Processo Tributário

Precedente, acórdão e partes compositivas: a saída é padronizar ementas?

Autores

  • é advogada mestre pelo Ibet especialista em Direito Tributário pelo Ibet e pesquisadora do grupo de estudos Jurisprudência Analítica do Ibet.

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  • é advogada mestre e doutora PUC-SP coordenadora geral do Ibet professora nos cursos de pós-graduação lato sensu Ibet e PUC/Cogeae-SP coordenadora do Curso de Extensão Reforma Constitucional Tributária do Ibet e coordenadora do grupo de estudos Jurisprudência Analítica do Ibet.

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  • é advogada doutoranda pela Unimar mestre em Direito Tributário pela PUC-SP professora do Curso de Especialização do Ibet do programa de pós-graduação lato sensu da Fundação Getúlio Vargas (FGV Law) e do Complexo Educacional Damásio de Jesus professora e coordenadora do curso de extensão Processo Tributário Analítico do Ibet e coordenadora do grupo de estudos de Processo tributário analítico do Ibet.

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2 de fevereiro de 2025, 8h00

Recentemente vimos um movimento, produzido em conjunto pela Presidência do Conselho Nacional de Justiça e a Corregedoria Nacional de Justiça, recomendando a padronização de ementa de acórdãos com a finalidade de tornar mais fácil e clara a identificação das controvérsias levadas a julgamento e, no contexto do sistema de precedentes, sua replicação [1]. Providência essa que necessariamente materializar-se-á nos processos decolados de conflitos tributários, por isso, reputamos adequado trazer as considerações a seguir para essa coluna.

A medida é louvável, sem dúvida, mas que deve ser vista com muita cautela nos casos julgados pela sistemática repetitiva ou com repercussão geral porque, como bem ponderado por Vanessa Damasceno Rosa Spina [2], ementa é um resumo do caso levado a julgamento, compreendendo o acórdão o verdadeiro alicerce para a prestação da tutela jurisdicional.

Assim, num sistema de precedentes, mais do que padronizar a ementa dos julgados, é o conteúdo dos acórdãos que merece refinamento, especialmente no que toca à identificação da questão cuja fronteira necessariamente é demarcada pelo caso gerador da lide.

Para uma adequada prestação jurisdicional transubjetiva, a construção dos julgados deve ser feita de forma consistente e cuidadosa. Isso passa pela (a) identificação dos dispositivos constitucionais ou legais objeto da discussão, (b) definição da pergunta a ser respondida pelo tribunal, (c) seleção de processos com fundamentação ampla sobre a questão, o que significa que as contrarrazões [3] deixam de ser peça supérflua para ser essencial em processos cuja decisão operará efeitos para além do processo julgado, (d) apreciação de todos os pontos relevantes da questão, (e) amplo debate entre os julgadores e (f) coerência entre a questão submetida a julgamento e a conclusão a que chegou o acórdão prolatado.

A necessidade de voltar nossas atenções para esses pontos decorre do fato de que, com uma constância acima do que se tem por adequado, decisões prolatadas em casos repetitivos (STJ) ou com o reconhecimento da repercussão geral da matéria (STF) transbordam ou ficam aquém da adrede referida fronteira do caso e da questão submetidos ao julgamento transubjetivo.

Como os exemplos são sempre pontos de apoio valiosos para sedimentação do conhecimento [4], vejamos o acórdão proferido no recurso extraordinário 627.051 [5] (Tema 402 de repercussão geral), julgado em 12/11/2014 e relatado pelo ministro Dias Toffoli.

Nesse processo, a Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos (ECT) pretendia definir (1) se a imunidade recíproca do ICMS assegurada em favor dos valores auferidos pelos serviços postais por ela prestados em regime de exclusividade abrangeria, na mesma medida, aqueles decorrentes da prestação do serviço de transporte de encomendas, e, em sendo positiva a resposta, (2) se restaria afastada a exigência de cumprimento de dever instrumental [6].

Embora principal, a questão da imunidade recíproca não será objeto de análise, voltando-se nosso foco ao segundo tema discutido no julgado: definir se a imunidade tributária recíproca afasta o cumprimento de deveres instrumentais.

No intuito de uniformizar os procedimentos de fiscalização de mercadorias eventualmente contidas nos objetos postais (encomendas), foram pactuados os Protocolos nº 32 [7] e 33 [8] do Confaz [9] estabelecendo que, além do cumprimento das demais obrigações tributárias previstas na legislação do ICMS, as unidades federadas deveriam exigir que a ECT cumprisse as mesmas exigências impostas aos transportadores de carga, como transportar encomendas acompanhadas de nota fiscal, manifesto de cargas, conhecimento de transporte de cargas etc., sob pena de apreensão ou retenção da mercadoria ou bens pelo Fisco. Especificamente o Protocolo 32/2001 fixava procedimentos a serem adotados em prol da fiscalização (1) do serviço de transporte em si e (2) das mercadorias e bens transportados pela ECT.

Conquanto a insurgência contra os deveres instrumentais impostos pelos aludidos protocolos tenha sido invocada na exordial do mandado de segurança impetrado pela ECT, tanto sua apelação (interposta em face da sentença que negou a segurança) quanto seu recurso extraordinário restringiram-se a invocar os fundamentos que confirmavam o seu direito à imunidade na prestação do serviço de transporte de encomendas.

Por outras palavras, a questão dos deveres instrumentais não foi objeto do recurso de apelação e, consequentemente, de prequestionamento, condição de admissibilidade do recurso extraordinário [10].

Segundo consta no relatório do acórdão produzido pelo ministro relator Dias Toffoli, o tema do cumprimento dos deveres instrumentais estabelecidos nos Protocolos 32 e 33 do Confaz foi retomado pela ECT em seus memoriais.

O voto do relator, condutor do acórdão, concluiu pela impossibilidade de cobrança de ICMS sobre o serviço de transporte de encomendas em razão da aplicabilidade da regra de imunidade prevista no artigo 150, VI, “a”, da CF/1988, mas ressalvou que a imunidade não afastava o dever de a ECT cumprir deveres instrumentais em razão da atividade que exerce. Nas suas palavras, “a imunidade tributária, por si só, não autoriza a exoneração de cumprimento das obrigações acessórias”.

Ou seja, ainda que o serviço de transporte de encomendas esteja ao largo da incidência do ICMS por força da imunidade recíproca, reconheceu-se que a ECT sujeitar-se-ia aos deveres instrumentais exigidos pelo fisco estadual para fiscalização do ICMS incidente sobre as mercadorias que transporta.

Exemplo disso é a empresa que vende mercadoria para um consumidor e faz a “entrega” via Correios. A vendedora deve recolher o ICMS sobre a venda e fazer o transporte do bem acompanhado da nota fiscal, cabendo à ECT fiscalizar se tal exigência foi cumprida. E nesse ponto o relator concluiu que os deveres instrumentais exigidos pela fiscalização “são razoáveis e proporcionais, condizendo com a capacidade de a ECT colaborar e informar o Fisco”.

Após voto dos ministros Dias Toffoli (relator), Gilmar Mendes, Celso de Mello, Luiz Fux, Rosa Weber, Ricardo Lewandowski e Teori Zavascki, por maioria [11], o recurso foi provido para reconhecer a imunidade da ECT relativamente ao ICMS sobre o transporte de encomendas.

Notem que, a conclusão do julgado foi pelo provimento do recurso, mas textual e exclusivamente faz referência apenas à questão da imunidade, nada constando a respeito dos deveres instrumentais. O dispositivo do acórdão está assim escrito:

“Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros do Supremo Tribunal Federal, em sessão plenária, sob a presidência do senhor ministro Ricardo Lewandowski, na conformidade da ata do julgamento e das notas taquigráficas, decidindo o tema 402 da Repercussão Geral, por maioria de votos, em dar provimento ao recurso”.

Embora tratada no relatório como questão jurídica posta no processo, que provocou emissão de juízo de valor a respeito e, consequentemente, seu julgamento, tal como consta na fundamentação do acórdão, a questão envolvendo o cumprimento de deveres instrumentais por parte da ECT não foi objeto de referência na parte dispositiva do acórdão, na conclusão da ementa [12] e nem na tese firmada, que está assim escrita:

“Não incide o ICMS sobre o serviço de transporte de encomendas realizado pela Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos (ECT), tendo em vista a imunidade recíproca prevista no art. 150, VI, a, da Constituição Federal.”

Trata-se de ilustrativo exemplo de como a construção do acórdão, em todas as suas partes compositivas (relatório, fundamentação, dispositivo, ementa, definição de tema, indicação dos dispositivos normativos envolvidos e tese), deve ser articulada, notadamente nos julgamentos produzidos pela sistemática repetitiva ou com repercussão geral que serão capturados para reprodução em outros processos com os quais guardem identidade.

Nesse específico Recurso Extraordinário 627.051, a partir da leitura do tema, da tese ou do dispositivo do acórdão, nada se pode concluir a respeito do julgamento da questão dos deveres instrumentais, enunciada apenas na ementa, no relatório e no voto.

Há evidente discrepância entre relatório, fundamentação do acórdão, tema, ementa e tese [13].

Foco deve ser na seleção dos casos e na construção dos acórdãos

Imaginando que pragmaticamente a pesquisa do julgador ou do advogado se restrinja ao tema e à tese, certamente a conclusão será a de que o acórdão apreciou tão somente a questão da imunidade recíproca na hipótese de transporte de encomendas. Caso se socorra da ementa, a conclusão será no sentido de julgamento da questão da imunidade recíproca na hipótese de transporte de encomendas e dos deveres instrumentais.

Sem dúvida prevalece o todo do acórdão e não os resumos formatados a partir de seu inteiro teor, como tema, ementa, tese, conclusão, mas se a intenção é produzir algo que facilite a identificação das controvérsias, mediante padronização de produção desses resumos, todo o processo de produção decisório deve ser objeto de reflexão, não apenas as ementas.

Fato é que há muito a se pensar e aprimorar em termos de julgamento [14] antes da discussão sobre a padronização das ementas.

Pensamos ser mais adequado retroceder alguns passos, focar numa melhor seleção dos casos e de construção dos acórdãos, para somente a partir daí, isto é, da elaboração de acórdãos coerentes com as questões postas em discussão, criar padrões de resumo. Antes disso, a iniciativa, embora dotada de boa intenção, revelar-se-á inócua.

 


[1] A referência é à recomendação nº 154, aprovada na 9ª Sessão Ordinária do CNJ, ocorrida em 13/08/2024, a qual visa otimizar o processamento e a análise das informações dos acórdãos por soluções e sistemas de Inteligência Artificial, além de facilitar a compreensão do que foi decidido e favorecer a observância do Pacto do Judiciário pela Linguagem Simples, como ressaltado pelo presidente do CNJ, ministro Luís Roberto Barroso, no Ato Normativo 0004748-65.2024.2.00.0000 – https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/5693. Acesso em: 22/11/2024.

[2] https://www.conjur.com.br/2024-set-22/ementa-pode-dizer-algo-sobre-o-precedente/

[3] Mais a respeito, sugere-se a leitura do seguinte artigo da coluna de autoria de Mario Jabur Neto:

https://www.conjur.com.br/2021-nov-07/processo-tributario-contrarrazoes-recursais-imprescindibilidade/

[4] Nesse sentido são as lições de Paulo de Barros Carvalho, quando afirma que o campo dos exemplos sempre “representaram ponto de apoio indispensável ao conhecimento”. – In Direito Tributário, Linguagem e Método. 8ª edição. São Paulo: Noeses, 2021, p. 711.

[5] Recurso extraordinário com repercussão geral. Imunidade recíproca. Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos. Peculiaridades do Serviço Postal. Exercício de atividades em regime de exclusividade e em concorrência com particulares. Irrelevância. ICMS. Transporte de encomendas. Indissociabilidade do serviço postal. Incidência da Imunidade do art. 150, VI, a da Constituição. Condição de sujeito passivo de obrigação acessória. Legalidade. 1. Distinção, para fins de tratamento normativo, entre empresas públicas prestadoras de serviço público e empresas públicas exploradoras de atividade econômica. 2. As conclusões da ADPF 46 foram no sentido de se reconhecer a natureza pública dos serviços postais, destacando-se que tais serviços são exercidos em regime de exclusividade pela ECT. 3. Nos autos do RE nº 601.392/PR, Relator para o acórdão o Ministro Gilmar Mendes, ficou assentado que a imunidade recíproca prevista no art. 150, VI, a, CF, deve ser reconhecida à ECT, mesmo quando relacionada às atividades em que a empresa não age em regime de monopólio. 4. O transporte de encomendas está inserido no rol das atividades desempenhadas pela ECT, que deve cumprir o encargo de alcançar todos os lugares do Brasil, não importa o quão pequenos ou subdesenvolvidos. 5. Não há comprometimento do status de empresa pública prestadora de serviços essenciais por conta do exercício da atividade de transporte de encomendas, de modo qe essa atividade constitui conditio sine qua non para a viabilidade de um serviço postal contínuo, universal e de preços módicos. 6. A imunidade tributária não autoriza a exoneração de cumprimento das obrigações acessórias. A condição de sujeito passivo de obrigação acessória dependerá única e exclusivamente de previsão na legislação tributária. 7. Recurso extraordinário do qual se conhece e ao qual se dá provimento, reconhecendo a imunidade da ECT relativamente ao ICMS que seria devido no transporte de encomendas.

(RE 627051, Relator(a): DIAS TOFFOLI, Tribunal Pleno, julgado em 12-11-2014, ACÓRDÃO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL – MÉRITO DJe-028  DIVULG 10-02-2015  PUBLIC 11-02-2015).

[6] A expressão dever instrumental foi sacada dos ensinamentos de Paulo de Barros Carvalho:

“A expressão em curso na dogmática brasileira é “obrigações acessórias”, que vimos criticando há muito tempo, pela impropriedade de seus termos. Acontece que as relações jurídicas veiculadoras de tais condutas obrigatórias não têm índole patrimonial, já que seu objeto não é passível de avaliação em signos econômicos, tornando-se impraticável a conversão em pecúnia. (…) Daí nossa preferência recair sobre “deveres instrumentais ou formais. “Instrumentais” porque o plexo de deveres estabelecidos pela lei funciona como meio, instrumento de apuração, investigação e conhecimento das circunstâncias em que se deu o evento previsto normativamente e “formais” porque dizem respeito à formalização em linguagem do acontecimento tributado”. – In: Fundamentos jurídicos da incidência tributária. 10ª edição. São Paulo: Editora Saraiva, 2018, p. 244-245.

[7] https://www.confaz.fazenda.gov.br/legislacao/protocolos/2001/pt032_01. Acesso em: 22/01/2025.

[8] https://www.confaz.fazenda.gov.br/legislacao/protocolos/2001/pt033_01. Acesso em: 22/01/2025.

[9] Conselho Nacional de Política Fazendária.

[10] A respeito da demarcação da causa de recorrer remetemos o leitor ou leitora ao seguinte artigo dessa Coluna de autoria de Lázaro Reis Pinheiro Silva:

https://www.conjur.com.br/2021-jul-04/processo-tributario-acoes-tributarias-jurisdicao-delimitacao-causa-recorrer-instrumentalidade/

[11] Votaram contra os Ministros Roberto Barroso e Marco Aurélio. Ausente, justificadamente, a Ministra Cármen Lúcia.

[12] Conclusão constante na ementa do acórdão: “Recurso extraordinário do qual se conhece e ao qual se dá provimento, reconhecendo a imunidade da ECT relativamente ao ICMS que seria devido no transporte de encomendas”.

[13] Artigo publicado nesta Coluna, de autoria de Caio Yukio Shimoda, apresenta sugestão para resolver problemas desse quilate: https://www.conjur.com.br/2025-jan-26/embargos-de-declaracao-via-para-aperfeicoar-precedentes-vinculantes/

[14] A palavra julgamento aqui está sendo utilizada como processo de enunciação e não como produto (julgamento enquanto ato decisório, outro sentido possível da expressão).

Autores

  • é advogada, mestre pelo Ibet, especialista em Direito Tributário pelo Ibet e pesquisadora do grupo de estudos Jurisprudência Analítica do Ibet.

  • é advogada, mestre e doutora PUC-SP, coordenadora geral do Ibet, professora nos cursos de pós-graduação lato sensu Ibet e PUC/Cogeae-SP, coordenadora do Curso de Extensão Reforma Constitucional Tributária do Ibet e coordenadora do grupo de estudos Jurisprudência Analítica do Ibet.

  • é advogada, doutora pela Unimar, mestre em Direito Tributário pela PUC-SP, professora do mestrado e do doutorado do PPGD da Unimar, professora do Curso de Especialização do Ibet, do programa de Pós-graduação lato sensu da PUC-Cogeae, da Fundação Getúlio Vargas (FGV LAW) e do Complexo Educacional Damásio de Jesus, professora e coordenadora do curso de Extensão Processo Tributário Analítico e Reforma Tributária do Ibet e coordenadora do grupo de estudos de Processo Tributário Analítico e Jurisprudência Analítica do Ibet.

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