-A do Código de Processo Penal, que dispõe: “Não sendo caso de arquivamento e tendo o investigado confessado formal e circunstancialmente a prática de infração penal sem violência ou grave ameaça e com pena mínima inferior a 4 (quatro) anos, o Ministério Público poderá propor acordo de não persecução penal, desde que necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime, mediante as seguintes condições ajustadas cumulativa e alternativamente”.
A relevância e a dimensão desse instrumento – ainda recente no ordenamento jurídico brasileiro — pode ser estimada pelas palavras do ministro do Superior Tribunal de Justiça Rogerio Schietti Cruz, no julgamento do Habeas Corpus nº 657.165 [1], que definiu o instituto como “uma maneira consensual de alcançar resposta penal célere ao comportamento criminoso, por meio da mitigação da obrigatoriedade da ação penal, com inexorável redução das demandas judiciais criminais”.
Segundo o ministro, o acordo de não persecução penal não se propõe especificamente a beneficiar o réu, mas sim a Justiça Criminal de forma integral, visto que tanto ele quanto o Estado renunciam a direitos ou pretensões em troca de alguma vantagem, e por consequência, o Estado não obtém a condenação penal em troca de antecipação e certeza da resposta punitiva. Já o réu deixa de provar sua inocência, “em troca de evitar o processo, suas cerimônias degradantes e a eventual sujeição a uma pena privativa de liberdade”.
O instituto possui algumas diferenças substanciais com relação a outras formas de justiça penal negocial aplicadas no Brasil, como a transação penal e a suspensão condicional do processo. Enquanto na transação penal o acordo é de cumprimento de penas (não privativas de liberdade) e no sursis processual já há um processo instaurado e em andamento, no acordo de não persecução penal é pactuado o cumprimento de condições (funcionalmente equivalentes a penas).
Antes do “pacote anticrime”, o ANPP era previsto na Resolução nº 181/2017 do Conselho Superior do Ministério Público [2]. No entanto, foi com a inclusão no sistema processual penal que o instrumento consensual se consolidou como alternativa à propositura da ação penal.
Nos últimos quatro anos, a celebração de acordos entre o Ministério Público e os acusados têm crescido cada vez mais, em âmbito estadual e federal. No Supremo Tribunal Federal, por exemplo, somente com relação aos acusados pelos atos de 8 de janeiro de 2023, foram firmados 476 acordos de não persecução penal com a Procuradoria-Geral da República (PGR) [3].
Já no âmbito dos estados, alguns índices foram divulgados, cabendo menção ao Ministério Público do Paraná, que por meio do Núcleo de Assessoramento da Subprocuradoria Geral de Justiça para Assuntos de Planejamento Institucional do Paraná, constatou nos últimos quatro anos a formalização de pelo menos 22.888 acordos [4], e o Ministério Público do Estado de São Paulo, que ainda em 2021, já tinha superado a marca de mais de 20 mil acordos formalizados [5].
Também cabe menção ao Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, que inaugurou no final de 2024, por meio da Resolução GPGJ nº 2.634 [6], a Central de Negociação Criminal, para atuar na implementação das práticas de justiça restaurativa, e para promover os acordos de não persecução penal, reforçando a eficiência e celeridade das investigações criminais, o que também deve elevar o número de acordos firmados.
HC arguindo atipicidade da conduta
Na tentativa de monitorar e ampliar a utilização do acordo, o Conselho Nacional do Ministério Público publicou a Resolução nº 289/2024 [7], determinando a sistematização desses dados, para que as instituições identifiquem como os ANPPs estão sendo propostos e adote estratégias de atuação diante das informações disponibilizadas.
Com o aumento da utilização do instituto, que necessita de homologação judicial, a jurisprudência dos tribunais tem se debruçado sobre algumas questões controversas que permeiam os acordos de não persecução penal, dentre elas, a impetração de habeas corpus arguindo atipicidade da conduta após a celebração do acordo.
Antes de adentramos a análise jurisprudencial do tema, é importante apresentar brevemente o conceito da tipicidade, um dos pilares do Direito Penal. Segundo o professor Cezar Roberto Bitencourt, a tipicidade “é uma decorrência natural do princípio da reserva legal: nullum crimen nulla poena signe praevia lege. A tipicidade é a conformidade do fato praticado pelo agente com a moldura abstratamente descrita na lei penal” [8].
Sendo assim, a tipicidade é a correspondência entre o fato praticado pelo agente e a descrição de cada espécie de infração contida na lei penal incriminadora. Um fato para ser adjetivado como típico deve adequar-se a um modelo descrito na lei penal, isto é, a conduta praticada pelo agente deve subsumir-se na moldura descrita na lei.
Dessa forma, podemos ter o seguinte cenário: o Ministério Público verifica o preenchimento dos requisitos e oferece o acordo, a defesa, com receio de ver o réu acusado, aceita a proposta, porém em seguida nota uma flagrante atipicidade da conduta. Sendo assim, para ver reconhecida a atipicidade da conduta e consequentemente a absolvição, a defesa impetra habeas corpus.
Apesar da ausência de entendimento pacífico sobre o tema, o Superior Tribunal de Justiça tem admitido, em alguns casos, a impetração de habeas corpus, alegando que “em que pese a discricionariedade das partes na pactuação das condições, o Ministério Público deve zelar pela correta aplicação da lei e evitar acordos abusivos, desproporcionais ou não razoáveis”.
Nesse sentido destacou o ministro Rogerio Schietti, da 6ª Turma do STJ, ao dar provimento ao Recurso em Habeas Corpus nº 174.870/SP [9], determinando a absolvição de um homem investigado em São Paulo pelo crime de sonegação fiscal.
No caso, a defesa celebrou o acordo de não persecução penal com o Ministério Público e posteriormente impetrou habeas corpus objetivando a absolvição do paciente em decorrência da atipicidade da conduta. Em razão da homologação do acordo, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo considerou o writ prejudicado, o que motivou a interposição de recurso perante o STJ.
O ministro relator também pontuou que “o acordo de não persecução não deve ser, em nenhuma hipótese, mais prejudicial ao réu, sob pena de desvirtuamento do instituto”.
Essa não foi a primeira vez que o Superior Tribunal de Justiça admitiu a impetração de habeas corpus após a celebração do acordo de não persecução penal. Na decisão monocrática proferida pelo ministro Ribeiro Dantas, da 5ª Turma, no Habeas Corpus nº 698.186/GO [10], foi destacado que “o acordo de não persecução penal, por si só, não é óbice ao reconhecimento da atipicidade material da conduta.”
O relator também pontuou trecho do voto do ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, no Habeas Corpus nº 176.785, julgado pela 2ª Turma em 17/12/2019, onde é mencionado que “embora o sistema penal negocial possa acarretar aprimoramentos positivos em certas hipóteses, a barganha no processo penal inevitavelmente gera riscos relevantes aos direitos fundamentais do imputado e deve ser estruturada de modo limitado, para evitar a imposição de penas pelo Estado de forma legítima”. Nesse caso, o ministro da Suprema Corte também entendeu que o acordo de transação penal, instituto similar ao ANPP, não acarretaria a perda de objeto de habeas corpus em que se alegava atipicidade da conduta e ausência de justa causa.
Dessa forma, caberá a defesa se atentar à conduta imputada ao acusado, bem como aos termos dispostos nos acordos celebrados, e notar que diante de uma flagrante ilegalidade como a atipicidade da conduta, poderá ser impetrado habeas corpus, que consiste em garantir não apenas a liberdade, como também os direitos do acusado.
[1]STJ, Sexta Turma, HC nº 657.165/RJ, relator: min. Rogerio Schietti Cruz, j. em 09/08/2022
[2]https://www.cnmp.mp.br/portal/images/Resolucoes/Resoluo-181-1.pdf . Acesso em 31/01/2025.
[3]https://noticias.stf.jus.br/postsnoticias/741-golpistas-acusados-pela-pgr-de-crimes-pelo-8-1-ja-foram-responsabilizados-penalmente/ . Acesso em 15/01/2025
[4]https://g1.globo.com/pr/parana/noticia/2024/01/29/em-um-ano-68-mil-acordos-de-nao-persecucao-penal-foram-firmados-no-parana-modalidade-livrou-traiano-de-processo-apos-confissao-de-propina.ghtml . Acesso em 12/12/2024
[5]https://mpsp.mp.br/w/marca-de-20-mil-acordos-de-n%C3%A3o-persecu%C3%A7%C3%A3o-penal-%C3%A9-o-assunto-central-do-mpsp- . Acesso em 07/11/2024
[6]https://www.mprj.mp.br/documents/20184/4644681/consolidado_2634.pdf Acesso em 11/01/2025
[7]https://www.cnmp.mp.br/portal/images/noticias/2024/Abril/Resolu%C3%A7%C3%A3o_289_2024.pdf Acesso em 12/01/2025
[8]BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte geral 1. 23ª Edição. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 356
[9]STJ, Sexta Turma, AgRg no RHC nº 174.870/SP, relator: min. Rogério Schietti Cruz, j. em 11/03/2024
[10]STJ, Quinta Turma, HC nº 698.186/GO, relator: min. Ribeiro Dantas, j. em 25/11/2021
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