Opinião

Proteção do público infantojuvenil no meio digital e deficiências sistêmicas das big techs

Autores

  • é advogada sócia fundadora do escritório Lillian Salgado Sociedade de Advogados presidente do Comitê Técnico do Instituto Defesa Coletiva diretora de Proteção de Dados dos Segurados do INSS do Ieprev membro do Conselho Gestor do Fundo Estadual de Defesa do Consumidor de Minas Gerais e conselheira do Fundo Estadual de Direitos Difusos (Fundif).

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  • é advogado pela PUC de Minas Gerais pós-graduado em Gestão Estratégica de ESG pela UMA e especialista em Direito dos Negócios Internacionais pela Escola de Advocacia e Negócios Internacionais.

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3 de fevereiro de 2025, 15h22

Chegamos em 2025 “acordados” por duas importantes notícias. A primeira é a de que o CEO da Meta, Mark Zuckerberg, resolveu dispensar as moderações nos conteúdos das redes sociais (Instagram, Threads e Facebook). Zuckerberg anunciou que a big tech não terá mais a verificação de fatos feitas por terceiros, ferramenta pela qual se moderava a circulação de notícias falsas e de conteúdo violento. A segunda notícia é que o governo federal sancionou a Lei nº 15.100/25, que proíbe estudantes de usarem telefone celular e outros aparelhos eletrônicos portáteis em escolas públicas e particulares, inclusive no recreio e intervalo entre as aulas.

Reprodução

A relevância do tema é tamanha que a Advocacia-Geral da União (AGU) promoveu uma audiência pública para discutir as recentes alterações implementadas pela Meta, bem como os impactos dessas mudanças na vida dos consumidores brasileiros.

Os efeitos do uso das telas e o consumo de redes sociais por crianças e adolescentes, já estão no “radar” do Instituto Defesa Coletiva há bastante tempo. Prova disso são as duas ações coletivas movidas pelo instituto contra as empresas Meta, Tik Tok e Kwai impetradas no Tribunal de Justiça de Minas Gerais. As ações se fazem fundamentais uma vez que não temos ainda uma legislação brasileira que balize parâmetros quanto ao uso indiscriminado de redes sociais por um público tão vulnerável quanto o de crianças e adolescentes.

As ações civis públicas foram baseadas na existência de provas científicas mais do que suficientes que apontam que o vício em telas e redes sociais causa uma ampla gama de danos à saúde física e mental do usuário menor de 18 anos. As plataformas não possuem mecanismos eficientes para prevenir esse problema, o que já era verificado no campo empírico. E as redes sociais são negligentes perante à circulação de conteúdo problemático e de propagandas ilícitas aos menores que escapam à fiscalização, muitas vezes difundidas por influenciadores.

O funcionamento negligente das redes sociais infringe várias diretrizes legais, como o Código de Defesa do Consumidor, o Estatuto da Criança e do Adolescente, o Marco Civil da Internet, a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais, a Resolução nº 163 do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda) e o Anexo 10 do Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária (Conar). Em razão disso, o Instituto Defesa Coletiva defende a alteração estrutural do funcionamento das plataformas para que elas estejam atinentes ao princípio do melhor interesse da criança e adolescente.

É sabido que as redes sociais estimulam o uso contínuo dos usuários em suas plataformas. Esse estímulo é extremamente eficiente, pois atua diretamente no sistema dopaminérgico, gerando grande sensação de recompensa ao usuário, o que acarreta consequentemente a dependência. A nocividade do uso indiscriminado de telas e redes sociais já foi alertado pela Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) que produziu um completo material o qual compila informações de vários estudos que demonstram que os danos são transversais na saúde física, mental e social do usuário.

As redes sociais possuem como pressuposto básico e geral a necessidade de ter, ao menos, 13 anos completos para que o menor possua conta de usuário, com algumas ressalvas a depender de cada plataforma. A Meta possui conta voltada para o público de 10 a 12 anos, cuja criação e utilização depende de fiscalização de seus pais e responsáveis. Também existe a conta para usuários de 13 a 17 anos que não exige supervisão dos responsáveis e permite que as restrições de conteúdos sensíveis sejam desabilitadas.

O Tik Tok possui conta vinculada aos pais e responsáveis (Family Pairing), mas é um recurso opcional. Há um escalonamento de funções de acordo com idade do adolescente para os intervalos de 13 a 15 e de 16 a 17 anos. E o Kwai não possui sistema de contas vinculadas aos pais e responsáveis, sendo necessária apenas as suas autorizações. Não há política de restrição de conteúdo ou funções da plataforma conforme a idade.

Violações

Soma-se à questão dos conteúdos problemáticos a divulgação de publicidade infantil, vide o caso da divulgação das “bets”, as casas de apostas e jogos de azar, como o “Tigrinho”. A veiculação da publicidade infantil é, por si, vedada pela Resolução nº 163/2014, sendo ainda mais grave no caso dos jogos de azar, expressamente vedados para o público infantil pelo Anexo 10 do Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária (Conar).

A violação do Código de Defesa do Consumidor se dá pela ocorrência acidente ou falha de consumo, ou seja, o serviço prestado não atendeu a legitima expectativa de segurança do consumidor (vício de qualidade por insegurança, artigo 14 §1º). Isso ocorre, pois, dados de milhões de usuários são utilizados com o fim de promover o lucro ao custo da dependência de menores, ofendendo a dignidade do consumidor. Os usuários também ficam expostas a todo tipo de risco existentes nas redes sociais, como cyberbullying, assédio e violência infringindo por tabela o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD), pois faltaram como dever de proteção.

O Marco Civil da Internet (artigos 3º e 7º), por sua vez, é infringido pois as redes sociais não respeitam a inviolabilidade e a proteção da intimidade e da vida privada, sendo negligentes quanto à estabilidade, segurança e funcionalidade da Internet. De forma semelhante, também ocorre a violação da LGDP (artigos 2º, 6º, 14), pois há a falha no consentimento dos pais e responsáveis para a criação de contas e uso das redes sociais, uma vez que são frequentemente burlados ou inexistentes. Há também a violação à honra e à imagem, devido à exposição dos usuários aos conteúdos e ambientes inapropriados.

Spacca

Já o Estatuto da Criança e do Adolescente é violado em sua transversalidade nos artigos 3º, 4º, 5º, 6º 7º, 17, 18, 70, 71, 81. Perante todos os danos e infrações já mencionados, ocorrem danos à integridade física e psíquica prejudicando o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade, pois as plataformas não respeitam a condição peculiar de pessoa em desenvolvimento, ofertando produto que causa dependência psíquica, sem qualquer mecanismo de proteção, além de colocá-los em ambientes de possível condição vexatória ou constrangedora.

A interpretação conjunta dos artigos 4º, 5º e 6º do ECA levam à conclusão de que há uma corresponsabilidade de toda a sociedade perante o cuidado, o zelo e o desenvolvimento da criança e adolescente, para que eles tenham plenas condições de atingirem seu bem-estar e tenham seus direitos protegidos. Essa corresponsabilidade se estende, logicamente, às plataformas da Meta, do Tik Tok e do Kwai.

Nesse sentido, uma série de pedidos foram elaborados nas ações ajuizadas pelo Instituto Defesa Coletiva para corrigir as falhas que expõem o público vulnerável ao vício, às publicidades e aos conteúdos indesejáveis:

1 – as redes sociais devem estabelecer um limite máximo de uso considerável saudável com base nos parâmetros da SBP. Sugeriu-se que o tempo diário de uso seja de no máximo 2 horas para crianças entre 10 a 12 anos e de 3 horas para adolescentes de 13 a 17 anos;
2 – um sistema de alerta deve notificar tanto o menor quanto os responsáveis ao atingir 50% do tempo permitido e 90% (no caso de Tik Tok e Kwai) e, após atingir 100% do tempo, haverá o impedimento de acesso à rede social pelo restante do dia;
3 – é necessário que haja obrigatoriamente contas vinculadas às dos pais até o adolescente completar 18 anos, para facilitar o controle dos responsáveis. Sugere-se que todo tipo de autorização dos responsáveis deve conter mecanismos eficientes de verificação da veracidade e autenticidade para evitar que o menor tenha acesso aos conteúdos inapropriados;
4 – os mecanismos que estimulam o uso contínuo devem ser excluídos para usuários menores de 18 anos, como é o caso do autoplay (reprodução automática de vídeos).

Em caráter educativo, o Instituto Defesa Coletiva defende que sejam feitas campanhas de conscientização e contrapropaganda nos sites e redes sociais sobre os problemas de saúde gerados pelo uso exacerbado das plataformas digitais e os riscos dos jogos de aposta. Nossas ações visam à modificação do funcionamento das redes sociais para se adequarem ao melhor interesse da criança e do adolescente de forma plena. E, elas podem sim, ser o início de uma eficiente e responsável regulação brasileira para estabelecer limites e reforçar a ideia de que não é mais possível justificar crimes contra os mais vulneráveis em nome de uma falsa ideia de “liberdade de expressão”.

Autores

  • é advogada e presidente do Comitê Técnico do Instituto Defesa Coletiva, sócia fundadora do escritório Lillian Salgado Sociedade de Advogados e Diretora de Proteção de Dados dos Segurados do INSS do Ieprev, especialista em Ações Coletivas de Consumo, integra o Conselho Gestor do Fundo Estadual de Defesa do Consumidor de Minas Gerais.

  • é advogado pela PUC de Minas Gerais, pós-graduado em Gestão Estratégica de ESG pela UMA e especialista em Direito dos Negócios Internacionais pela Escola de Advocacia e Negócios Internacionais.

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