Opinião

Resolução CNJ nº 591/2024: seria o fim da sustentação oral?

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2 de fevereiro de 2025, 9h24

É célebre a frase atribuída a Sobral Pinto, segundo a qual “a advocacia não é profissão de covardes”. Nessa linha, ao descrever o exercício da advocacia, o gaúcho João Neves da Fontoura a qualifica como “profissão que não se exerce, em sua plenitude, sem qualidades excepcionais, que vão da cultura e inteligência até a bravura e a infatigabilidade” [1]. Definitivamente, a coragem, a bravura e a infatigabilidade forjam o advogado, sobretudo diante dos obstáculos diários que este se depara ao exercer sua profissão — a maioria impostos pelo próprio Estado.

Reprodução
advogado advocacia sustentação oral

Essa realidade é retratada com muita clareza pelo filme Ainda Estou Aqui, dirigido por Walter Salles e protagonizado por Fernanda Torres, o qual já garantiu inédita estatueta do Globo de Ouro e irá levar o cinema brasileiro ao Oscar após 25 anos. No caso, o advogado Lino Machado, interpretado pelo ator Thelmo Fernandes, defendeu árdua e corajosamente os interesses do deputado Rubens Paiva e de Eunice Paiva após a prisão do casal, chegando a impetrar o HC nº 30.381/RJ e o HC nº 30.379/RJ no antigo STM. Em resumo, enquanto o de Eunice perdeu o objeto por sua soltura após 12 dias de prisão, o de Rubens Paiva foi denegado sob o falso argumento de que este estaria foragido, tratando-se de ardil criado pelo Exército para ocultar o seu assassinato [2].

Infelizmente, as prerrogativas dos advogados não são restringidas apenas em períodos autoritários. Relembre-se que, mesmo com a promulgação da CF/88, responsável por atribuir status constitucional ao exercício da advocacia (artigo 133 da CF/88), tais prerrogativas continuam sendo gravemente cerceadas. A operação “lava jato” — com seus grampos ilegais em escritórios profissionais, ausência de acesso aos autos, etc. — se tornou um exemplo disso, cujas práticas heterodoxas continuam sendo reproduzidas. Recentemente, com a massiva virtualização dos atos judiciais, o alvo da vez é o direito à sustentação oral, o qual está na mira dos tribunais superiores.

Afinal, o que diz a Resolução CNJ nº 591/2024?

No final do ano passado, o CNJ aprovou a Resolução CNJ nº 591/2024, que “estabelece requisitos mínimos para a realização de sessões de julgamento eletrônico no Poder Judiciário” (artigo 1º, caput, da Resolução CNJ nº 591/2024), entendendo-se “por sessão de julgamento eletrônico aquela ocorrida em ambiente virtual de forma assíncrona” (artigo 1º, p. ú., da Resolução CNJ nº 591/2024).

Grosso modo, a sessão virtual assíncrona não pressupõe imediatidade – v.g. “tempo real” –, sendo que a sustentação oral se restringe a uma mídia, em formato de áudio ou vídeo, encaminhada ao Colegiado, cuja reprodução sequer é assegurada pelo Poder Judiciário. Inicialmente, a Resolução CNJ nº 591/2024 entraria em vigor no dia 3/2/2025, tratando-se, também, de prazo limite para que os Tribunais compatibilizassem suas normas internas com a nova resolução (artigo 16 da Resolução CNJ nº 591/2024).

Sucede que, após uma ação coordenada entre o Conselho Federal da OAB e Seccionais, assim como em razão de múltiplos pedidos de prorrogação apresentados pelos tribunais do Brasil afora, o ministro Luís Roberto Barroso, na condição de presidente do CNJ, ampliou o prazo de entrada em vigor da Resolução CNJ nº 591/2024 em diversos tribunais [3]. Na ocasião, pontuou-se que “[a] Resolução não inovou quanto a esta forma de deliberação, nem tornou esse tipo de julgamento obrigatório, mas apenas previu requisitos mínimos a serem adotados caso os tribunais optem por sua utilização, sendo-lhes possível, no exercício de sua autonomia, restringir as hipóteses de cabimento de sessões assíncronas” [4].

A esse respeito, analisando detidamente o conteúdo normativo da Resolução CNJ nº 591/2024, vê-se que o problema não é a Resolução CNJ nº 591/2024 em si, mas sim o que os demais tribunais farão a partir dela; mais precisamente, como os Tribunais a regulamentarão. Isso porque, ao contrário da atual redação do artigo 21-B, caput e § 3º, do RISTF e do artigo 184-A, § 1º e § 4º, do RISTJ – os quais só conferem aos julgadores a legitimidade para pedir destaque e retirar o processo de eventual sessão virtual –, o artigo 8º, II, da Resolução CNJ nº 591/2024 permite que as partes e o Ministério Público apresentem pedido de destaque, opondo-se ao julgamento virtual assíncrono, desde que tempestivamente e deferido pelo relator:

“Art. 8º Não serão julgados em ambiente virtual os processos com pedido de destaque feito: […]

II – por qualquer das partes ou pelo representante do Ministério Público, desde que requerido até 48 (quarenta e oito) horas antes do início da sessão e deferido pelo relator.”

Como se vê, é incontroverso que os advogados possuem legitimidade para pedir destaque e retirar o processo de eventual sessão virtual assíncrona. Talvez, o único problema pode vir a ser a locução “deferido pelo relator”; afinal, a partir dela, eventual relator pode indeferir o pedido de destaque apresentado pela parte. Entretanto, considerando que o próprio artigo 8º, II, da Res-CNJ nº 591/2024 não elenca nenhum requisito na apresentação do pedido de destaque, o fundamento utilizado pelo advogado deve ser a realização de sustentação oral síncrona, seja presencial ou por videoconferência, tratando-se de fundamento incapaz de ser indeferido, sob pena de deturpar o artigo 7º, XII, da Lei nº 8.906/94 (Estatuto da Advocacia), artigo 937 do CPC e artigo 630 do CPP – os quais regulamentam o direito à sustentação oral –, bem como o próprio artigo 8º, II, da Res-CNJ nº 591/2024.

Além disso, ao dispor sobre sua implementação no âmbito do Poder Judiciário, a Resolução CNJ nº 591/2024 exigiu que os tribunais adaptassem suas normas internas com a nova resolução (artigo 16, p. ú., da Res-CNJ nº 591/2024 [5]). Ou seja, os tribunais deverão permitir que as partes apresentem oposição aos julgamentos virtuais assíncronos, sob pena de violar o artigo 8º, II, da Resolução CNJ nº 591/2024. Nessa linha, a recente decisão do ministro Luís Roberto Barroso, o qual permitiu que os tribunais restrinjam a amplitude das sessões virtuais assíncronas, mas jamais a ampliem, sobretudo em contraposição à Resolução CNJ nº 591/2024:

“A Resolução não inovou quanto a esta forma de deliberação, nem tornou obrigatório esse tipo de julgamento. Limitou-se a prever requisitos mínimos a serem adotados caso os tribunais optem por sua utilização, permitindo que, no exercício de sua autonomia, restrinjam as hipóteses de cabimento de sessões assíncronas.”

Logo, à primeira vista, embora regulamentando as sessões virtuais assíncronas, parece que a Resolução CNJ nº 591/2024 deu uma sobrevida ao direito à sustentação oral, porquanto permitiu que as partes se opusessem aos julgamentos virtuais assíncronos, bem como vedou que os tribunais regulamentassem referida resolução em contraposição ao seu conteúdo, a exemplo do direito previsto no artigo 8º, II, da Resolução CNJ nº 591/2024. Afinal, o problema não é o fato de haver sessões virtuais assíncronas — o que é inevitável, à vista do vertiginoso aumento do número de processos —, mas sim na impossibilidade de as partes apresentarem oposição a tal modalidade de julgamento, o que foi permitido pelo artigo 8º, II, da Resolução CNJ nº 591/2024. A dúvida, porém, é uma só: com a futura entrada em vigor da Resolução CNJ nº 591/2024, qual o futuro do artigo 21-B, caput e § 3º, do RISTF e do artigo 184-A, § 1º e § 4º, do RISTJ?

A (i)legalidade do artigo 21-B, caput e § 3º, do RISTF e artigo 184-A, §§ 1º e 4º, do RISTJ

Atualmente, tanto o STF como o STJ não permitem que as partes se oponham às sessões virtuais assíncronas, vide o artigo 21-B, caput e § 3º, do RISTF e o artigo 184-A, § 1º e § 4º, do RISTJ, atribuindo única e exclusivamente ao relator o poder discricionário de incluir ou não o caso em sessão virtual assíncrona, bem como limitando a legitimidade para apresentar pedido de destaque aos julgadores:

“Art. 21-B. Todos os processos de competência do Tribunal poderão, a critério do relator ou do ministro vistor com a concordância do relator, ser submetidos a julgamento em listas de processos em ambiente presencial ou eletrônico, observadas as respectivas competências das Turmas ou do Plenário.

[…]

§3º No caso de pedido de destaque feito por qualquer ministro, o relator encaminhará o processo ao órgão colegiado competente para julgamento presencial, com publicação de nova pauta.”

“Art. 184-A. […]

§1º Todos os recursos e demais processos de competência do Tribunal poderão, a critério do relator, ser submetidos a julgamento em listas de processos em ambiente eletrônico assíncrono, com exceção dos processos autuados nas seguintes classes:

I – Ação Penal Originária (APn);

II – Inquérito Originário (Inq);

III – Queixa Crime (QC);

IV – Embargos de Divergência em Recurso Especial (EREsp) e Embargos de Divergência em Agravo em Recurso Especial (EAREsp) quando a proposição de qualquer Ministro integrante do colegiado seja de enfrentamento do mérito do recurso.

[…]

§4º No caso de pedido de destaque feito por qualquer Ministro, o relator encaminhará o processo ao órgão colegiado competente para continuidade do julgamento em ambiente síncrono, com publicação de nova pauta, computando-se os votos proferidos pelos Ministros que não componham mais o Tribunal ou o órgão colegiado.”

Como se viu, tais dispositivos vão de encontro ao artigo 8º, II, da Resolução CNJ nº 591/2024, o qual atribui às partes, incluindo o advogado (não apenas aos julgadores), a legitimidade para pedir destaque e, portanto, retirar eventual processo de sessão virtual assíncrona, incluindo-o em sessão telepresencial ou presencial. Todavia, afora o artigo 21-B, caput e § 3º, do RISTF e o artigo 184-A, § 1º e § 4º, do RISTJ estarem em plena vigência, o STJ aprovou a recente Resolução STJ nº 3/2025, como forma de regulamentar a Resolução CNJ nº 591/2024. Na ocasião, o STJ assumiu postura ambígua.

Afinal, enquanto o artigo 2º da Res-STJ nº 3/2025 [6] faz expressa referência ao artigo 184-A do RISTJ – o qual permite apenas ao relator inserir e retirar os processos das sessões virtuais, ressalvadas as ações penais, inquéritos policiais e queixas-crimes originárias ‘–, o artigo 10, II, da Resolução STJ nº 3/2025 [7] repristina o artigo 8º, II, da Resolução CNJ nº 591/2024, facultando às partes apresentar pedido de destaque, em ordem a retirar o processo de eventual sessão de julgamento eletrônico.

Spacca

Porém, na contramão da manutenção da vigência do artigo 21-B, caput e § 3º, do RISTF e do artigo 184-A, § 1º e § 4º, do RISTJ, assim como da postura ambígua do STJ na novel  Resolução STJ nº 3/2025, e conforme sustentado em artigo publicado nesta revista [8], existe uma base normativa que resguarda o direito à sustentação oral presencial ou por videoconferência – ou seja, com imediatidade, em “tempo real” –, a exemplo do artigo 7º, XII, da Lei nº 8.906/94 (Estatuto da Advocacia), artigo 937 do CPC e artigo 630 do CPP. Além disso, resoluções e alterações em regimentos internos não possuem o condão de restringir o direito à sustentação oral e isso, ressalte-se, por três motivos:

“(1) diferentemente dos dispositivos inseridos por emendas nos regimentos internos, o artigo 7º, XIII, X e XII, da Lei nº 8.906/94, artigo 937 do CPC e art. 610, parágrafo único, do CPP passaram pelo crivo do Poder Legislativo, circunstância que propicia a condição de lei formal e material (não apenas material);
(2) conforme já assentou o STF, ‘[e]m matéria processual prevalece a lei, no que tange ao funcionamento dos tribunais o regimento interno prepondera’ (STF, ADI-MC nº 1.105/DF, rel. min. Paulo Brossard, Tribunal Pleno, j. 3/8/1994, DJe 27/4/2001), sendo que o direito ao uso da palavra pelo advogado inevitavelmente atine ao processo (não ao mero funcionamento do tribunal); e
(3) ao cercear ou suprimir direitos relacionados ao uso da palavra pelo advogado, os regimentos internos estão afrontando, ainda que de modo oblíquo, o devido processo legal e a ampla defesa (artigo 5º, LIV e LV, da CF/88)” [9].

Desse modo, seja em razão da base normativa já existente – responsável por estribar o direito à sustentação oral presencial ou por videoconferência, como o artigo 7º, XII, da Lei nº 8.906/94, artigo 937 do CPC e artigo 630 do CPP –, seja em razão do novel artigo 8º, II, da Resolução CNJ nº 591/2024, o artigo 21-B, caput e § 3º, do RISTF e o artigo 184-A, § 1º e § 4º, do RISTJ militam contra a legalidade, sendo necessária a imediata alteração/revogação dos referidos dispositivos, de modo a permitir que as partes, incluindo os advogados, oponham-se às sessões virtuais assíncronas justamente para realizar sustentação oral presencial ou por videoconferência.

Em resumo, conforme já antevisto em artigo publicado nesta revista, a advocacia está numa encruzilhada: “ou a advocacia brasileira se levanta duramente contra tais abusos, ou então assinará o atestado de óbito de sua relevância, dignidade e autorrespeito” [10]. É necessário, portanto, garantir a higidez normativa do artigo 133 da CF/88, bem como dos artigos 7º, XIII, X e XII, da Lei nº 8.906/94, 937 do CPC, 610 do CPP e artigo 8º, II, da Resolução CNJ nº 591/2024, sob pena de se legitimar um falso sistema de justiça, supostamente virtualizado e célere, mas responsável por amordaçar a advocacia.

 


[1] FONTOURA, João Neves da. Memórias: Borges de Medeiros e seu tempo. 1. Vol. Porto Alegre: Editora Globo, 1959. p. 139.

[2] RODAS, Sérgio. Revista Consultor Jurídico. Advogado questionou desaparecimento de Rubens Paiva, mas militares mentiram sobre morte. 2 dez. 2024. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2024-dez-02/advogado-questionou-desaparecimento-de-rubens-paiva-mas-militares-mentiram-sobre-morte/. Acesso em: 28 jan. 2025.

[3] HÍGIDO, José. Revista Consultor Jurídico. Prazo prorrogado Tribunais ganham mais tempo para se adaptar a resolução sobre julgamentos virtuais. 30 jan. 2025. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2025-jan-30/cnj-amplia-prazos-para-tribunais-se-adaptarem-a-resolucao-sobre-julgamentos-virtuais/. Acesso em: 30 jan. 2025.

[4] Idem.

[5] “Art. 16. Esta Resolução entrará em vigor em 3 de fevereiro de 2025.

Parágrafo único. Os Tribunais terão o prazo do caput para adaptação de suas normas internas e sistemas eletrônicos às regras contidas neste ato.”

[6] “Art. 2º Todos os processos jurisdicionais e administrativos em trâmite nos respectivos órgãos colegiados poderão, a critério do relator, ser submetidos a julgamento eletrônico, ressalvado o limite de classes do art. 184-A do Regimento Interno do STJ.”

[7] “Art. 10. Não serão julgados em ambiente virtual os processos com pedido de destaque feito: […] II – por qualquer uma das partes ou pelo representante do Ministério Público, desde que requerido até 48 horas antes do início da sessão e deferido pelo relator.”

[8] “Analisando o conteúdo normativo dos dispositivos acima, malgrado não pairem dúvidas sobre os direitos contidos, respectivamente, no artigo 7º, VIII e X, da Lei nº 8.906/94, poder-se-ia argumentar que o artigo 7º, XII, da Lei nº 8.906/94 prevê o direito de falar, mas não necessariamente o de sustentar oralmente. Todavia, o histórico legislativo demonstra o contrário: o PL nº 2.938/92 (transformado na Lei nº 8.906/94, atual Estatuto da Advocacia) repristinou todos os direitos constantes na revogada Lei nº 4.215/63 (antigo Estatuto da Advocacia), apenas ampliando alguns e aparando ambiguidades (não extinguindo nenhum), conforme admitido expressamente na justificativa; por sua vez, a revogada Lei nº 4.215/63 já previa direitos relacionados ao uso da palavra pelo advogado, incluindo expressamente o de sustentação oral (artigo 89, IX, da Lei nº 4.215/63), o qual redundou no artigo 7º, XII, da Lei nº 8.906/94.” (WEDY, Miguel Tedesco; SCHNEIDER, Mauirá Duro. Revista Consultor Jurídico. “Nosso lugar é na tribuna”: inviolabilidade do uso da palavra pelo advogado. 7 nov. 2024. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2023-nov-07/wedy-schneider-inviolabilidade-uso-palavra-advogado/. Acesso em: 28 jan. 2025).

[9] Idem.

[10] Idem.

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