E quanto ao RIF na 'gaveta' da autoridade destinatária?
4 de fevereiro de 2025, 11h15
Em dezembro de 2019, o Supremo Tribunal Federal, ao julgar o Recurso Extraordinário nº 1.055.941 com repercussão geral (Tema 990), definiu que: é constitucional o compartilhamento de relatórios de inteligência financeira (RIF) da unidade de inteligência financeira (UIF) com órgãos de persecução penal para fins criminais, sem necessidade de autorização judicial prévia, desde que o sigilo das informações seja preservado em procedimentos formalmente instaurados e sujeitos a controle jurisdicional posterior; e esse compartilhamento deve ocorrer exclusivamente por comunicações formais, garantindo sigilo, certificação do destinatário e mecanismos eficazes de apuração e correção de eventuais desvios.
Contudo, uma das questões ainda carente de maior esclarecimento diz respeito à (im)possibilidade de efetiva supervisão, inclusive posterior, do Judiciário sobre o sigilo e o intercâmbio das informações do RIF entre a UIF e as autoridades destinatárias.
Para ilustrar a questão levantada, imagine-se o seguinte caso hipotético: após receber comunicações de setores obrigados, o Coaf elabora e encaminha formalmente um RIF à autoridade competente (Ministério Público ou Polícia Judiciária, por exemplo).
O RIF relata movimentações atípicas, mas sem indicar um crime antecedente que justifique a atribuição da autoridade ou a abertura imediata de investigação. Diante desse cenário, o RIF é arquivado internamente como informação de inteligência. No entanto, ele continua circulando internamente por diversos departamentos da autoridade competente.
Sem a formalização de um procedimento oficial, solicita-se a produção de informações complementares, a exemplo de relatórios detalhados sobre os envolvidos no RIF. Após meses ou anos, o RIF, agora acompanhado dessas informações adicionais, é utilizado para fundamentar a instauração de um procedimento investigativo em face daquelas pessoas envolvidas no relatório. Nesse contexto, é possível assegurar que o sigilo das informações foi preservado? Além disso, seria possível o efetivo controle jurisdicional sobre o intercâmbio e uso dessas informações?
A questão em tela ainda não ocupa o merecido espaço na literatura e jurisprudência, de modo que o desenvolvimento do debate aqui levantado, certamente, trará ganhos importantes na solução de casos concretos.
RIF como fonte de informação e não como prova
Primeiramente, convém rememorar, conforme entendeu o STF no RE nº 1.055.941, que o RIF tem caráter subsidiário e serve apenas como instrumentos para o alcance de provas, pois não é, como explica o renomado professor Aury Lopes Jr., “fontes de conhecimento”, mas sim “caminhos para chegar-se à prova”. [1]
Assim, conforme entendeu o ministro Alexandre de Moraes no RE nº 1.055.941, nos termos do Código de Processo Penal, o RIF equivale a “peças de informação”, as quais, assim como a notícia crime, o inquérito policial, o PIC do Ministério Público podem ensejar uma ação penal. Destarte, ao receber o RIF, se a autoridade competente entender que há necessidade de complementação das informações, deve formalizar o respectivo procedimento investigativo.
Nessa linha, para o STF, o RIF deve ter o mesmo tratamento de qualquer peça de informação que chega aos órgãos de persecução penal para fins criminais. Ou seja, se autua um procedimento preliminar (notícia de fato) ou se instaura, por portaria, um PIC ou inquérito policial, nos termos do artigo 5º do CPP.
A partir disso, formalizado o respectivo procedimento, mesmo que a autoridade competente queira arquivá-lo, deve promovê-lo nos termos do artigo 28 do CPP. [2]
Portanto, é o Ministério Público, enquanto titular da ação penal, que vai decidir se aqueles elementos informativos têm ou não sustância para uma denúncia, só que é o Ministério Público-Instituição, não é uma pessoa ou outra. Por isso a necessidade de formalizar o procedimento, pois uma vez arquivado, novas diligências investigativas só podem ocorrer com o surgimento de outros elementos de informação, nos termos do artigo 18 do CPP. [3]
Necessário controle jurisdicional
Esse cuidado procedimental com o intercâmbio das informações do RIF entre a UIF e a autoridade destinatária foi objeto de debate na oportunidade do julgamento do Tema 990.
Conforme ponderações dos ministros Dias Toffoli e Alexandre de Moraes, a formalização de um procedimento a partir do recebimento do RIF pela autoridade destinatária, além de garantir o efetivo controle judicial, também evita as chamadas “investigações de gaveta”, conduzidas por muitos meses ou anos, em procedimentos obscuros e sem nenhuma transparência, a exemplo do caso hipotético aqui tratado.
Razão assiste aos referidos ministros, pois, além de o texto constitucional ter atribuído ao Ministério Público a efetiva realização do controle externo da atividade policial (artigo 129, VII, CF), no sistema processual brasileiro, desde longa data, o juiz exerce, na fase pré-processual da persecução penal, o papel de controlar a legalidade das investigações encetadas pela Polícia Judiciária ou pelo Ministério Público. [4]
Essa característica, inclusive, vem agora reforçada e potencializada com a introdução da figura do juiz das garantias [5], que, na formatação dada ao Código de Processo Penal pela Lei nº 13.964/2019 (Lei Anticrime), deixou claro que é a figura responsável pelo controle da legalidade da investigação criminal e pela salvaguarda dos direitos individuais (artigo 3º-B, CPP).
Nessa perspectiva, o que não pode se admitir, salvo melhor juízo, é que os órgãos de persecução penal recebam informações do Coaf/UIF, não formalizem o respectivo procedimento investigativo e prossigam com a realização de diligências investigativas de forma obscura, sem qualquer transparência e em detrimento do imprescindível controle judicial sobre o manuseio e intercâmbio das informações constantes dos RIF, as quais gozam de proteção constitucional (artigo 5º, incisos X e XII, da CF/88) e estão sob a guarda das autoridades competentes destinatárias.
Consequências
Diante da amplitude do debate aqui levantado, e em razão da impossibilidade de esgotamento de um tema tão dinâmico, torna-se evidente a necessidade de maior observância aos critérios de legalidade e à proteção de dados pessoais em um contexto onde o tratamento e intercâmbio de informações pelo Coaf/UIF é extenso e feito com potencial para impactar diretamente a liberdade dos indivíduos envolvidos. [6]
Neste ponto, até mesmo como fator de expressiva conquista e preservação dos direitos instituídos em favor daqueles que sofrem a ação persecutória do Estado, convém lembrar a inquestionável hostilidade do ordenamento constitucional brasileiro às provas ilegítimas e às provas ilícitas.
A norma inscrita no artigo 5º, LVI, da Constituição consagrou o postulado de que a prova obtida por meios ilícitos deve ser repudiada por juízes e tribunais “por mais relevantes que sejam os fatos por ela apurados, uma vez que se subsume ela ao conceito de inconstitucionalidade…”. [7]
A cláusula constitucional do “due process of law” — que se destina a garantir a pessoa do acusado contra ações eventualmente abusivas do poder público — tem, no dogma da inadmissibilidade das provas ilícitas, uma de suas projeções concretizadoras mais expressivas, na medida em que o réu (contra quem jamais se presume provada qualquer acusação penal) tem o impostergável direito de não ser denunciado, de não ser julgado e de não ser condenado com apoio em elementos instrutórios obtidos ou produzidos de forma incompatível com os limites impostos pelo ordenamento jurídico ao poder persecutório e ao poder investigatório do Estado. [8]
Estabelecidas essas premissas, naqueles casos concretos em que não é possível assegurar que o sigilo das informações constantes do RIF foi preservado, bem como que por algum motivo restou prejudicado o efetivo controle jurisdicional posterior sobre o intercâmbio e uso dessas informações, a consequência jurídica a ser adotada em favor daqueles que sofrem a ação persecutória do Estado, salvo melhor juízo, é a declaração de ilicitude do RIF e dos demais elementos de informação dele derivados, com o reconhecimento da imprestabilidade de tais informações para a persecução criminal dos envolvidos.
[1] Direito Processual Penal. 15. ed. São Paulo: Saraiva, 2018, p 352.
[2] Art. 28. Ordenado o arquivamento do inquérito policial ou de quaisquer elementos informativos da mesma natureza, o órgão do Ministério Público comunicará à vítima, ao investigado e à autoridade policial e encaminhará os autos para a instância de revisão ministerial para fins de homologação, na forma da lei.
[3] Art. 18. Depois de ordenado o arquivamento do inquérito pela autoridade judiciária, por falta de base para a denúncia, a autoridade policial poderá proceder a novas pesquisas, se de outras provas tiver notícia.
[4] RHC n.º 106.041/TO, relator Ministro Sebastião Reis Júnior, Sexta Turma, julgado em 16/6/2020, DJe de 10/8/2020.
[5] Reforçando a importância do controle judicial da investigação criminal, em agosto de 2023, na oportunidade do julgamento das ações diretas de inconstitucionalidade 6.298, 6.299, 6.300 e 6.305, o STF reconheceu a constitucionalidade do juiz das garantias e fixou diversos pontos acerca do direito processual penal brasileiro (ADI 6298, Relator(a): LUIZ FUX, Tribunal Pleno, julgado em 24-08-2023, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-s/n DIVULG 18-12-2023 PUBLIC 19-12-2023)
[6] ESTELLITA, Heloisa. O RE 1 055 941: um Pretexto para Explorar Alguns Limites à Transmissão, Distribuição, Comunicação, Transferência e Difusão de Dados Pessoais pelo COAF. Distribuição, Comunicação, Transferência e Difusão de Dados Pessoais pelo COAF, 2021.
[7] ADA PELLEGRINI GRINOVER. Novas Tendências do Direito Processual. Forense Universitária, 1990, p. 62.
[8] Conforme bem destacado no voto do ministro Celso de Mello no RE nº 1.055.941.
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