Território Aduaneiro

As tarifas estão de volta!

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  • é doutor em Direito (UFPR) professor assessor/consultor da Organização Mundial das Aduanas (OMA) do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional (FMI) auditor-fiscal da Receita Federal membro especialista do Carf e membro da Junta Diretiva da Academia Internacional de Direito Aduaneiro (Icla).

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4 de fevereiro de 2025, 8h00

Afinal de contas, o que é uma ‘tarifa’?

Nas últimas semanas, uma das palavras mais ouvidas na mídia foi “tariffs” (tarifas). Mas, afinal de contas, o que é uma “tarifa”? A origem da palavra “tarifa” remete historicamente a um local, no sul da Espanha, que é, atualmente, um relevante destino turístico [1].

Hironori Asakura, em seu clássico World History of Customs and Tariffs, narra [2] que um dos grandes avanços do Império Romano foi o estabelecimento de uma “tarifa aduaneira”, com direitos aduaneiros cobrados em função do tipo de mercadoria (antes as cobranças eram em valores que independiam da mercadoria transacionada), e que um ano antes da invasão muçulmana na Europa, em 711, um grupo de reconhecimento do exército islâmico, liderado por Ṭāriq ibn Ziyād, desembarcou na costa da Andaluzia para estudar o terreno, sendo designado o local de desembarque, em sua homenagem, como “Tarifa”, ali se cobrando tributos em relação aos navios que navegavam na área [3]. Pedro Gual Villalbí, por sua vez, conta que a palavra parece vir do nome da população espanhola próxima a Gibraltar, que, no tempo dos moros, arrecadava certos impostos na entrada e saída de mercadorias [4].

Em endosso à primeira versão, encontramos registos históricos também no Gibraltar National Museum, que aponta que o Rochedo de Gibraltar (hoje um dos principais pontos turísticos da região), tem a denominação moderna “Gibraltar” derivada do árabe, de “Jebel Tarik” (Monte de Tarik) [5].

Nesse contexto surge o termo inglês “tariff”, o francês “tarif”, o italiano “tariffa”, o alemão “tarif”, o espanhol “tarifa” (sendo mais comum a utilização de “arancel”) e o português “tarifa” (no Brasil, sendo mais comum o uso de “pauta” nos demais países de língua portuguesa), que passou a ser empregado para expressar um conjunto ordenado de direitos aduaneiros incidentes sobre as diferentes mercadorias [6] (na forma adotada pelo Brasil, desde a “Tarifa Alves Branco”, de 1844, até a atual “Tarifa Externa Comum”, no âmbito do Mercosul), mas também é frequentemente usado para designar os direitos de importação relativos a uma mercadoria específica (v.g., aumento na “tarifa” do aço).

Gatt, OMC e as tarifas

O principal acordo internacional sobre “tarifas” da história mundial é o Gatt (General Agreement of Tariffs and Trade), que estabeleceu as bases para o multilateralismo e para a liberalização progressiva do comércio, após a Segunda Grande Guerra [7].

O Gatt estabelece princípios para evitar a discriminação no comércio intencional, como a “Nação Mais Favorecida” (Artigo I) e o “Tratamento Nacional” (Artigo III). Esse uso da tarifa como único elemento diferenciador lícito, permitido pelo Gatt (desde que dentro de seus termos), é endossado no artigo XI, que objetiva combater restrições econômicas diretas e quantitativas.

Spacca

Ao lado desses instrumentos, o artigo II do Gatt promove a liberalização comercial, estabelecendo as premissas para a redução do protecionismo tarifário, em rodadas de negociações comerciais. E o Gatt, mesmo antes da criação formal de uma Organização que lhe desse total eficácia, logrou êxito na tarefa de reduzir tarifas. Como registramos recentemente aqui na coluna [8], nas primeiras rodadas de negociação do Gatt, até 1956, foram reduzidas tarifas para dezenas de milhares de mercadorias, que respondiam por aproximadamente metade do comércio mundial.

O sucesso só não foi maior por alguns fatores, que acabaram dominando os debates nas décadas seguintes: o aumento do protecionismo não tarifário (v.g., mediante barreiras técnicas, licenças…) e a crescente insatisfação dos países em desenvolvimento (PeD) e de menor desenvolvimento relativo (PMDR) com a ausência, naquela época, de previsão de tratamento especial e diferenciado, que atendesse ao princípio da igualdade em seu sentido material.

Os temas não tarifários acabaram ensejando regulações específicas, nas rodadas de negociação das décadas seguintes (Tóquio e Uruguai), e o tratamento especial e diferenciado para PeD e PMDR, capitaneado pela Unctad, nascida em 1964, foi contemplado no Gatt (como Parte IV – Comércio e Desenvolvimento), reduzindo (mas não resolvendo) a questão da desigualdade material. Em acréscimo a esses ingredientes tensionadores do comércio internacional, surge o fenômeno dos blocos regionais, com amparo no artigo XXIV do Gatt, tendo como principal representante mundial (em termos de profundidade do processo de integração) a União Europeia.

Com a criação da OMC, fruto da Rodada Uruguai, toda a sistemática aqui descrita foi amparada pela jurisdição de um Mecanismo de Solução de Controvérsias, que funcionou razoavelmente bem até que, em 2020, encerrou-se o mandato do último juiz do Órgão de Apelação, sem reposição das vagas, por bloqueio das indicações por parte de Washington [9].

As tarifas e a nova geopolítica

À margem da já existente crise de jurisdição no multilateralismo, a questão das tarifas tomou nova proporção com a recente eleição de Donald Trump para a Casa Branca, um conhecido defensor do emprego de tarifas para regulação do comércio exterior, seja como elemento de proteção da indústria nacional norte-americana (protecionismo tarifário – o que não seria tão problemático, desde que dentro dos parâmetros estabelecidos em tratados internacionais), ou como instrumento de coerção nas negociações sobre outros temas.

Como exemplo dessa segunda categoria, veja-se o episódio recentemente noticiado pela mídia internacional, envolvendo Estados Unidos e Colômbia. Após o governo da Colômbia se recusar a aceitar voos militares transportando deportados dos Estados Unidos, o governo norte-americano ameaçou aplicar “tarifas” ao país sul-americano (inicialmente, de 25%, podendo subir a 50%, com aumento das inspeções aduaneiras). O presidente colombiano inicialmente respondeu de forma contundente, informando que também aumentaria as tarifas, mas voltou atrás, aceitando receber os citados voos militares [10]. Eis um exemplo inusitado de utilização de tarifas como retaliação sem qualquer relação com medidas antecedentes de comércio.

No que se refere a tarifas na sua acepção mais clássica, como medida protecionista (embora haja aí também a complexidade de direcionamento a um país específico, que seria mais juridicamente condizente com medidas de defesa comercial, e a justificativa adotada ser uma declaração de “emergência econômica nacional”), o presidente dos Estados Unidos anunciou ainda tarifas extraordinárias de 10% nas importações de mercadorias da China, contemplando, inclusive, o fim da isenção para bens abaixo de US$ 800 [11] (de minimis – o equivalente à nossa isenção para “blusinhas”, que analisaremos adiante).

E, nesse mesmo comunicado, o governo norte-americano anunciou ainda uma terceira situação, preocupante do ponto de vista da integração regional: imposição de alíquotas de 25% para os seus parceiros regionais de Tratado de Livre Comércio (México e Canadá) [12]. O primeiro ministro canadense, em contrapartida, anunciou mais de US$ 100 bilhões em “tarifas retaliatórias”. A presidente mexicana, por seu turno, igualmente determinou “tarifas retaliatórias” [13] (parece que teremos que nos acostumar com essa expressão!).

As tarifas, as ‘blusinhas’ e os alimentos

No Brasil, dois temas bem recentes resvalaram na questão tarifária, cabendo antes advertir que, para efeitos de comércio internacional, o leitor deve afastar-se de grande parte da doutrina tributária brasileira, que reluta em utilizar o termo “tarifa” para tratar do imposto de importação (embora a legislação brasileira e os tratados internacionais assim o usem há mais de um século)[14].

O imposto de importação é, sim, em regra, determinado a partir da Tarifa Aduaneira (em nosso caso, da Tarifa Externa Comum do Mercosul), e quando tratamos de isenção do imposto de importação para “blusinhas” (como ficou apelidado o Regime de Tributação Simplificada – RTS, na configuração dada pela Lei 15.071/2024, o que registramos em coluna anterior [15]), estamos nos referindo exatamente ao de minimis relativo à tarifa. Portanto, é tecnicamente incorreto, v.g., utilizar o termo “taxa” (modalidade tributária diversa) para as “blusinhas”.

Recentemente, foi noticiado que a alteração da metodologia de cálculo do imposto de importação para as “blusinhas” (em verdade, para as mercadorias sujeitas ao RTS) fez com que o volume de remessas internacionais caísse 11% em 2024, mas com que a arrecadação aumentasse 40% [16]. Teríamos aí, em princípio (pois a análise envolve variáveis mais complexas), um caso de manejo regulatório, dentro do propósito inicialmente buscado com a medida.

Outro exemplo de possível manejo regulatório da tarifa está sendo sondado pelo governo brasileiro: a redução de tarifas de importação para baratear alimentos [17].

Nunca se falou tanto do imposto de importação. Nunca se falou tanto da tarifa.

Cenas dos próximos capítulos…

No cenário internacional, temos a mesma percepção que a externada na coluna da semana anterior, por Fernanda Kotzias [18], de que o momento é de observar e mapear os eventos externos com vistas a compreender com profundidade as novas dinâmicas do comércio internacional, com cautela, sem paixões. Embora o conflito progressivamente acentuado entre multilateralismo, regionalismo (e outras formas de alianças) e bilateralismo esteja na ordem do dia, ainda não se pode conclusivamente prognosticar a consequência da política de amor às tarifas [19].

E mais, diante da crise de jurisdição do sistema multilateral, torna-se mais complexa a análise de eventuais aumentos unilaterais de tarifas em desacordo com as regras da OMC ou de outros tratados internacionais, tendo em conta que o desfecho sai do mundo jurídico, e entra no político/econômico.

Por fim, ao eventual leitor que ame tarifas, e esteja disposto a assumir publicamente essa paixão, informa-se que há camiseta com a mensagem “I love tariffs” impressa, em conhecido site internacional de compras, por apenas US$ 18,99 [20]. O leitor ainda mais apaixonado (e abastado) pode encontrar, por 165,92 euros, uma cédula comemorativa de 5 libras, de Gibraltar, com a imagem de Ṭāriq ibn Ziyād [21]. Mas fica o alerta: se comprar, faça isso com responsabilidade, e com respeito às regras do RTS!

 


[1] Ao leitor curioso, que desejar saber quais as atrações turísticas em “Tarifa”, recomenda-se: https://www.tripadvisor.com.br/Attractions-g315918-Activities-Tarifa_Costa_de_la_Luz_Andalucia.html. Acesso em 31 jan.2025.

[2] ASAKURA, Hironori. World History of Customs and Tariffs. Bruxelas: WCO, 2002. Com fundamento em A. Nakamaru, World History of the Sea, p. 95.

[3] A Enciclopédia Brittanica confirma a história, mas corrige o nome usado por Asakura (Taligibn Ziyad) para Ṭāriq ibn Ziyād, general que liderou a conquista muçulmana na Espanha, que desembarcou em Gibraltar em maio de 711, passando o local a ser conhecido como Jabal-al Ṭāriq (Monte de Tarik), em árabe, do qual a forma anglicizada do nome é adaptada. Disponível em: https://www.britannica.com/biography/Tariq-ibn-Ziyad. Acesso em 31 jan. 2025.

[4] GUAL VILLALBÍ, Pedro. Teoría y Tecnica de la Política Aduanera y de los Tratados de Comercio. Tomo I. Barcelona: Juventud, 1943, p. 69. Com fundamento em GEORGE, Henry. Proteción y Librecambio, p.95. No mesmo sentido, e citando GUAL VILLALBÍ, Germán Pardo Carrero (Tributación aduanera. Bogotá: Legis, 2009, p. 467; e Ricardo Xavier Basaldúa (Tributos al Comercio Exterior. 2. Ed. Buenos Aires: AbeledoPerrot, 2016, p. 704).

[5] Disponível em: https://www.gibmuseum.gi/our-history/brief-history-of-gibraltar. Acesso em 31 jan.2025.

[6] Registra Andrés Rohde Ponce que a tarifa (“arancel”), como uma lista ordenada de mercadorias, inclui a nomenclatura aduaneira (ordenação e nome das mercadorias) e as alíquotas que se aplicam a cada uma dessas mercadorias, e que a tarifa (“arancel”), como “direito de Aduanas”, é uma exação tributária que se deve pagar pela entrada de determinada mercadoria pela entrada em ou saída de um território aduaneiro (Derecho Aduanero Mexicano. Tomo I. Fundamentos y Regulaciones de la Acrividad Aduanera 2. Ed. Ciudad de Mexico: Tirant lo Blanch, 2021, p. 889).

[7] Sobre as negociações que levaram à celebração do GATT, ver: TREVISAN, Rosaldo. O imposto de importação e o Direito Aduaneiro Internacional. São Paulo: Lex, 2017, p. 86-90; e BASALDÚA, Ricardo Xavier. La Organización Mundial del Comercio y la regulación del comercio internacional. 2. ed. Buenos Aires: AbeledoPerrot, 2013, p. 59-62.

[8] TREVISAN, Rosaldo. Churchill, Caetano e o ‘tema do momento’, Revista Eletrônica Conjur, 5 nov. 2024, disponível em: https://www.conjur.com.br/2024-nov-05/churchill-caetano-e-o-tema-do-momento/#_edn6. Com base em documento oficial disponível no sítio web da OMC (https://docs.wto.org/gattdocs/q/GG/MGT/60-19.PDF).

[9] Desde 2017, ainda no governo de Barack Obama. No sítio web da OMC há um registro do ex-Diretor Geral, Roberto Azevêdo, em dezembro de 2019, objetivando lançar “consultas intensivas para resolver impasse no Órgão de Apelação” (disponível em: https://www.wto.org/english/news_e/news19_e/gc_09dec19_e.htm). Em maio do ano seguinte, Azevêdo anunciou sua renúncia ao mandato de Diretor Geral.

[10] Notícias disponíveis em: https://www.newsweek.com/colombia-president-petro-responds-trump-tariffs-full-statement-2021072 e em https://www.reuters.com/world/americas/colombias-petro-will-not-allow-us-planes-return-migrants-2025-01-26/. Acesso em 2 fev. 2025.

[11] Segundo notícias disponíveis em: https://edition.cnn.com/2025/02/01/politics/mexico-canada-china-tariffs-trump/index.html. Acesso em 2 fev. 2025.

[12] O processo de integração regional desses três países da América do Norte nasce no final do século passado, com o NAFTA (North American Free Trade Agreement). Em 2020, o tratado foi substituído pelo T-MEC (Tratado de Livre Comércio da América do Norte), também conhecido como NAFTA 2.0 ou TLC 2.0. Sobre o T-MEC, ver: BASALDÚA, Ricardo Xavier. Derecho de la Integración. Tomo II. Buenos Aires: Thompson Reuters, 2024, p. 396-477.

[13] Notícias disponíveis, inclusive com menção a “retaliatory tariffs”, em: https://www.nytimes.com/2025/02/02/us/politics/canada-trump-tariffs.html e em: https://www.reuters.com/world/americas/mexican-president-orders-retaliatory-tariffs-against-us-2025-02-02/. Acesso em 2 fev. 2025.

[14] No Direito Tributário brasileiro, o termo “tarifa” acabou assumindo, nas palavras de José Eduardo Soares de Melo, o significado de “[…] a remuneração devida pelos usuários de serviços públicos, explorados por concessionários ou permissionários, sob regime de Direito Administrativo” (Curso de direito tributário. 7. ed. São Paulo: Dialética, 2007. p. 70). Luciano Amaro, destacando a polêmica da distinção entre taxas e tarifas (preços), na visão de Ives Gandra da Silva Martins, Hamilton Dias de Souza, Marco Aurélio Grecco e Geraldo Ataliba, conclui remetendo ao texto constitucional de 1988 e asseverando que “[…] nem só de taxas vivem os serviços públicos” (AMARO, Luciano. Direito tributário brasileiro. 10. ed. São Paulo: Saraiva, 2004. p. 42-43).

[15] TREVISAN, Rosaldo. Benefícios fiscais e o caso das ‘blusinhas’ (parte 1), Revista Eletrônica Conjur, 18 jun. 2024, disponível em: https://www.conjur.com.br/2024-jun-18/beneficios-fiscais-e-o-caso-das-blusinhas-parte-1/.

[16] Notícia disponível em: https://cbn.globo.com/economia/noticia/2025/01/29/apos-taxacao-das-blusinhas-compras-internacionais-caem-11percent-mas-arrecadacao-bate-recorde-com-novo-imposto.ghtml. Acesso em 2 fev. 2025. Importante destacar que 91% do total de importações de 2024 ocorreu por meio do Programa Remessa Conforme.

[17] Notícia disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/politica/noticia/2025-01/governo-avalia-reduzir-tarifa-de-importacao-para-baratear-alimentos. Acesso em 2 fev. 2025.

[18] Geopolítica e comércio internacional: o que esperar em 2025. Conjur, 28 jan. 2024, disponível em: https://www.conjur.com.br/2024-jun-18/beneficios-fiscais-e-o-caso-das-blusinhas-parte-1/.

[19] Sobre o tema, remete-se a artigo recente de Ricardo Xavier Basaldúa: Derecho del Comercio Internacional: bilateralismo, multilateralismo y regionalismo. Revista Jurídica da Presidência, Brasília, vol. 26, n. 140, set./dez. 2024, p. 546-566.

[20] Disponível em: https://www.amazon.com/I-Heart-Tariffs-Love-T-Shirt/dp/B0DMSCQXG8?customId=B07537HQXD&customizationToken=MC_Assembly_1%23B07537HQXD&th=1. Acesso em 2 fev. 2025.

[21] Disponível em: https://pt.ebay.com/b/Uncertified-Gibraltar-Paper-Money/141087/bn_26636593. Acesso em 2 fev. 2025.

Autores

  • é doutor em Direito (UFPR), professor, assessor/consultor da Organização Mundial das Aduanas (OMA), do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional (FMI), auditor-fiscal da RFB, conselheiro da Câmara Superior de Recursos Fiscais do CARF, presidente da Câmara Especializada Aduaneira do Carf e membro da Academia Internacional de Direito Aduaneiro (Icla).

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