Citação por edital é incompatível com exercício democrático da jurisdição
4 de fevereiro de 2025, 7h02
O inciso III do artigo 256 do Código de Processo Civil (CPC) [1] estabelece que a lei poderá prever outras hipóteses de citação por edital além daquelas nas quais o citando é desconhecido ou incerto e quando o local onde ele se encontra é ignorado, desconhecido ou inacessível.
Uma das previsões de citação por edital fora do rol do artigo 256 está veiculada no §1º do artigo 554 do próprio CPC [2]. Segundo este dispositivo, nas demandas possessórias em que houver grande número de pessoas no polo passivo, serão citadas pessoalmente as pessoas que estiverem no local e por edital todas as demais. A regra é complementada pelo §2º, onde se lê que “o oficial de justiça procurará os ocupantes no local por uma vez, citando-se por edital os que não forem encontrados”.
O legislador levou em consideração os custos e as dificuldades em promover a citação pessoal de todos os envolvidos em com grande número de pessoas no polo passivo. Buscou-se, a um só tempo, otimizar os princípios da eficiência e da duração razoável do processo.
Apesar das boas intenções do legislador, a leitura sistemática do CPC aponta para a desproporcionalidade da regra, em prejuízo de pessoas que, não raras vezes, já são vulneráveis socioeconomicamente.
Comecemos pelo artigo 252 do CPC [3], que trata da citação por hora certa. Como se sabe, ela é cabível na hipótese em que o oficial de justiça, tendo comparecido duas vezes ao local para citação do demandado, percebe indícios de ocultação. Nessa hipótese, o agente público deverá informar ao familiar, ou na falta deste, a um vizinho, que retornará no primeiro dia útil seguinte, no horário previamente indicado.
Aqui, o regramento estabelecido para as hipóteses em que o réu se oculta para evitar a citação é extremamente parcimonioso. Note-se que o CPC determina o comparecimento do oficial de justiça por três vezes ao local onde deve citar o demandado. Aliás, após a efetivação da citação por hora certa, o artigo 254 do CPC ainda exige o envio de carta, telegrama ou correspondência eletrônica ao réu, “dando-lhe de tudo ciência” [4].
A diferença de tratamento é evidente. Por um lado, ao réu em relação ao qual existem suspeitas de ocultação deliberada são previstas diversas garantias procedimentais. Por outro, ao réu hipossuficiente econômico, envolvido em conflito possessório, a mera circunstância de não estar em casa no dia e horário escolhidos pelo oficial de justiça para realização da diligência, já autoriza a citação ficta.
A regra do §1º do artigo 554 do CPC parece também desalinhada com a excepcionalidade que sempre marcou a citação editalícia. Em relação aos casos de local ignorado ou incerto, o CPC exige razoável esforço nas tentativas de localização do réu, “inclusive mediante requisição pelo juízo de informações sobre seu endereço nos cadastros de órgãos públicos ou de concessionárias de serviços públicos” (§3º do artigo 256).
Já em relação a lugares inacessíveis, o legislador aponta situações de difícil superação, como a pessoa que se encontra em país que recusar o cumprimento de carta rogatória [5]. A jurisprudência, na mesma linha, tem sido rigorosa quanto ao reconhecimento da inacessibilidade, recusando, por exemplo, alegações genéricas de periculosidade do local [6].
Outra circunstância digna de nota é que a autorização legal para citação por edital dos réus de demanda demarcatória, fundada no simples fato de não residirem na comarca de tramitação do processo (artigo 953 do CPC/73) [7], deixou de ser reproduzida no CPC/2015. Com efeito, no atual estágio tecnológico dos meios de comunicação e transporte, aquela autorização de citação ficta não mais se justificava.
Por tudo isso, a regra do §1º do artigo 554 do CPC/2015 está em descompasso com o regramento sistemático da citação ficta.
Violação ao princípio da isonomia
Por duração razoável do processo se deve entender aquele tempo necessário à prática de todos os atos indispensáveis à observância do devido processo legal, dentre os quais se inclui, evidentemente, o emprego de esforços razoáveis para citação pessoal dos réus.
Por eficiência, deve-se entender o emprego da menor quantidade de recursos, mas com a garantia de produção dos mesmos resultados. No caso de aplicação de menos recursos, seguidos de resultados também piores, não há avanço na qualidade da prestação jurisdicional, substituindo-se a eficiência pela deficiência.
O comparecimento do oficial de justiça por apenas uma vez no local da diligência como único requisito à citação editalícia produz tratamento injustificadamente diferenciado e, portanto, violador do princípio da isonomia.
É preciso que se exija, no mínimo, que o oficial de justiça retorne ao local o mesmo número de vezes exigida para a validade da citação por hora certa. O raciocínio aqui é simples: se não há em relação ao demandado do §1º do artigo 554 do CPC qualquer indício de ocultação deliberada, ele não pode titularizar menos garantias processuais do que aquelas titularizadas pelo demandado contra o qual existam indícios de má-fé.
Além disso, existem outras formas de acelerar a citação dos réus que, no primeiro dia de comparecimento do oficial de justiça, não estejam no local. Uma delas é a tentativa de colher o contato telefônico dos ausentes para realização da citação eletrônica (artigo 247 do CPC) [8]. Outra é a realização de estimativa de ocupantes, informando ao juízo competente a necessidade de realização de diligência mediante auxílio de outros oficiais de justiça, o que pode perfeitamente ser realizado através de mecanismos de cooperação judiciária (artigos 68 e 69 do CPC).
É claro que, em certos casos, pode ser necessária a citação por edital de parte dos demandados. Isso, porém, deve ocorrer nas mesmas circunstâncias em que já o seria nas demais hipóteses previstas em lei. E, então, realizada a citação ficta, deverá o órgão judicial determinar medidas que assegurem a ampla publicidade da existência do processo, como prevê o §2º do artigo 554 do CPC, em perfeita sintonia com a regra prevista no parágrafo único do artigo 257, também do diploma processual.
Isso é diferente de admitir que o processo aprofunde ainda mais as assimetrias socioeconômicas existentes nas relações de direito material. A rigor, o exercício democrático da jurisdição deve atuar no sentido de mitigá-las, assegurando, pelo menos no âmbito processual, a maior paridade possível entre as partes.
[1] CPC, Art. 256. Art. 256. A citação por edital será feita: […] III – nos casos expressos em lei.
[2] CPC, Art. 554. […] § 1º No caso de ação possessória em que figure no polo passivo grande número de pessoas, serão feitas a citação pessoal dos ocupantes que forem encontrados no local e a citação por edital dos demais, determinando-se, ainda, a intimação do Ministério Público e, se envolver pessoas em situação de hipossuficiência econômica, da Defensoria Pública.
[3] CPC, Art. 252. Quando, por 2 (duas) vezes, o oficial de justiça houver procurado o citando em seu domicílio ou residência sem o encontrar, deverá, havendo suspeita de ocultação, intimar qualquer pessoa da família ou, em sua falta, qualquer vizinho de que, no dia útil imediato, voltará a fim de efetuar a citação, na hora que designar.
[4] CPC, Art. 254. Feita a citação com hora certa, o escrivão ou chefe de secretaria enviará ao réu, executado ou interessado, no prazo de 10 (dez) dias, contado da data da juntada do mandado aos autos, carta, telegrama ou correspondência eletrônica, dando-lhe de tudo ciência.
[5] Nem mesmo dificuldades ou custos de instrução e remessa de cartas rogatórias têm sido admitidas como fundamento válido para promover a citação por edital. Nesse sentido: Agravo de Instrumento Nº 70076571538, Décima Segunda Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Ana Lúcia Carvalho Pinto Vieira Rebout, Julgado em 10/05/2018.
[6] TJ-RJ – APL: 00010797020188190004 202200160512, Relator: Des(a). GILBERTO CLÓVIS FARIAS MATOS, Data de Julgamento: 20/10/2022, VIGÉSIMA SEGUNDA CÂMARA CÍVEL, Data de Publicação: 25/10/2022
[7] CPC, Art. 953. Os réus que residirem na comarca serão citados pessoalmente; os demais, por edital.
[8] CPC, 247. A citação será feita por meio eletrônico ou pelo correio para qualquer comarca do País, exceto: […]. No Poder Judiciário do Estado do Paraná, a citação eletrônica é regulamentada pela Instrução Normativa CGJ nº 73/2021
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