Opinião

Efeito backlash e ativismo congressual

Autor

  • é defensor público do estado do Rio de Janeiro (DPE-RJ) assessor de ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) membro do Grupo de Trabalho sobre Reconhecimento de Pessoas do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) professor da Escola Superior de Advocacia Nacional e ex-procurador do estado do Paraná (PGE-PR).

    Ver todos os posts

4 de fevereiro de 2025, 18h23

A noção de backlash foi elaborada [1] pela doutrina norte-americana para refletir a crescente tensão entre política e direito e os anseios de legitimidade democrática da Suprema Corte. [2] O termo é entendido como uma das muitas formas de contestação de normas a que o público recorre na busca por influenciar o direito constitucional.

Cass Sunstein conceitua backlash como intensa e duradoura desaprovação social [3] de decisão de tribunal, acompanhada de medidas de resistência e remoção da força jurídica do pronunciamento. [4]

Michael Klarman aponta três razões principais para o backlash diante de decisões judiciais em casos que polarizam a sociedade: o pronunciamento aumenta a importância da questão, incita a resposta a interferência tida como externa e altera o caminho que a matéria trilharia se não houvesse a decisão. [5]

A título de exemplos sublinha que, no curto prazo, Brown versus Board of Education (1954) não só retardou o progresso no campo racial como radicalizou a política acerca do tema nos estados do Sul; Miranda versus Arizona (1966), motivado pelo aumento da criminalidade, facilitou a eleição de Richard Nixon sob plataforma de lei e ordem; Furman versus Geórgia (1972), no bojo do qual sobreveio ameaça de extinção da pena de morte, provocou dramático ressurgimento de apoio à pena capital, refletida na publicação, nos quatro anos seguintes, em 35 estados, de nova legislação sobre a matéria; Roe versus Wade desencadeou movimento de direito à vida, antiabortista, politicamente potente, [6] a ponto de a Suprema Corte, em junho de 2022, ter modificado sua compreensão a respeito da questão. [7]

Robert Post e Reva Siegel observam que Michael Klarman, destacando os efeitos imprevisíveis da reação aos pronunciamentos, sugere que decisões precipitam dispendiosas controvérsias constitucionais sem benefício proporcional. Reafirmam, porém, a importância dos pronunciamentos da Corte, já que não seria correto supor que a adjudicação poderia ser realizada de forma mais harmoniosa na via legislativa, [8] afora o fato de que a atuação dos demais Poderes também se sujeita a backlash.

Liberalismo e conservadorismo

A ascensão conservadora diante de decisão liberal [9] ou mesmo a expansão liberal ante pronunciamento de natureza conservadora não representam paradoxo. É esperado que, em questões aptas a dividir a sociedade, o grupo insatisfeito com o entendimento da Corte explicite seus argumentos e pontos de vista de forma mais clara, exatamente como reação. Há mudança na agenda desse grupo político, levado a tratar de questão que, não houvesse a decisão judicial, não seria pauta prioritária. [10]

A decisão também gera, de outro lado, avanços na matéria de que cuida, além de incrementar o engajamento dos cidadãos em torno do sentido da Constituição, [11] o que fortalece a consciência constitucional.

Spacca

Ademais, a legitimidade das cortes constitucionais está mesmo, em parte, na capacidade de resposta à opinião popular. [12] Não é possível desprezar o papel construtivo do fenômeno, revelador da democratização no processo de formação do sentido da Constituição, a fortalecer a legitimidade da intepretação.

O efeito backlash talvez se manifeste através de “atuação institucional contra a própria Corte ou os seus membros” e por meio de “atuação normativa sobre o conteúdo do pronunciamento”.

Nesse último caso, é possível, ainda, que a reação legislativa resultante dos desdobramentos sociais ocasione a superação da jurisprudência.

Manifestações sociais

Não há, porém, vínculo necessário entre as reações sociais e a atuação do Parlamento. Noutros termos, as manifestações sociais podem não repercutir a ponto de a compreensão de dado setor da sociedade sobre a Constituição ser convertida em norma legal ou constitucional.

Como é intuitivo, também é possível ao Legislativo responder a decisão da Corte com a adoção da interpretação dada. Além disso, mesmo nos casos de reversão, pode atuar independentemente de haver repercussão social, sobretudo quando consideradas matérias de pouca relevância para os cidadãos em geral [13] e de menor desacordo e polarização.

Portanto, o efeito backlash constitui antecedente não necessário — ou eventual — da reação legislativa.

Intimamente relacionado às reações legislativas está o ativismo congressual, marcado por participação mais intensa do Parlamento, que vem a provocar novos debates sobre certo tema, olhos postos na reversão legislativa da jurisprudência.

Tal como a faceta judicial, o ativismo congressual indica tensão com a separação de poderes, na medida em que envolve pronunciamento formalizado no exercício de função típica de outro órgão. Não representa, todavia, transgressão à tripartição funcional. Ao contrário, constitui mecanismo capaz de contrabalançar a atuação proativa da Corte Constitucional na interpretação da Carta Política, favorecendo o equilíbrio institucional. Afinal, diálogo pressupõe relacionamento entre iguais. [14]

 


[1]     A gênese do desenvolvimento da noção de backlash está, segundo Thomas Kleinlein e Bilyana Petkova, na obra “The Hollow Hope: Can Courts Bring About Social Change?”, de Gerald Rosemberg (KLEINLEIN, Thomas; PETKOVA, Bilyana – Federalismo, direitos e retrocesso na Europa e nos Estados Unidos. Jornal Internacional de Direito Constitucional [Em linha]. Ano 15, n.º 4 (31 mar. 2017). p. 1066-1079, p. 1075. Disponível em https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=2951744. [Consult. 07 jun. 2022]).

[2]     POST, Robert; SIEGEL, Reva – Roe Rage. Democratic Constitutionalism and Backlash. Harvard Civil Rights-Civil Liberties Law Review [Em linha]. Vol. 42, n.º 131 (2007), p. 373-434, p. 382-383. Disponível em: https://law.yale.edu/sites/default/files/documents/pdf/Faculty/SiegelRoeRageDemocratic ConstitutionalismAndBacklash.pdf. [Consult. 12 jun. 2022].

[3]     Há quem afirme a insuficiência do conceito, porquanto, modernamente, já seria possível falar em backlash internacional, a envolver cortes domésticas e internacionais em diálogo interjurisdicional. Além disso, é possível que ocorra como reação contrária a pronunciamentos de entidades quase judiciais, não judiciais, inclusive do Legislativo e do Executivo, e de órgãos jurisdicionais mesmo não hierarquicamente elevados (FONTELES, Samuel Sales – Direito e backlash. Salvador: JusPodivm, 2019, p. 30-33).

[4]     SUNSTEIN, Cass R. – Backlash’s Travels. Harvard Civil Rights-Civil Liberties Law Review [Em linha]. Vol. 42 (2007), p. 435-449, p. 435. Disponível em https://chicagounbound.uchicago.edu/cgi/ viewcontent.cgi?referer=&httpsredir=1&article=12212&context=journal_articles. [Consult. 22 jun. 2022].

[5]     KLARMAN, Michael G. – Brown and Lawrence (and Goodridge). Michigan Law Review [Em linha]. Vol. 104, n.º 3 (2005), p. 431-490, p. 473. Disponível em: https://repository.law.umich.edu/mlr/vol104/iss3/2. [Consult. 20 jun. 2022].

[6]     Idem – Courts, Social Change, and Political Backlash. Washington, DC: Georgetown University Law Center, 31 Mar. 2011, p. 1.

[7]     Em 24 de junho de 2022, a Suprema Corte Americana, ao apreciar o caso Dobbs versus Jackson Women’s Health Organization, modificou sua compreensão, afirmando que a Constituição não prevê direito ao aborto nem proíbe cada Estado de proscrevê-lo ou discipliná-lo (UNITED STATES OF AMERICA. Supreme Court – Certiorari to the United States Court of appeals for the fifth circuit n.º 19–1392 [Em linha]. Julgamento: 01 dez. 2021. Publicação: 24 jun. 2022. Disponível em: https://www.supremecourt.gov/ opinions/21pdf/19-1392_6j37.pdf. [Consult. 05 jul. 2022]).

[8]     POST, Robert; SIEGEL, Reva – Roe Rage. Democratic Constitutionalism and Backlash. Harvard Civil Rights-Civil Liberties Law Review [Em linha]. Vol. 42, n.º 131 (2007), p. 373-434, p. 393-395. Disponível em: https://law.yale.edu/sites/default/files/documents/pdf/Faculty/Siegel_RoeRageDemocratic ConstitutionalismAndBacklash.pdf. [Consult. 12 jun. 2022].

[9]     Segundo Michael Klarman, nos últimos cinquenta anos, os casos foram de decisões progressistas que produziram reações conservadoras, embora essa faceta não represente nota intrínseca ao fenômeno (KLARMAN, Michael G., opere citato, p. 10).

[10]   KLARMAN, Michael G. – Brown and Lawrence (and Goodridge). Michigan Law Review [Em linha]. Vol. 104, n.º 3 (2005), p. 431-490, p. 6. Disponível em: https://repository.law.umich.edu/mlr/vol104/iss3/2. [Consult. 20 jun. 2022].

[11]   POST, Robert; SIEGEL, Reva – Roe Rage. Democratic Constitutionalism and Backlash. Harvard Civil Rights-Civil Liberties Law Review [Em linha]. Vol. 42, n.º 131 (2007), p. 373-434, p. 390. Disponível em: https://law.yale.edu/sites/default/files/documents/pdf/Faculty/Siegel_RoeRageDemocratic ConstitutionalismAndBacklash.pdf. [Consult. 12 jun. 2022].

[12]   Ibidem, p. 384.

[13]   A reforçar a distinção de tratamento, Mark Tushnet diferencia Constituição fina e grossa (ou densa). A primeira diz respeito às garantias fundamentais e é reivindicada pelo constitucionalismo popular. A segunda relaciona-se a previsões de organização do governo. Embora importantes, tais previsões cedem espaço no debate público para a Constituição fina (TUSHNET, Mark – Taking the Constitution Away from the courts. Princeton, NJ: Princeton University Press, 2000, p. 9-13).

[14]   HOGG, Peter W.; BUSHELL, Allison A. – The Charter Dialogue between Courts and Legislatures (Or Perhaps the Charter of Rights Isn’t Such a Bad Thing after All). Osgoode Hall Law Journal [Em linha]. Vol. 35, n.º 1 (1997), p. 75-124, p. 79. Disponível em: https://digitalcommons.osgoode.yorku.ca/ ohlj/vol35/iss1/2. [Consult. 23 jun. 2022].

Autores

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!