Tratamento para o setor de revenda de veículos usados na reforma tributária
3 de fevereiro de 2025, 6h30
A reforma tributária da Emenda Constitucional nº 132/2023 está seguindo seus passos de consolidação e implementação segundo a agenda cronológica programada. Neste contexto foi publicada no DOU de 16 de janeiro de 2025, a Lei Complementar nº 214/2025 (PLP nº 68/2024), que em seu preâmbulo menciona a instituição do Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), a Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS), o Imposto Seletivo (IS) e cria o Comitê Gestor do IBS.
Pode-se dizer que, de todo o arcabouço da normatização complementar a ser instituída para regulamentar todo o novo regime tributário, a LC nº 214/2025 é a principal norma estruturante do novo sistema, visto que institui os três tributos concebidos pela reforma tributária para substituir os seguintes tributos do sistema atual: o PIS, a Cofins e o IPI, este se forma parcial, todos de competência da União; o ICMS, imposto estadual e o ISS, de incidência sobre serviços de competência municipal.
Há uma expectativa de simplificação do sistema proposto pela reforma em razão da nacionalização de toda a legislação dos novos tributos instituídos, libertando os contribuintes do enorme ônus decorrente da necessidade de manutenção de estruturas de assessoramento para acompanhar e interpretar uma quantidade exorbitante de normas lançadas no sistema todos os dias, pelos entes tributantes, nos três níveis: federal, estadual e municipal.
Todavia, o anseio pela simplicidade não pode ser causa de prejuízo a toda uma gama de princípios que devem reger todo sistema tributário justo e equilibrado, para que a carga tributária seja distribuída entre a sociedade de modo que interfira com o menor impacto possível na vida econômicas das pessoas (neutralidade), equalizando ainda o ônus tributário segundo a capacidade contributiva [1] dos pagadores de tributos.
Reforma institui regimes diferenciados
Para atender a esta necessidade de adequar o sistema para os diversos setores da economia, o novo sistema tributário, através da mencionada lei complementar, instituiu diversos regimes tributários diferenciados, dedicando-lhes o Título V, com diversas calibragens da carga tributária, atendendo a uma política de distribuição do ônus tributário e, principalmente, para atender determinados setores da economia que, pelas suas particularidades negociais no mercador, não poderiam ser submetidas às regras normais de tributação, sob pena de inviabilizar a atividade pela sobrecarga tributária, quebrando princípios como o da isonomia, da não cumulatividade, da neutralidade, entre outros.
Diríamos que o legislador teve muita lucidez ao captar essas particularidades econômicas e fazer as adaptações necessárias, para chegar a um sistema mais justo e sustentável a longo prazo. Lembremos que no regime reformista foi extinto o formato de concessão de benefícios fiscais nos moldes do regramento atual, que são fontes de desintegração da uniformidade do sistema, violando o princípio da isonomia e contribuindo para a complexidade do sistema tributária, mas foi mantida uma diversificação nos regimes tributários, não como uma renúncia de receita, ou benefício fiscal, mas para obter uma melhor distribuição da carga tributária segundo os critérios já mencionados. Queremos enfatizar que o legislador não qualificou esta tributação diferenciada como benefícios fiscais, porque efetivamente, não o são. Na verdade, são calibragens de cobranças diferenciadas para melhor ajustar o sistema às necessidades dos setores econômicos e uma melhor adequação à economia de consumo.
Neste artigo pretendemos enfocar o regime tributário diferenciado para os bens móveis usados adquiridos de pessoa física não contribuinte para revenda previsto no artigo 171, da mencionada lei complementar.
“Art. 171. O contribuinte de IBS e de CBS sujeito ao regime regular poderá apropriar créditos presumidos dos referidos tributos relativos às aquisições, para revenda, de bem móvel usado de pessoa física que não seja contribuinte dos referidos tributos ou que seja inscrita como MEI.”
Pretendendo ser ainda mais específico. Tomamos como referência o setor de revenda de veículos usados, que sempre vem enfrentando a dificuldade de se ajustar à tributação do ICMS, que é regido também pela não cumulatividade, em razão da inexistência de crédito na aquisição dos veículos usados de particulares.
Para resolver este problema, o legislador da lei complementar, de forma muito acertada, concede um crédito presumido para substituir o crédito não obtido pela compra do bem usado de particular e preservar o princípio da não cumulatividade que é de essência para o arquétipo de incidência destes tributos.
É digno de nota que esse crédito presumido não representa um benefício fiscal no sentido de renúncia de receita, mas tão somente um regime tributário diferenciado para equalizar a carga tributária para aquele setor, considerando as suas peculiaridades operacionais, com a ausência de crédito na aquisição dos veículos usados de particulares, evitando, assim, que o IBS e a CBS incidam sobre o faturamento, que seria totalmente irregular para um sistema regido pela não cumulatividade.
Novo sistema garante previsibilidade e segurança jurídica
Ponto importante que merece a nossa reflexão é a possibilidade ou não de se estabelecer condições lastreadas no cumprimento de obrigações tributárias, para a fruição desse regime diferenciado.
Quando estamos tratando de um benefício fiscal, e portanto, de uma renúncia fiscal a favor do sujeito passivo, é natural se estabelecer cláusulas condicionantes para sua fruição, cessando o benefício diante do descumprimento dessas condições, reconduzindo o contribuinte à situação anterior, sem o benefício fiscal, sem prejuízos além da perda do benefício. São os benefícios condicionados, perfeitamente justificáveis.
A situação é totalmente diversa no regime tributário diferenciado aqui enfocado, que não representa uma renúncia fiscal, mas que se traduz num modelo de tributação específico para um determinado setor econômico, para viabilizar a arrecadação num patamar semelhante aos demais contribuintes; o crédito presumido, a redução da base de cálculo, entre outros mecanismos, são instituídos para compensar situações desfavoráveis dos contribuintes alcançados pelo regime, como por exemplo, a ausência de crédito do tributo pela aquisição do bem ou da mercadoria. O regime diferenciado é um mecanismo para repor a igualdade de condições, em especial, com relação à carga tributária, em comparação com os demais contribuintes regidos pelo regime normal de tributação.
Por esta razão, impor condições relacionadas ao cumprimento das obrigações tributárias, para a fruição dos efeitos do regime diferenciado, não faz sentido e violaria o princípio do tratamento isonômico. A perda desse enquadramento por conta do descumprimento dessas condições conduziria o contribuinte para uma situação de sobrecarga tributária, que fora a causa do regime diferenciado, criando-se uma situação em que o tributo estaria operando com forma de punição, violando o artigo 3º [2], do Código Tributário Nacional, Lei nº 5.172/66. Se considerarmos a hipótese de imposição de multa pelo descumprimento das obrigações tributárias condicionantes para o tratamento diferenciado, estar-se-ia penalizando o contribuinte duplamente: pela imposição da multa e pela majoração dos tributos como forma de penalidade.
Portanto, a reforma tributária trouxe uma solução há muito tempo esperada pelo setor de revenda de veículos usados, fixando regras claras para a incidência dos novos tributos sobre o consumo, garantindo previsibilidade e segurança jurídica, e ao mesmo tempo, viabilizando os seus negócios por meio do regime tributário diferenciado, considerando as peculiaridades do setor já mencionadas.
[1] O princípio da capacidade contributiva previsto no art. 145, § 1º, da Constituição Federal.
“Art. 145 […}
{…}
§1º Sempre que possível, os impostos terão caráter pessoal e serão graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte, facultado à administração tributária, especialmente para conferir efetividade a esses objetivos, identificar, respeitados os direitos individuais e nos termos da lei, o patrimônio, os rendimentos e as atividades econômicas do contribuinte.”
[2] “ Art. 3º Tributo é toda prestação pecuniária compulsória, em moeda ou cujo valor nela se possa exprimir, que não constitua sanção de ato ilícito, instituída em lei e cobrada mediante atividade administrativa plenamente vinculada.”
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