Opinião

Antídoto à cloroquina da execução penal: da resolução sobre exame criminológico (parte 2)

Autores

  • é defensor público do Estado do Rio de Janeiro especialista em Execução Penal e Direito Penitenciário pela Universidade de Barcelona doutor em Direito Penal pela UERJ pós-doutor em Direito Penitenciário junto à Universidade de Bolonha professor do curso de pós-graduação em Ciências Criminais e Segurança Pública da UERJ e professor do curso de pós-graduação em Ciências Penais da Ucam/RJ.

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  • é advogado criminalista mestre em Direito Penitenciário e Questão Carcerária pela Universidade de Barcelona (UB) especialista em Direito de Execução Penal (CEI) e em Direito Penal e Criminologia (PUC/RS) e professor de Direito de Execução Penal.

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3 de fevereiro de 2025, 6h02

Em continuação ao artigo publicado anteriormente, no qual abordamos questões relacionadas ao exame criminológico sob a perspectiva da Resolução 36 do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP), notadamente quanto à retroatividade, o prazo que deve ser respeitado, além de temas relacionados à equipe que deverá realizar o exame, a segunda parte se dedica ao conteúdo do exame e ao dever de observância às normas, temas estes, como se verá, garante o contraditório, a ampla defesa e estabelece limites de investigação do exame, evitando incursões desnecessárias.

O que deve (e não deve) constar no laudo?

A resolução também estabelece requisitos mínimos e vedações quanto ao conteúdo (artigo 8º). Deve remeter-se, de modo fundamentado, ao exame de ingresso, conforme previsto no artigo 8º da LEP, sem o qual torna-se inviável qualquer diagnóstico propriamente criminológico no futuro da execução (Sá, 2016, p. 224). Cuida-se de requisito obrigatório, sem o qual o exame torna-se inutilizável. Verdade dizer que o exame admissional caiu em desuso ao longo dos anos, por conta do intencional e sistemático abandono estatal quanto a busca pelos fins anunciados da pena. Talvez seja esse o momento para voltarmos a pensar mais na reintegração do apenado do que no seu mero isolamento/neutralização — ou abolirmos de vez o exame criminológico.

A regra de referência ao exame admissional é um reforço à irretroatividade da norma, uma vez que, na prática, o exame para a progressão somente poderá ser feito caso o Estado volte a realizar os exames admissionais.

Cada profissional em sua área específica deverá respeitar as resoluções e orientações técnico-éticas dos respectivos conselhos profissionais no tocante à produção de documentos escritos, atuação técnica no sistema prisional e nas relações com a justiça, tal como declarar a metodologia utilizada e considerar o caráter informativo do relatório circunstanciado e descritivo, com a apresentação dos processos de trabalho desenvolvidos ou em desenvolvimento pelos profissionais em relação à pessoa apenada.

Deverá não somente considerar a realidade histórica e social dos sujeitos a serem avaliados, mas também as condições objetivas relativas à realidade institucional, tal como considerar as determinações sociais e subjetivas relativas à vivência do cárcere e seus danos na condição de saúde, saúde mental e condições sociais da pessoa apenada e seus familiares. Essas instruções são indispensáveis para uma análise minimamente “real” do indivíduo, afinal, a prisão acaba por tomar muito mais do que o tempo da pessoa, muitas vezes ela é capaz de retirar sua própria identidade, efeito ao qual Goffman (2015) intitula de “mortificação do eu”, pois as pessoas perdem suas características individuais para se tornar números/pessoas com uma identidade submissa às instituições totais.

Spacca

Afinal, como já nos fazia questionar o saudoso professor Alvino Augusto de Sá (2016, p. 233) “como se exigir que o preso tenha uma visão consistente do que pretende em liberdade, se ele está sujeito aos rigores do cárcere?”

Esses são os elementos mínimos que devem constar no laudo. A resolução, por sua vez, estabelece outros fundamentos e análises que são terminantemente proibidos (artigo 9º).

O exame criminológico jamais poderá sugerir um prognóstico de risco de reincidência, isto é, não poderá indicar se a pessoa tem chance ou não de voltar a delinquir. A redação é indispensável, afinal, é impossível definir se a pessoa voltará ou não a delinquir. Não ao menos sem uma bola de cristal. Ocorre que, como mais uma vez explica Alvino Augusto de Sá (2010, p. 4-5) “O prognóstico de reincidência, em si, é hoje praticamente insustentável”. Seu posicionamento é acompanhado, por exemplo, pelo professor Aury Lopes Junior (2003) “qualquer prognóstico que tenha como mérito ‘probabilidades’ não pode, por si só, justificar a negação de direitos, visto que são hipóteses inverificáveis empiricamente”.

A já sem efeito Resolução do Conselho Federal de Psicologia 12/2011 vedava a elaboração de prognóstico criminológico de reincidência, a aferição de periculosidade e o estabelecimento de nexo causal a partir do binômio delito-delinquente. A Resolução foi anulada em sede de acórdão do TRF-4 nos autos da Ação Civil Pública nº 5028507-88.2011.4.04.7100, que concluiu que as condições subjetivas do apenado são relevantes para a implementação de direitos na execução, afirmando que cabe exclusivamente ao magistrado decidir se deve ou não exigir o exame criminológico no caso concreto, nos termos da Súmula Vinculante n. 26. Na perspectiva do acórdão, a avaliação se tornaria mecânica e poderia “desvirtuar o sistema progressivo” trazendo insegurança à comunidade e à “ressocialização” do infrator. Finalmente, esclareceu que sem a prognose de reincidência, o papel do exame criminológico se esvaziaria (Shimizu; Rodrigues, 2022).

Também é vedado o emprego de conceitos ou termos indeterminados, especialmente de conteúdo estigmatizante. Já é previsto no artigo 489, § 1º, II do Código de Processo Civil que “não se considera fundamentada qualquer decisão judicial, seja ela interlocutória, sentença ou acórdão, que empregar conceitos jurídicos indeterminados, sem explicar o motivo concreto de sua incidência no caso”, e aqui vale a mesma lógica. Quanto ao emprego de termos de conteúdo estigmatizante, a medida busca romper com o círculo promovido pelo próprio Estado de manutenção do estado. O examinador jamais deverá usar termos para denominar a pessoa examinada fugindo da sua individualidade particular, ou seja, não poderá empregar termos como “bandido”, “ladrão”, “condenado” e outros, mas sim chamá-lo pelo nome, de “examinado”, de “pessoa” ou outro termo que não perpetue a visão do Estado sobre ele.

Não poderá também estabelecer nexos causais pautados no determinismo do binômio delito-delinquente. Como explica Shimizu e Rodrigues (2022), o exame criminológico pode ser entendido como uma espécie de exame de personalidade. A exposição de motivos, contudo, afirma que o exame de personalidade, em sentido amplo, possibilitaria uma apreciação mais geral acerca da subjetividade do indivíduo, que iria para além da análise da dinâmica do crime cometido e do binômio delito-delinquente. Isto é, o exame criminológico, por mais que possa examinar o passado criminoso, seu objetivo é analisar o subjetivo do examinado e não poderá, jamais, ser determinante, estabelecendo nexo entre o delito e o examinado. A vedação busca evitar determinismos.

Acompanhando a jurisprudência há muitos anos formada pelo Superior Tribunal de Justiça e Supremo Tribunal Federal, o laudo jamais poderá utilizar como fundamento a gravidade abstrata do delito ou o tempo de pena a cumprir (artigo 9º, IV). Comum utilizar termos como “condenado por crime de roubo”, “condenado por crime hediondo”, relacionados à gravidade abstrata da conduta e ao preceito primário do tipo penal, ou ainda, “condenado a uma longa pena de X anos”, “resta ainda X anos de pena a cumprir”, que fazem referência à pena aplicada. Esses termos jamais podem ser utilizados, sob pena, inclusive, de incorrer em bis in idem, por mais uma vez além da própria existência da pena, se valer desses mesmos fundamentos em um exame que busca a progressão de regime. A questão temporal também guarda especial relevância, por já existirem requisitos objetivos específicos para cada progressão de regime, que levam em conta cada uma das circunstâncias.

Pelos mesmos motivos a Resolução estabelece limite de incursão do exame ao próprio evento delitivo ao proibir fundamento relacionado às circunstâncias, ainda que concretas, do delito pelo qual foi acusado/condenado (artigo 9º, IV). Texto extremamente importante, ao passo que busca e reafirma a necessidade de o exame avaliar o subjetivo da pessoa e não propriamente o crime cometido.

Existem certas perguntas cujas respostas podem ser imutáveis, como por exemplo a percepção do examinado sobre o crime cometido ou a justiça sobre a pena aplicada, quando o examinado sustentou sua inocência desde o início das investigações. Sobre isso, é garantido ao examinado a afirmação de inocência, sem que seja levado em prejuízo (artigo 6º). Isto é, poderá manter-se coerente às versões defendidas durante a instrução, sem que lhe cause prejuízos.

Para o professor Alvino Augusto de Sá que alguns fatores analisados pelo exame criminológico são imutáveis, como a própria ocorrência do crime, “por conseguinte, já estariam presentes quando da prática delitiva, então há de se concluir que, o preso que hoje não tem condições de obter o benefício, nunca as terá, e que o preso que hoje tem condições, sempre as teve e sempre as terá” (2016, p. 231).

Finalmente, ao examinador será vedado sugerir classificação de segurança da pessoa examinada (artigo 9º, V), a exemplo de termos comumente utilizados e sem nenhum critério científico “pessoa com alto grau de periculosidade” ou “interno de alto risco”. Há um estacionamento imaginário de gravidade ou risco, distante de qualquer possibilidade real de quantificação.

Esses limites, tanto referentes ao conteúdo obrigatório quanto o fundamento vedado são balizas que aproximam o Exame Criminológico daquilo que se propôs a ser desde o início, um instrumento para avaliar a pessoa em cumprimento de pena, o efeito da pena sobre ela, suas expectativas para o futuro, o acolhimento extramuros e outras questões relevantes, distanciando, necessariamente, do fato delituoso, afinal, com base nesse fato que a pena foi aplicada de forma individual, que traz consigo todo o peso normativo do tipo penal, além da natureza, se hediondo ou não, e outras temáticas que, se eventualmente valoradas nesta fase, traduziriam em verdadeiro bis in idem.

Antídoto amargo

E para quem cogite a possibilidade de não observar a Resolução editada pelo CNPCP, como tem sido feito, por exemplo, por vários Juízes do TJ-SP (a exemplo dos autos 0009288-64.2018.8.26.0996) sob argumento de que o órgão não detém de competência para tanto, fica um alerta necessário, ele tem.

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Ministro apontou que caso de réu pronunciado por ter voz reconhecida não atingiu o patamar mínimo probatório para ser levado a julgamento

Ao Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, no exercício de suas atividades, em âmbito federal ou estadual, incumbe propor diretrizes da política criminal quanto à prevenção do delito, administração da Justiça Criminal e execução das penas e das medidas de segurança (LEP, artigo 64, I; Decreto nº 11.348, artigo 69). O conceito da palavra diretriz é justamente o que confere ao órgão a competência para traçar um “procedimento operacional padrão” no que tange ao exame criminológico, vez que consiste em uma linha ou conjunto de normas que orientam o desenvolvimento de um trabalho ou projeto, estabelecendo objetivos claros.

A Resolução ainda estabelece consequência em caso de desrespeito (artigo 1º, § 2º) ao afirmar que “A inobservância às regras instituídas na presente Resolução invalida o exame criminológico e impossibilita seu uso para impedir a progressão de regime prisional”.

E ainda podemos ir mais além, a utilização do exame criminológico fora desses parâmetros pode caracterizar crime de abuso de autoridade.

Lei de Abuso de Autoridade. Art. 25. […] Parágrafo único. Incorre na mesma pena quem faz uso de prova, em desfavor do investigado ou fiscalizado, com prévio conhecimento de sua ilicitude. Pena de detenção de 1 a 4 anos e multa.

Acreditamos, no entanto, que será o Supremo Tribunal Federal que decidirá, finalmente, sobre o tema, diante da regra prevista no artigo 22 da Constituição Federal.

Considerações finais

A Resolução 36 do CNPCP veio em tempo para estabelecer standard mínimo de garantia para realização do exame criminológico, cujas normas devem ser aplicadas imediatamente. Mais do que um conjunto de regras, a Resolução introduz consequências concretas em caso de descumprimento, sinalizando um avanço importante no enfrentamento das arbitrariedades históricas associadas à aplicação do exame.

Se o exame é por muitos juízes utilizado como “voz de autoridade” ou “muleta argumentativa”, a Resolução tem o potencial de transformar essa “muleta” em um apoio minimamente estável e seguro, garantindo critérios objetivos e técnicos que possam embasar decisões judiciais de forma mais justa e consistente.

Ainda que editada com tons utópicos, como evidencia a realidade precária das unidades prisionais no Brasil, a Resolução 36 representa um marco normativo que não pode ser ignorado. Dados alarmantes, como o fato de apenas 0,4% das unidades prisionais contarem com médico(a) psiquiatra e 33% não disporem de psicólogos ou assistentes sociais, evidenciam que a implementação plena da resolução enfrentará desafios estruturais significativos.

A resolução também tem o mérito de exigir maior coordenação entre a administração penitenciária local e o juízo da execução penal competente, promovendo uma interação institucional que pode contribuir para a eficiência e a qualidade das decisões judiciais.

Além disso, ao garantir o efetivo contraditório e a ampla defesa na produção da prova, a norma combate a prática do “contraditório diferido”, trazendo maior transparência ao processo. Esse aspecto é particularmente relevante para assegurar que o exame criminológico não seja utilizado de forma arbitrária, mas sim como uma ferramenta técnica e confiável.

Diante disso, é imprescindível que continuemos a valorizar e defender a importância da Resolução 36 do CNPCP, ressaltando sua relevância e lutando para que suas regras sejam efetivamente cumpridas. Apesar dos desafios, ela representa um passo fundamental para a humanização e a qualificação do sistema de execução penal, bem como para a proteção dos direitos das pessoas privadas de liberdade. O caminho será árduo, mas a Resolução deve ser vista como uma oportunidade concreta de mudança e progresso, que não pode ser desperdiçada.

 


Bibliografia

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SHIMIZU, Bruno; GOUVÊA POSSIDONIO RODRIGUES, Carolina. O exame criminológico como instrumento do binômio saber-poder: judicialização da resolução n°012/2011 do Conselho Federal de Psicologia. Revista de Direitos Humanos e Desenvolvimento Social, [S. l.], v. 3, p. 1–26, 2022. DOI: 10.24220/2675-9160v3e2022a6516. Disponível em: https://seer.sis.puc-campinas.edu.br/direitoshumanos/article/view/6516. Acesso em: 27 nov. 2024.

SIMÃO, Diego Azevedo. Lei de execução penal comentada e anotada. 1. ed. Belo Horizonte: D’Plácido, 2022.

VALOIS, Luis Carlos. processo de execução penal e o estado de coisas inconstitucional. Belo Horizonte: D’Plácido. 2019.

Autores

  • é defensor público (RJ), doutor em Direito Penal pela Uerj, especialista em Execução Penal e Direito Penitenciário pela Universidade de Barcelona e pós-doutor em Direito Penitenciário junto à Universidade de Bolonha.

  • é advogado criminalista, mestre em Direito Penitenciário e Questão Carcerária pela Universidade de Barcelona (UB), especialista em Direito de Execução Penal (CEI) e em Direito Penal e Criminologia (PUC/RS) e professor de Direito de Execução Penal.

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