Opinião

A voz do Estado não pode ser a única e muito menos absoluta

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  • é mestrando em Direito Penal pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo – Largo São Francisco advogado no escritório Alamiro Velludo Salvador Netto Advogados Associados.

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  • é advogada bacharel em Direito pela Faculdade de Direito de Franca (FDF) e pós-graduanda em Direito Penal e Processual Penal pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).

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4 de fevereiro de 2025, 6h01

Mais uma vez andou bem o Superior Tribunal de Justiça, desta feita ao julgar o Recurso Especial nº 2.173.338/SC, interposto de modo a discutir a validade de provas e depoimentos vindos de agentes do Estado em situações que envolvam versões conflitantes.

O ministro Reynaldo Soares da Fonseca

Em artigo publicado nesta Conjur, discutiu-se sobre a necessidade de tratar da “autoproclamada confiança” na palavra estatal, objeto de críticas do ministro Ribeiro Dantas (5ª Turma — STJ). Por acaso, em julgamento monocrático ocorrido no último dia 13, o assunto foi, novamente, objeto de debate. É justamente tal questão que será abordada neste artigo.

Em um sistema jurídico que se pretende democrático, a voz do Estado não pode ser absoluta, especialmente quando o tema são os processos criminais e as infindáveis formas de persecução penal por parte do Estado.

A decisão do ministro Reynaldo Soares da Fonseca — integrante da 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça — no Recurso Especial nº 2.173.338/SC serve como um paradigmático contraponto à tendência de se privilegiar e acolher inadvertidas e incondicionais “técnicas investigativas” em detrimento das garantias fundamentais do indivíduo. O caso, que envolveu a condenação de um réu por tráfico de drogas, expõe as tensões entre o poder punitivo do Estado e os direitos constitucionais à inviolabilidade do domicílio, à presunção de inocência e ao devido processo legal.

No que diz respeito ao caso levado a julgamento, tem-se, em resumo, que o recorrente foi condenado a pena de 5 anos e 10 meses de reclusão, pois foram apreendidos 17,7 g de cocaína em sua residência após uma busca domiciliar realizada sem o devido mandado judicial. A defesa alegou a ilegalidade da prova, sustentando que a abordagem policial foi baseada em meras suspeitas subjetivas e que a entrada na residência ocorreu mediante agressões e sem autorização.

O ministro Reynaldo Soares da Fonseca, ao analisar o caso, reconheceu a nulidade das provas obtidas, reafirmando a necessidade de fundadas suspeitas para justificar medidas invasivas e a inadmissibilidade dos elementos de informação derivados de violações aos direitos subjetivos do investigado/acusado.

Ordem pública e persecução penal

Não se discute, muito menos se nega, que a atividade investigativa do Estado é essencial para a manutenção da ordem pública e a persecução penal. No entanto, ao se desvincular esta atividade dos limites legais e constitucionais, transforma-se em um instrumento de arbítrio. A versão estatal, representada pelos agentes policiais e pelo Ministério Público, não pode ser tomada como infalível ou incontestável. Do contrário, a história recente do sistema de Justiça Criminal está repleta de exemplos em que a busca pela “verdade real” foi utilizada como justificativa para violações graves de direitos constitucionais.

No caso em análise, a abordagem policial foi realizada com base em denúncias anônimas e na mera presença do réu em uma região conhecida pelo tráfico de drogas. Tais elementos, por si só, não configuram justa causa para a realização de uma revista pessoal, muito menos para a invasão de um domicílio. O STJ destacou que a simples menção a denúncias anônimas ou a impressões subjetivas dos agentes policiais não atende ao padrão probatório exigido para justificar medidas tão invasivas. O ministro relator ressaltou que ‘não satisfazem a exigência legal, por si sós, meras informações de fonte não identificada ou intuições subjetivas, intangíveis e não demonstráveis de maneira clara e concreta’ (RHC nº 158.580/BA).

A ausência de elementos objetivos que justifiquem a suspeita de prática criminosa invalida a busca e, consequentemente, os elementos dela decorrentes. Essa decisão reforça a ideia de que os representantes do Estado não devem ser ouvidos como portadores de uma verdade absoluta. Corre-se o risco de transformar a atividade investigativa em um exercício de poder discricionário, em que a palavra do agente estatal prevalece sobre os direitos do cidadão. Das vezes em que tal premissa se estabeleceu — dentro ou fora — do ordenamento brasileiro, o resultado foi trágico.

Spacca

O direito à inviolabilidade do domicílio, previsto no artigo 5º, inciso XI, da Constituição, é um dos pilares do Estado democrático de direito. Embora não seja absoluto, sua mitigação exige a demonstração de fundadas razões que justifiquem a entrada forçada em uma residência. No caso em questão, a busca domiciliar foi realizada sem mandado judicial e sem a comprovação de que o réu havia consentido com a entrada dos agentes policiais.

Para além disso, constatou-se nos autos — e, via de consequência, no julgamento monocrático do recurso no STJ — que o recorrente foi agredido pelos policiais, conforme atestado por laudo pericial e depoimentos de testemunhas. A existência de lesões no réu descredibilizou a versão dos agentes de que a busca havia sido autorizada de forma espontânea. Como destacou, no caso em discussão, o próprio membro do Ministério Público, “a descredibilização dos depoimentos policiais, diante das agressões comprovadas, invalida toda a ação investigativa adotada nos autos”.

Depoimentos de agentes estatais

A presunção de veracidade dos depoimentos prestados por agentes estatais, especialmente em contextos de buscas domiciliares e abordagens policiais, é um tema que frequentemente gera controvérsias no sistema de justiça criminal. Quando há elementos concretos que apontam para agressões ou violações de direitos por parte dos policiais, essa presunção deve ser rigorosamente questionada. A decisão judicial não pode se basear em relatos contraditórios ou desprovidos de suporte probatório, mesmo que provenham de agentes do Estado.

A autorização espontânea para a realização de uma busca domiciliar, por exemplo, é uma alegação que deve ser analisada com ceticismo quando há indícios de que o investigado foi coagido ou agredido. A credibilidade dos depoimentos policiais não pode ser absoluta; ela deve ser submetida ao crivo do contraditório e da ampla defesa, sob pena de se legitimar abusos de autoridade.

A existência de lesões físicas comprovadas por laudos periciais, como no caso em análise, é um elemento que desequilibra a balança em favor da descredibilização dos relatos dos agentes. Quando um indivíduo é agredido durante uma abordagem policial, a narrativa de que ele consentiu espontaneamente com a busca domiciliar perde força.

A coerção, seja física ou psicológica, invalida qualquer suposta autorização, pois o consentimento, para ser válido, deve ser livre e informado. A decisão do STJ ao afastar a presunção de veracidade dos depoimentos policiais nesse contexto é um reforço necessário à proteção dos direitos de primeira geração. Afinal, a justiça não pode ser construída sobre a base de violações de direitos, especialmente quando essas violações são cometidas por agentes do Estado.

Tal prática extrapola todos os limites aceitáveis, posto que não se pode consentir que a atividade investigativa feita pelo e para o Estado se valha de mecanismos típicos de exceção. Em um Estado democrático de direito, assentado sob o princípio do rule of law, tais práticas não podem ser legitimadas e devem ser energicamente repreendidas pelos órgãos de controle judicial.

Além disso, a descredibilização dos depoimentos policiais em casos como esse serve como um alerta para a necessidade de maior transparência e formalização das ações investigativas. A ausência de registros objetivos, como relatórios detalhados ou gravações das abordagens, fragiliza a posição do Estado e abre espaço para questionamentos sobre a legalidade de suas ações. A presunção de veracidade não pode ser um escudo para a falta de rigor probatório. Pelo contrário, ela deve ser um incentivo para que os agentes estatais ajam com maior responsabilidade e respeito aos procedimentos legais.

Estado não está acima da lei

Por fim, a decisão de afastar a presunção de veracidade dos depoimentos policiais quando há indícios de agressões reforça o princípio de que o Estado não está acima da lei. Em um Estado democrático de direito, a atividade policial deve ser submetida ao controle judicial e ao escrutínio público. A voz do Estado, embora importante, não pode ser incontestável. A Justiça exige que todas as partes sejam ouvidas e que as provas sejam analisadas com isenção, especialmente quando há indícios de que os direitos fundamentais foram violados. Essa postura não apenas protege o indivíduo contra abusos, mas também fortalece a credibilidade do sistema de justiça como um todo.

Tais fatos, per se, evidenciam problema recorrente no sistema de justiça criminal: a presunção de veracidade do Estado. Não raras vezes, os depoimentos dos agentes policiais são tomados como verdadeiros, mesmo quando contraditórios ou desprovidos de suporte probatório. Essa presunção, que muitas vezes se sobrepõe ao direito de defesa, precisa ser questionada.

Conforme sustenta Geraldo Prado, não se pode recorrer a conceitos da antiga tradição do processo penal brasileiro, como a “fé-pública”, pois a interpretação predominante nas tradições democráticas que foram abraçadas após 1988 tem fundamento no princípio da desconfiança, afastando, portanto, qualquer presunção de veracidade absoluta dos atos praticados pelos agentes estatais responsáveis pela investigação criminal. [1]

Sob essa perspectiva, não se admite a premissa de boa-fé presumida por parte das autoridades encarregadas da apuração dos fatos e da execução das medidas preliminares. Ao contrário, impõe-se a adoção de um critério rigoroso e metodológico na obtenção, preservação e valoração dos elementos probatórios, de modo a garantir a observância dos direitos e garantias fundamentais, a imparcialidade da persecução penal e a conformidade do procedimento investigativo aos ditames do Estado democrático de direito.

Violação de direitos fundamentais

A decisão do STJ reforça o entendimento de que provas obtidas com violação de direitos fundamentais são inadmissíveis no processo penal, conforme o artigo 157, caput, § 1º, do Código de Processo Penal. A ilicitude delas não se limita àquelas obtidas diretamente por meio de violações, mas também se estende às provas derivadas dessas ilegalidades. A busca domiciliar e as drogas apreendidas foram consideradas ilícitas, pois decorreram de uma abordagem policial ilegal e de uma invasão domiciliar sem justa causa.

O STJ também destacou a importância de se observar a Convenção Americana de Direitos Humanos, que veda o uso de provas obtidas mediante tortura, tratamento cruel, desumano ou degradante. A agressão sofrida, além de configurar uma violação grave de seus direitos, invalida toda a prova colhida a partir daquela ação policial. Essa decisão reforça a ideia de que o processo penal não pode ser um fim em si mesmo, mas sim um meio para a realização da justiça, com respeito aos direitos constitucionais.

A decisão do STJ no Recurso Especial nº 2.173.338/SC é emblemática por reafirmar o papel das instâncias superiores na proteção das garantias constitucionais e no controle da atividade investigativa. Ao declarar a nulidade das provas obtidas com violação de direitos fundamentais, a Corte Cidadã não apenas assegurou o direito de defesa, como também enviou um claro recado às instâncias ordinárias e autoridades policiais sobre o fundamental respeito aos limites legais das diligências investigativas.

O caso julgado pelo STJ evidencia os desafios enfrentados pelo sistema de justiça criminal na era digital e na luta contra o crime organizado. No entanto, a decisão reforça que a integridade das provas e o respeito aos direitos dos cidadãos são condições indispensáveis para a legitimidade do processo penal. A inadmissibilidade daquilo obtido com violação de direitos fundamentais não é apenas uma exigência técnica, mas uma garantia essencial para a proteção do Estado democrático de direito.

Acusatório x inquisitório

Segundo entendimento de Paolo Ferrua, no exercício da epistemologia jurídica é preferível o realismo do modelo acusatório, que admite a limitação da busca da verdade, cujo conhecimento será sempre relativo, à perigosa utopia típica modelo inquisitório, em que tudo é justificado para atingir a verdade absoluta. [2]

A delimitação de parâmetros para a atividade probatória, notadamente naquilo que diz respeito à legalidade e suficiência para construção do convencimento judicial, constitui um verdadeiro óbice para evitar que se caia no abismo do consequencialismo e do substancialismo inquisitório.

Por mais que pareça óbvio, é necessário dizer: em um sistema que se pretende justo e democrático, o poder punitivo deve ser exercido com moderação e respeito às garantias constitucionais. A decisão do STJ deve servir como luz à atuação das instâncias ordinárias de controle e poder — policiais, acusatórias e judiciárias — na adoção de práticas investigativas mais transparentes, que assegurem o equilíbrio entre a eficácia da persecução penal e o respeito às garantias fundamentais.

 


[1] PRADO, Geraldo. A cadeia de custódia da prova no processo penal. 2 ed. Rio de Janeiro: Marcial Pons, 2021. p. 197.

[2] FERRUA, Paolo. Contradditorio e veritá nel processo penale. Studi sul processo penale: anamorfose del processo accusatorio. Torino: G. Giappichelli, 1992. v. II. p. 49.

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