Opinião

Municípios podem regulamentar segregação de funções segundo TCE-PR

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  • é doutora e mestra pela Universidade de São Paulo especialista em Direito Notarial e Registral pela Escola Paulista da Magistratura consultora parecerista e procuradora-geral do município de Mauá (SP).

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2 de fevereiro de 2025, 11h20

A Lei nº 14.133/2021 trouxe importantes inovações ao regime jurídico das licitações e contratos administrativos no Brasil, entre elas, a inclusão expressa do princípio da segregação de funções no ordenamento jurídico. Embora já aplicado de forma implícita na Administração Pública, a nova lei conferiu a esse princípio um status normativo, reforçando sua importância para a governança pública e para a prevenção de irregularidades nos processos licitatórios.

TCE-PR

O artigo 5º da Lei consagra o princípio da segregação de funções como um dos fundamentos essenciais a serem observados na aplicação da norma. De forma complementar, o caput do artigo 7º atribui à autoridade máxima do órgão ou entidade, ou àquela designada pelas normas de organização administrativa, a responsabilidade de promover a gestão por competências e designar agentes públicos para o desempenho das funções essenciais à execução da lei.

Por fim, o §1º do artigo 7º determina que a autoridade mencionada no caput, quando da escolha dos agentes públicos para o desempenho das funções relativas ao procedimento licitatório, deve observar o princípio da segregação de funções, vedando a designação de um mesmo agente público para atuar simultaneamente em funções diversas. Essa vedação, portanto, não é uma discricionariedade do administrador e sim um comando vinculado e obrigatório para a aplicação da Lei.

Pois bem.

A leitura dos dispositivos citados permite compreender que, na prática, a segregação de funções consiste na distribuição das responsabilidades entre diferentes agentes, de modo a evitar que uma única pessoa detenha o controle absoluto sobre todas as fases de um processo de licitação. Dessa forma, as funções de elaborar orçamentos e documentos de natureza técnica, elaborar editais, julgar propostas ou fiscalizar contratos são distintas e por conseguinte, devem ser atribuídas a agentes diversos. Essa vedação tem como objetivo reduzir a possibilidade de ocultação de erros e prevenir fraudes nos processos de contratação.

Com efeito, esse modelo contribui para o fortalecimento da integridade no âmbito das contratações públicas, alinhando-se aos princípios constitucionais da moralidade administrativa e da eficiência (artigo 37 da Constituição Federal). Além disso, a segregação de funções é vista como um instrumento eficaz para a implementação de boas práticas de governança, outro princípio basilar não só da nova lei de licitações, mas também da nova ordem de direito administrativo, de uma forma geral.

A aplicação do princípio da segregação de funções, previsto na Lei nº 14.133/2021, contudo, suscita questionamentos importantes, especialmente diante das características heterogêneas da administração pública nos diferentes entes federativos. Além disso, por ser um princípio e como tal, possuir alto grau de abstração, ainda demanda ajustes interpretativos e operacionais para sua plena efetividade.

A ausência de detalhamento na lei sobre quais funções devem ser segregadas é uma das principais dúvidas que pairam sobre a sua aplicação. A Lei nº 14.133/2021 menciona a necessidade de designação de agentes públicos distintos para as várias atividades a serem desenvolvidas durante o procedimento, contudo, não define de forma taxativa as etapas do processo licitatório ou de gestão contratual que demandam segregação obrigatória. Essa lacuna normativa deixa margem para interpretações diversas, criando incertezas quanto à extensão da aplicação do princípio.

Nesse contexto, a questão foi encaminhada, em forma de consulta, ao Tribunal de Contas do Estado do Paraná.

O Procurador-Geral do Município de Ponta Grossa, Dr. Gustavo Schemim da Mata, questionou ao Tribunal de Contas do Paraná se, com base no princípio da segregação de funções, seria possível a legislação municipal estabelecer critérios específicos em cada fase da licitação, tanto na parte interna quanto na externa.

A resposta do Tribunal de Contas do Paraná foi positiva.

Para o TCE-PR:

“Ao Município é permitido, dentro da sua esfera de competência, normatizar a segregação de funções no processo licitatório, nada obstando que tal regulação seja por decreto, observando os limites constitucionais e as diretrizes gerais traçadas pela Lei nº 14.133/21, mantendo-se fiel ao arcabouço normativo federal e resguardando os princípios constitucionais da Administração Pública.”

O conselheiro Fabio Camargo, relator do processo, acompanhando o posicionamento da Controladoria Geral do Município de Ponta Grossa e do Ministério Público de Contas do Paraná, ressaltou que o princípio da segregação de funções é uma prática essencial para a governança corporativa e a gestão de riscos, especialmente em contextos que exigem controles internos rigorosos.

Destacou que esse princípio assegura a correta aplicação das normas legais, ao estabelecer que as responsabilidades sejam distribuídas entre diferentes agentes públicos, sendo essa separação crucial para evitar conflitos de interesse, garantir a imparcialidade e assegurar que as decisões sejam baseadas em critérios objetivos.

Asseverou ainda, que o princípio da segregação de funções implica delegar a diferentes agentes as responsabilidades de autorização, aprovação, controle e demais atividades relacionadas ao processo licitatório, reduzindo, assim, as oportunidades para a ocorrência e ocultação de erros e fraudes nas contratações públicas.

No acórdão, destacou também que os municípios têm respaldo constitucional para legislar sobre normas específicas de licitações e contratos administrativos, inclusive quanto à definição de critérios para a segregação de funções, tanto na parte interna quanto na externa, já que o inciso II do artigo 30 do texto constitucional dispõe que os municípios podem suplementar a legislação federal e a estadual no que couber. Contudo, enfatizou que essas regulamentações devem observar os parâmetros estabelecidos pela Lei nº 14.133/2021 e serem elaboradas pela autoridade máxima do órgão ou entidade competente.

Quanto ao meio mais adequado para regulamentar a segregação de funções, o Conselheiro indicou que a publicação de decretos administrativos é a opção mais apropriada, em vez de leis municipais. Argumentou que decretos são instrumentos administrativos que permitem detalhar os mecanismos e procedimentos necessários para a aplicação prática das normas legais, sem alterar ou comprometer o conteúdo da legislação.

Por fim, o ilustre relator citou como exemplos dessa prática a regulamentação do princípio da segregação de funções já realizada pela União e pelo Município de Curitiba, ambas por meio de decretos. Essas medidas asseguram a integridade da legislação que rege os processos licitatórios e promovem sua execução eficiente.

O voto do relator foi aprovado por unanimidade pelos demais Conselheiros, durante a Sessão de Plenário Virtual nº 22/24 do Tribunal Pleno do TCE-PR, concluída em 21 de novembro. O Acórdão nº 3889/24 foi publicado em 28 de novembro, na edição nº 3.345 do Diário Eletrônico do TCE-PR (DETC), e transitou em julgado no dia 9 de dezembro.

Com base nos meus vinte anos de experiência em licitações, coaduno com o entendimento do Egrégio Tribunal de Contas do Estado do Paraná, pois, a regulamentação da segregação de funções por parte dos municípios, em decretos administrativos, não apenas é possível, como também altamente recomendável. Isso porque utilizar-se de regulamentações estaduais ou federais pode não ser a solução mais adequada para atender às particularidades dos municípios, que frequentemente possuem realidades bastante distintas da União e dos estados-membros da federação.

No município no qual atuo (Mauá, na região metropolitana do estado de São Paulo), a comissão de implementação da nova lei de licitações, orientou que a segregação fosse observada  em todas as fases do procedimento licitatório e por aqui, optou-se por haver um agente de contratação para cada função segregada, sendo que quem participou de uma função, seja interna ou externamente, não exerce outra no mesmo processo licitatório.

Por fim, de todo o exposto, destaca-se o papel fundamental dos tribunais de contas na uniformização de entendimentos acerca da aplicação dos princípios afetos às licitações. Esses órgãos exercem uma função estratégica ao expedir orientações e recomendações que auxiliam os entes federativos na adoção de práticas alinhadas aos parâmetros da legislação federal, principalmente em matérias relativas à Lei 14.133/21.

Por meio de acórdãos, pareceres e notas técnicas, os TCs orientam a Administração Pública a conciliar a efetividade dos institutos com as particularidades operacionais de cada ente, contribuindo para a padronização de procedimentos e mitigação de riscos de interpretação divergente, que poderiam comprometer a segurança jurídica e a eficiência dos processos licitatórios.

Nesse contexto, a regulamentação do princípio da segregação de funções pelos entes federativos torna-se essencial para garantir sua aplicabilidade prática. Contudo, é crucial que essa regulamentação seja conduzida de forma a respeitar a normativa já existente e assegurar uma unidade mínima de interpretação e aplicação do princípio.

Tal abordagem deve estar fundamentada nos pilares da eficiência, transparência e isonomia, promovendo uma administração pública mais segura e confiável. Dessa forma, a atuação coordenada entre os entes federativos e os Tribunais de Contas fortalece a governança pública e garante a integridade dos processos de contratação, reduzindo riscos de irregularidades e aumentando a confiança da sociedade na gestão pública.

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Brasil. (2021). Lei nº 14.133, de 1º de abril de 2021. Brasília, DF: Presidência da República. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2021/lei/L14133.htm

Tribunal de Contas do Estado do Paraná (2024). Acórdão nº 3.889/24 – Tribunal Pleno. Sessão de Plenário Virtual nº 22/24, concluída em 21 de novembro. Publicado no Diário Eletrônico do TCE-PR, edição nº 3.345, em 28 de novembro. Disponível em: https://www1.tce.pr.gov.br/multimidia/2024/11/pdf/00390860.pdf. Acesso em: 26 de janeiro de 2025.

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  • é doutora e mestra pela Universidade de São Paulo, especialista em Direito Notarial e Registral pela Escola Paulista da Magistratura, consultora, parecerista e procuradora-geral do município de Mauá (SP).

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