Embargos Culturais

Raymond Aron e 'O ópio dos intelectuais'

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2 de fevereiro de 2025, 7h30

“O ópio dos intelectuais”, de Raymond Aron (1905-1983), é um livro de época (a primeira edição, creio, é de 1955). Marcado por querelas da cultura, que também agitaram a guerra fria, instrumentaliza fortemente o arsenal crítico contra a esquerda.

Spacca

Aron influenciou Mario Vargas Llosa, e é certamente um dos fundos conceituais e estratégicos de “O chamado da tribo”, outro livro fundamental que a coluna resenhará brevemente. Aron críticou pesadamente Jean-Paul Sartre e Maurice Merlau-Ponty. Esses dois pensadores editaram a célebre revista “Les Temps Modernes”. Llosa registrou em seu livro de memórias (Peixe na água) que leu extensivamente Sartre na juventude e que, amadurecendo, rompeu definitivamente com o existencialismo.

O título é uma alusão ao “ópio do povo”, epíteto que Marx outorgava a todas as formas de religião. Isto é, do mesmo modo que o povo estaria fanatizado pela religião (o ópio do povo) o intelectual estaria fanatizado pelo marxismo (o ópio dos intelectuais). O ópio embota a percepção e a crítica, e a imagem, para Aron, vale para uma concepção de povo, e vale também para uma concepção de intelectuais.

A religião e o marxismo obsessivo tornariam seus seguidores reféns de dogmas que ofuscam a liberdade do pensamento. O fanatismo religioso e ideológico, como se infere do livro, reduz a complexidade da realidade a uma visão estreita e limítrofe. Priva o visionário da diversidade de ideias, o que qualificaria, de fato, um referencial de riqueza existencial.

“O ópio dos intelectuais” é um libelo contra as ortodoxias ideológicas, também com contundentes críticas ao chamado catolicismo operário.  Aron incomodava-se com o fato de que haveria vários marxismos e que também não se teria uma significação satisfatória de proletariado. Alguns destes últimos, ainda que não definidos precisamente, teriam sido seduzidos (segundo Aron) pelo marxismo intelectual. Haveria (e há) diferenças brutais entre a classe trabalhadora norte-americana e a classe trabalhadora russa.

Marxismo

Aron criticou o marxismo delirante e otimista. Para Aron, é inútil a busca de um economista marxista que realmente tenha sido bem-sucedido. Haveria no pensamento de esquerda uma representação falsa da realidade. Segundo Aron, até uma vitória militar do Exército Vermelho seria celebrada como uma vitória da paz. Apenas os países capitalistas seriam imperialistas, os comunistas, de modo algum. Se o marxismo resultasse em violência, a culpa, certamente, seria da história, e não do partido. É o partido quem define verdade, teoria da arte, padrões de linguística, história.

A filosofia da história torna-se uma secularização da teologia no contexto do profetismo marxista criticado por Aron. É uma filosofia da história a serviço do fanatismo. O comunismo, nessa linha, seria a primeira religião de intelectuais que dera certo. O inteligentíssimo barbudo de Trier (Marx), para Aron, seria um revolucionário que passou a vida recluso numa biblioteca, e que depois vive mais de século incensado por professores.

A catástrofe é a alavanca desse esquerdismo extravagante; a catástrofe (imputado ao capitalismo imperialista) exige uma redenção. É nesse mote, parece-me, que Roberto Mangabeira Unger, brasileiro radicado nos Estados Unidos, se apegou na construção de suas teses sobre necessidades falsas e ditaduras de falta de alternativas, muito recorrente em seus livros da década de 2010. Penso que há semelhança entre o pensamento de Aron e de Mangabeira Unger.

A história bolchevique, nessa leitura, seria uma história sagrada. É o fanático elogiando o fanatismo. Qualquer opositor é pior do que qualquer herege, e é pior do que qualquer criminoso. Para Aron, a justiça revolucionária (e se referia aos tribunais de Stálin, certamente os três processos de Moscou, contra os centros trotskistas) seria uma caricatura de justiça. São milhões de suspeitos (literalmente) confessando crimes imaginários. O revolucionário, segue o autor, torna-se um cínico, agindo no jogo duplo de terror e indulgência.

O fecho dessa resenha exige um retorno ao impacto das ideias de Aron. O autor pretendia, ao mesmo tempo, desmontar alicerces das ortodoxias ideológicas, e desafiar o intelectual para se libertar da sedução de narrativas redentoras que simplificam a realidade. Aron não ofereceu alternativa utópica. Registrou um chamado a alguma lucidez, em forma de responsabilidade intelectual.

A crítica é contundente. Não poupa ninguém, batendo, principalmente, no idealismo marxista. É uma forte crítica ao fanatismo intelectual como fuga das contradições do mundo. “O ópio dos intelectuais” é um lembrete de que o verdadeiro papel do pensamento crítico é resistir às armadilhas do dogmatismo e preservar a complexidade que define o humano. Para Aron, o intelectual quer seu ópio, na forma da certeza da revolução.

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