Direito da Insolvência

A decadência e a habilitação do crédito público na falência

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  • é promotor de Justiça de Falências da Capital (SP) bacharel pela USP pós-graduado pela FMU-SP e master in laws-LLM pela Washington University St. Louis (EUA).

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3 de fevereiro de 2025, 8h00

Certa vez e, há muito, quando ainda estudante universitário, ouvi de um ilustrado magistrado – figura de relevo do Tribunal de Justiça de São Paulo atualmente — a seguinte assertiva: “faz-se necessário pôr o Direito na dinâmica da vida, sob pena de não servir para nada”.

ConJur

Assim, e com o fito de tentar subsumir a frase à prática jurídica, tomo, de início, a alteração contida no artigo 10, §10, da Lei nº 11.101/2005, proveniente da Lei nº 14.112/2020, versando o prazo decadencial para a habilitação do crédito na falência. Aliás, em artigo anterior deste subscritor, foram pinceladas algumas linhas sobre o aludido dispositivo [1].

O artigo 10, § 10, da Lei 11.101/2005, incluído pela Lei 14.112/2020 e com vigência a partir de 23/1/2021, dispõe que o credor deverá apresentar o pedido de habilitação ou de reserva até no máximo três anos contados da publicação da sentença de quebra. Pontue-se consideravelmente sedimentada no TJ-SP e no Superior Tribunal de Justiça a aplicação da decadência às habilitações de crédito propostas após a entrada em vigor das alterações empreendidas pela Lei nº 14.112/2020 [2].

Na esteira dessas modificações constantes da Lei nº 14112/2020 sobressai, igualmente, a concernente à disciplina do crédito fiscal, pois o legislador estatuiu o incidente de classificação do crédito público – “ICCP” (artigo 7º – A da Lei nº 11.101/05).

Do cotejo entre a decadência para o ajuizamento das habilitações e o ICCP voltado ao crédito fiscal, surge o questionamento: para o ICCP também vigora o prazo trienal previsto no artigo 10, parágrafo 10, inserido pela Lei nº 14.112/20; ou seja, aplica-se a decadência à Fazenda em relação à tramitação do ICCP?

Essa indagação, portanto, leva à necessidade de inserção do “Direito na dinâmica da vida”. Ainda que num primeiro momento a questão passe despercebida, na eclosão da “vida forense” a perquirição pode emergir.

Mas antes de confrontar as teses existentes, saliente-se que a norma do artigo 10, § 10, da Lei 11.101/2005, “tem por finalidade a celeridade do processo concursal, mas, principalmente, sua eficácia. A meta essencial é evitar feitos que se esparramem pelo tempo, infindos, fazendo com que a solução da crise seja excessivamente custosa. Portanto, em face da decretação da falência, cria-se um dever de proficiência, de proatividade, um dever de iniciativa e acuro, sob pena de se caducar o direito respectivo[3].

Conforme lição de Marcelo Barbosa Sacramone, “a inserção do prazo de decadência é harmônica com a extinção das obrigações do devedor falido. Conforme disposto no art. 158, V, a extinção das obrigações do falido ocorrerá no prazo de três anos contado da decretação da falência” [4].

Consigne-se que a decadência prevista no artigo 10, §10 diz respeito exclusivamente ao direito de habilitar o crédito na falência e, portanto, transcorrido o prazo decadencial, o crédito deixa de ser exigível somente em face daquela massa falida em sentido estrito; o devedor solidário, os sócios ou outros responsáveis que estejam respondendo por aquele montante não serão atingidos.

Com relação ao crédito público, a inovação na Lei nº 14.112/2020 permite que o juiz instaure, de ofício, para cada Fazenda Pública credora, o incidente de classificação, diversamente do sistema anterior em que exclusiva a iniciativa do ente fazendário; isso sem falar na aplicação o artigo 187 do CTN relativo à dispensa da Fazenda Pública em promover a habilitação do seu crédito [5].

Evidente que a forma de ingresso do crédito fazendário no certame falimentar rompe com o sistema anterior ao se estatuir mecanismo próprio, ou seja, incidente exclusivo para o Fisco a ser instaurado de ofício pelo juízo.

Considerável a diferença entre o regime estabelecido para o credor fazendário em relação às outras categorias: para o fazendário aplica-se o artigo 7º-A, com a instauração de ofício do ICCP; os demais têm de se valer do contido nos artigos 9º e 10º da Lei nº 11.101/2005.

Ao contemplar outro modelo procedimental para a persecução do crédito fiscal, em tese, não há como admitir a aplicação do artigo 10, §10, da Lei nº 11.101/2005, que incide às demais categorias de credores. Referido elastério se afigura descabido até porque a regra é específica e comporta interpretação restritiva.

O prazo decadencial é inerente às habilitações de crédito para as demais categorias, eis que excepcionado o crédito público, a ser perseguido por intermédio da instauração do ICCP.

Com a costumeira precisão, Maria Rita Rebello Pinho Dias e Fernando Antonio Maia da Cunha ensinam:

A decadência macula não a pretensão obrigacional de uma determinada pessoa, mas sim de determinado poder que possui de intervir na esfera jurídica de outrem. Isso significa dizer que o prazo decadencial previsto no artigo 10, §10 da LREF importa na perda do direito processual do poder habilitar o crédito na falência e, portanto, de participar do procedimento concursal da falência[6]

Obstaculizada a possibilidade de o credor participar do certame falimentar se inerte, fortalece-se a inaplicabilidade desse dispositivo às Fazendas, não só em virtude da prevalência do ICCP, mas também pela ausência de compulsoriedade no manejo de habilitação, conforme se infere do artigo 187 do CTN.

Em continuação ao assunto, os citados autores preconizam que “muito embora o Código Tributário Nacional-CTN seja formalmente lei ordinária, Lei n. 5.172/66, é considerado como equiparado a lei complementar, tendo em vista o disposto no artigo 146, III, da Constituição Federal de 1988, promulgada posteriormente ao primeiro, uma vez que traz normais gerais de Direito Tributário. Consequentemente, ainda que a Lei n. 11.101/05 seja posterior e especial, não derroga o quanto disposto no CTN, visto que este é considerado norma hierarquicamente superior” [7].

No mesmo sentido:

“O Código Tributário Nacional é veiculado mediante lei ordinária (Lei n. 5.172, de 1966). Editado à luz da Constituição de 1946, esta não previa a lei complementar como espécie legislativa, que somente foi introduzida em nosso ordenamento jurídico com o advento da Constituição de 1967 (art. 18, §1º.). Sobrevieram-lhe, ainda, a EC n. 1, de 1969, e a Constituição de 1988, mantendo tal previsão. O Código tem sido, desse modo, recepcionado pelos sucessivos textos constitucionais na qualidade de lei complementar.

Portanto, por força do disposto no art. 146, III, CR, ostenta o status de lei complementar, somente podendo ser alterado ou revogado mediante essa espécie legislativa” [8]

Habilitação retardatária

Contudo, ainda pode subsistir dúvida sobre a inflição da decadência, pois do caput do artigo 7º-A da Lei nº 11.101/2005 pode-se inferir que o ICCP se justifica, apenas, para as Fazendas credoras (§1º), ou seja, aquelas que constem do edital previsto no § 1º do artigo 99 da Lei nº 11.101/2005, ou que, após a intimação prevista no inciso XIII do caput do artigo 99 desta mesma lei, demonstre, no prazo de 15 dias, possuir crédito contra a massa falida; após esse prazo, a Fazenda se sujeitaria ao procedimento traçado no artigo 10, referente à habilitação de crédito retardatária.

Deste modo, ao se instaurar o ICCP, se a Fazenda Pública credora não informar os valores no prazo de 30 dias, disto resulta o arquivamento do incidente, sem prejuízo de eventual pedido de desarquivamento, aplicando-se, nesta última hipótese e no que for possível, o disposto no artigo 10 da Lei nº 11.101/2005; em última análise, se a Fazenda não se pronunciar no prazo alvitrado, deverá se submeter e, se desejar, à habilitação retardatária.

Acerca disso, pontifica Manoel Justino Bezerra Filho:

“O caput do art.7º.-A estabelece que o juiz, de ofício, instaurará um incidente de classificação de crédito público para cada Fazenda; ou seja, quatro incidentes, respectivamente, para a Fazenda Pública Federal, Estadual, Municipal e Territorial. Pode ocorrer, tomemos por exemplo, que nenhuma Fazenda Pública Municipal se manifeste no prazo de 30 dias estipulado pela Lei. Nesse caso, o juiz determinará o arquivamento do incidente. Se posteriormente alguma Fazenda Pública Municipal quiser apresentar relação de crédito existente, pedirá o desarquivamento do incidente e procederá como se procede para habilitação de crédito retardatário ou intempestivo, conforme previsto no art.10[9].

Apesar da judiciosa postura do festejado professor, o entendimento se mostra contraditório, mormente quando confrontado com a proeminência do CTN em relação à Lei nº 11.101/05, como adrede ressaltado.

Para tanto e, com o amparo de Marcelo Barbosa Sacramone [10], conclui-se pela impossibilidade da decadência em face da Fazenda Pública:

“A cobrança do crédito tributário em face da Massa Falida não era disciplinada pela Lei n. 11.101/2005 diante da exigência de tratamento das normas gerais em matéria tributária por leis complementares, nos termos do art. 146 da Constituição Federal. Nesse aspecto, o Código Tributário Nacional estabelece que a cobrança judicial dos créditos tributários não se sujeita a concurso de credores ou a habilitação em falência ou recuperação judicial, de modo que poderia prosseguir normalmente, nos termos do art.187 do Código Tributário Nacional (CTN).

A alteração da Lei n.11.101/2005 pela Lei n. 14.112, de 24 de dezembro de 2020, desconsiderou referida hipótese e passou a versar sobre a competência da lei complementar. Nesse aspecto, foi determinada, no art.7º.-A, inciso V, da Lei n. 11.101/2005, a suspensão das execuções fiscais até o encerramento da falência, sem prejuízo da possibilidade de prosseguimento das execuções contra os corresponsáveis.

A determinação de suspensão das execuções fiscais, nesse ponto, não apenas revoga o CTN, como é considerada inconstitucional, por afrontar matéria restrita à legislação complementar”.

Com efeito, a partir do momento que a Fazenda Pública não precisa se submeter ao concurso falimentar para satisfação de seu crédito (cf. artigo 187 do CTN), descabida sua equiparação aos demais credores, sujeitos ao procedimento dos artigos 9º e 10º da Lei nº 11101/2005. E em virtude disso, se se quedar inerte, não sofrerá os efeitos da decadência no ajuizamento do incidente.

Ainda que o legislador ordinário tenha ultrapassado os limites de sua competência ao invadir a esfera de lei complementar – ao disciplinar o novel incidente para tratamento do crédito público (o ICCP) –, inequívoca a intenção de conferir ao credor fazendário a possibilidade de utilização de ferramenta diversa dos demais credores, sem que tenha de se cingir ao regramento dos artigos 9º. e 10º. da Lei n.11101/2005.

E se a Fazenda não observar os prazos contidos no artigo 7º-A da Lei nº 11101/05 para cabal consecução do ICCP resta-lhe, ainda, a via do executivo fiscal ou da reserva de valor; logo, não será penalizada com a decretação da decadência, ainda que transcorrido o prazo trienal constante do artigo 10, §10, da Lei nº 11.101/2005.

Obtempere-se que a decadência para o ajuizamento de habilitação ora analisada não se confunde com a dos artigos 156 e 173 do Código Tributário Nacional (CTN) que, em apertadíssima síntese, atinge o crédito por completo e não, somente, a iniciativa do Fisco para ingressar no concurso falencial.

Em função da distinção no tratamento entre os credores e seus respectivos instrumentos para veiculação de suas pretensões, e havendo procedimento concebido especialmente para o ingresso do crédito fiscal, inviável a aplicação do prazo decadencial do artigo 10, §10 da Lei nº 11.101/05 em prejuízo da Fazenda Pública.

 


[1] https://www.conjur.com.br/2024-set-09/contribuicoes-pontuais-para-a-celeridade-do-processo-de-insolvencia/

[2]  AGRAVO DE INSTRUMENTO. FALÊNCIA. Decisão que indeferiu o pleito de declaração de decadência dos créditos que não foram objeto de habilitação depois de transcorrido o prazo de 3 anos de vigência da Lei n.º 14.112/2020. Prazo decadencial do art. 10, §10, da Lei n.º 11.101/2005 antes inexistente. Aplicabilidade imediata com termo inicial na data da vigência da lei que o instituiu. Segurança jurídica. DECISÃO REFORMADA. RECURSO PROVIDO (TJSP, Relator(a): AZUMA NISHI Comarca: São Paulo Órgão julgador: 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial Data do julgamento: 26/07/2024 Data de publicação: 26/07/2024)

HABILITAÇÃO DE CRÉDITO – Decisão que declarou a decadência do direito, com fundamento no art. 10, §10, da Lei n. 11.101/2005, com a redação dada pela Lei nº 14.112/2020 – Impossibilidade de contagem do prazo decadencial antes da vigência da própria lei que o instituiu – Princípio da segurança jurídica que deve ser observado – Precedentes – Afastada a decadência e determinado o processamento da habilitação de crédito – Agravo provido (TJSP, Relator(a): Rui Cascaldi Comarca: São Paulo 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial Data do julgamento: 19/07/2024 Data de publicação: 19/07/2024)

RECURSO ESPECIAL. EMPRESARIAL. FALÊNCIA. HABILITAÇÃO DE CRÉDITO. DECADÊNCIA. PRAZO TRIENAL. TERMO INICIAL. INTELIGÊNCIA DO ARTIGO 10, § 10, DA LEI Nº 11.101/2005.  1. A questão controvertida resume-se a definir qual o termo inicial do prazo trienal para habilitação de crédito nas hipóteses em que a falência foi decretada antes da vigência da Lei nº 14.112/2020. 2. Antes das alterações promovidas na Lei de Falência em 2020, era possível promover a habilitação retardatária do crédito até o encerramento da recuperação judicial ou da falência.  3. A Lei nº 14.112/2020 introduziu o artigo 10, § 10, na Lei nº 11.101/2005, o qual estabeleceu o prazo de 3 (três) anos, a contar da data em que decretada a quebra, para o ajuizamento das habilitações e pedidos de reserva de crédito, sob pena de decadência. 4. No caso das falências decretadas antes da vigência da Lei nº 14.112/2020, o prazo a que alude o artigo 10, § 10, da Lei nº 11.101/2005 deve ter como termo inicial a data de entrada em vigor da Lei nº 14.112/2020. 5. Recurso especial provido. (STJ, 3ª. Turma, REsp 2110265 – SP, rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, j.24.09.2024)

[3] GLADSTON MAMEDE in Direito Empresarial Brasileiro – Falência e Recuperação de Empresas, 13ª Edição, Atlas, p. 101

[4] in Comentários à Lei de Recuperação de Empresas e Falências, 5ª Edição, 2024, SaraivaJur, p. 99

[5]     Art. 187. A cobrança judicial do crédito tributário não é sujeita a concurso de credores ou habilitação em falência, recuperação judicial, concordata, inventário ou arrolamento

[6] In Comentários à Lei de Recuperação de Empresas e Falência, ed. ContaCorrente, 2022, pág.196.

[7] In Comentários à Lei de Recuperação de Empresas e Falência, ed. ContaCorrente, 2022, pág.169, grifo nosso.

[8] REGINA HELENA COSTA in Curso de Direito Tributário, 3ª. edição, Ed. Saraiva, 2013, pág.164.

[9] In Lei de Recuperação de Empresas e Falência, comentada artigo por artigo, 15ª. edição, RT, pág.122, grifo nosso

[10] In Comentários à Lei de Recuperação de Empresas e Falência, 2ª. edição, 2021, SaraivaJur, pág.117/118.

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