Do uso de motocicletas de aplicativo no âmbito da Lei de Mobilidade Urbana
4 de fevereiro de 2025, 19h30
Recentemente veio a público uma guerra jurídica travada entre o município de São Paulo e as plataformas de aplicativos de transporte Uber e 99, acerca da proibição de utilização do transporte por motocicletas.
A Prefeitura de São Paulo, após constatar, por meio de seus órgãos internos (fato corroborado por informações independentes), o aumento significativo de mortes no trânsito em virtude da utilização de aplicativos para transporte de passageiros em motocicleta, editou o Decreto nº 62.144/2023, que suspendeu de forma temporária, dentro da circunscrição do município, a utilização de motos em serviços de transporte individual remunerado intermediado por aplicativos.
Mesmo com esse decreto, as plataformas de aplicativo continuaram a desobedecer o regramento municipal, o que desencadeou o endurecimento por parte do município, adotando medidas mais rigorosas de fiscalização para os motociclistas que ganham a vida utilizando a plataforma.
Igualmente, demandas judiciais foram propostas ao final do ano de 2024, dentre as quais uma ação civil pública cujo autor é o município de São Paulo e que visa de forma inaudita altera pars e em sede definitiva a proibição de atuação das plataformas por aplicativos no modal motocicleta e concomitantemente a autorização para usar de meios coercitivos em relação as empresas de plataforma e os seus “motoristas”.
Dessa forma, o objetivo deste artigo é uma análise acerca desse conflito à luz do ordenamento jurídico, sem, no entanto afirmar que o tema se esgotaria, dada a complexidade e camadas que o envolvem.
Inicialmente, convém afirmar que, apesar de muitas informações equivocadas que circulam na imprensa, os municípios possuem competência concorrente para legislar e regulamentar questões relativas a mobilidade urbana e a segurança viária, de acordo com as particularidades locais.
Essa possibilidade está prevista na Lei Federal nº 12.587/2012, a denominada Lei da Mobilidade Urbana, mais precisamente em seu artigo 6º, que conceitua e aponta as diretrizes da “Política Nacional de Mobilidade Urbana”.
“Em seu art. 11-A, especificamente sobre o tema “transportes por aplicativo” a citada lei dispõe que “Compete exclusivamente aos Municípios e ao Distrito Federal regulamentar e fiscalizar o serviço de transporte remunerado privado individual de passageiros previsto no inciso X do artigo 4º desta Lei no âmbito dos seus territórios.”
Igualmente a possibilidade de regulamentação dos municípios no âmbito da mobilidade urbana encontra guarida no disposto no artigo 24, II do CTB, que prescreve que:
“Art. 24. Compete aos órgãos e entidades executivos de trânsito dos Municípios, no âmbito de sua circunscrição:
(…)
II – planejar, projetar, regulamentar e operar o trânsito de veículos, de pedestres e de animais e promover o desenvolvimento, temporário ou definitivo, da circulação, da segurança e das áreas de proteção de ciclistas.”
Logo, não pairam dúvidas de que o município de São Paulo, ao promulgar o Decreto 62.144/2023, o fez de forma legítima.
E o fez visando a proteção da sociedade e o Estado Democrático de Direito, dada a constatação dos efeitos nefastos que a utilização por transporte via motocicleta está causando – leia-se aumento expressivo de sinistros com mortes decorrentes deste modal.
Lei de Política de Mobilidade Urbana
Ocorre que não bastasse esse argumento justo e inquestionável, igualmente o município pode valer-se no disposto na Lei de Política de Mobilidade Urbana quanto a conceituação do “transporte por aplicativo” e os requisitos para que os mesmos possam ser implementados.
Expliquemos.
O artigo 4º desse diploma, em sua “Seção I”, denominada “Das Definições”, apresenta quais são, para os fins deste, as espécie de transporte, conceito de mobilidade, dentre outros de extrema relevância.
Dentre outros, o transporte por aplicativo está conceituado no inciso X que o define como “transporte remunerado privado individual de passageiros: serviço remunerado de transporte de passageiros, não aberto ao público, para a realização de viagens individualizadas ou compartilhadas solicitadas exclusivamente por usuários previamente cadastrados em aplicativos ou outras plataformas de comunicação em rede”.
Neste conceito, à primeira vista poderiam estar abarcados tanto o transporte via aplicativo por automóveis quanto por motocicletas.
No entanto, o próprio diploma inviabiliza a atividade pelo modal motocicleta a apontar exigências que não são adotadas nas plataformas e outras que os motoristas das plataformas provavelmente não conseguiriam satisfazer.
Estamo-nos referindo ao disposto no artigo 11-B, que dentre os seus incisos enumeram as condições para que sejam autorizados, o mais sensível e de forma transversa seria o I que determina que (somente será conferido ao motorista exercer esse serviço se) possuir CNH categoria B ou superior que contenha a informação de exercício de atividade remunerada.
A Prefeitura de São Paulo não utilizou-se deste fundamento específico em seu decreto, mas poderia muito bem lançar mão deste fundamento – preferido utilizar-se das particularidades locais, no caso em tela o grande número de óbitos causados por sinistros decorrentes de utilização de aplicativos para motos ao fazer a regulamentação, proibindo de forma temporária o serviço de transporte de passageiros via motocicleta nas plataformas digitais.
Por outro lado, ao não utilizar-se desse fundamento ou de qualquer outro local os municípios podem estar incorrendo em desobediência à lei federal, pois sua dicção é bem clara e estaríamos claramente diante de uma omissão do ente público consistente em não utilizar de sua prerrogativa de regulamentar os serviços relacionados à mobilidade urbana, consoante o disposto no artigo 24 e incisos no CTB.
De toda sorte, mesmo sem observância do disposto na Lei Federal de Mobilidade Urbana, o fato é que, em que pese aqueles que defendem a inconstitucionalidade do decreto por impedir a livre iniciativa privada, entendemos não ser razoável que a administração pública feche os olhos quanto aos efeitos danosos dessa atividade sem exercer seu poder-dever de regulamentar de acordo com as particularidades locais e em sua circunscrição, e neste ponto, em nosso entender, o município de São Paulo age amparada pela lei.
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