Desconsideração da personalidade jurídica: banalização de um instrumento jurídico
2 de fevereiro de 2025, 17h24
Nos últimos anos, o instituto da desconsideração da personalidade jurídica tem sido cada vez mais utilizado nos tribunais brasileiros, mas nem sempre de forma criteriosa. Embora o Código Civil, no artigo 50, e o Código de Processo Civil, nos artigos 133 a 137, estabeleçam critérios claros para sua aplicação, observa-se uma crescente tendência de deferimentos indiscriminados, muitas vezes sem a devida comprovação dos requisitos legais. Esse comportamento judicial, que deveria ser pautado pela excepcionalidade e rigor, tem transformado um instrumento necessário em uma arma de insegurança jurídica.
A desconsideração da personalidade jurídica, em sua essência, é uma medida extrema que permite ultrapassar o manto da separação patrimonial entre a pessoa jurídica e seus sócios ou administradores. Essa excepcionalidade só pode ser invocada quando demonstrados dois requisitos fundamentais: o desvio de finalidade, que implica a utilização da pessoa jurídica para práticas ilícitas ou fraudulentas, e a confusão patrimonial, caracterizada pela ausência de separação entre os bens da empresa e os de seus sócios.
Não obstante a clareza da lei, tem-se assistido, com frequência alarmante, a decisões judiciais que desconsideram a personalidade jurídica sem qualquer comprovação de tais requisitos. Em muitos casos, a simples inexistência de bens penhoráveis no nome da empresa é tratada como justificativa suficiente para atingir o patrimônio pessoal dos sócios. Essa postura, além de juridicamente questionável, revela um desprezo pelo princípio da autonomia patrimonial, essencial ao funcionamento das relações empresariais.
É evidente que o instituto da desconsideração da personalidade jurídica foi concebido para evitar abusos e fraudes, mas sua aplicação arbitrária o converte em uma ferramenta de opressão contra os empreendedores. Decisões baseadas em meras presunções de desvio de finalidade ou confusão patrimonial tornam a exceção uma regra, comprometendo o que há de mais caro no direito: a segurança jurídica.
Conveniência no lugar da legalidade
Essa banalização é um reflexo de um sistema que, por vezes, parece preferir a conveniência à legalidade. Afinal, ao atingir diretamente os bens dos sócios, os magistrados buscam uma solução rápida para as execuções frustradas, ignorando que tal decisão pode gerar graves injustiças. Os sócios, muitas vezes alheios a qualquer prática ilícita, são forçados a arcar com responsabilidades que deveriam estar limitadas à empresa, violando o próprio propósito da personalidade jurídica.
O uso indiscriminado da desconsideração tem sido amplamente criticado por renomados juristas. O professor Fábio Ulhoa Coelho alerta que a banalização do instituto compromete a confiança dos agentes econômicos no sistema jurídico. Ele enfatiza que a desconsideração deve ser aplicada apenas como um último recurso, e não como um mecanismo automático para sanar dívidas empresariais.
Arnoldo Wald, em outro viés, destaca que a desconsideração indiscriminada configura um retrocesso jurídico, pois viola o princípio da autonomia patrimonial e transforma o risco empresarial em um fardo perpétuo para os sócios. Segundo ele, a aplicação equivocada do instituto desestimula a criação de novas empresas e prejudica o desenvolvimento econômico do país.
O Código de Processo Civil trouxe avanços importantes ao regulamentar o Incidente de Desconsideração da Personalidade Jurídica (IDPJ), que visa a garantir o contraditório e a ampla defesa antes da aplicação do instituto. No entanto, muitos magistrados têm ignorado as formalidades do incidente, desconsiderando a personalidade jurídica de forma direta e sumária. Isso não apenas contraria as disposições legais, mas também fere os princípios constitucionais do devido processo legal e da ampla defesa.
Consequências da aplicação sem rigor
A falta de critérios rigorosos na aplicação da desconsideração da personalidade jurídica gera graves consequências para o ambiente empresarial e para o sistema jurídico como um todo:
- 1. Insegurança jurídica: Os empreendedores passam a temer que, a qualquer momento, seu patrimônio pessoal possa ser atingido, mesmo sem evidências de práticas ilícitas.
- 2. Desestímulo ao investimento: A imprevisibilidade nas relações empresariais afasta investidores e reduz a competitividade do país.
- 3. Risco de injustiças: Sócios que agem de boa-fé e dentro da legalidade são penalizados por decisões judiciais que ignoram a ausência de desvio de finalidade ou confusão patrimonial.
O que se observa no atual cenário é um comportamento judicial que privilegia soluções simplistas e imediatistas, sem considerar as consequências a longo prazo. A desconsideração da personalidade jurídica, em muitos casos, deixou de ser uma medida excepcional para se tornar um atalho processual, ferindo a essência do direito empresarial e prejudicando a credibilidade das relações econômicas.
Ao decidir pela desconsideração sem o devido rigor, o magistrado desrespeita a própria função social da pessoa jurídica, que é promover o desenvolvimento econômico ao limitar os riscos do empreendimento ao patrimônio da empresa. Essa prática revela uma incompreensão da lógica empresarial e uma desconexão com os princípios fundamentais do direito.
Risco de arbitrariedade judicial
A desconsideração da personalidade jurídica é um instituto necessário, mas sua aplicação exige rigor e cautela, sob pena de transformar-se em um mecanismo de arbitrariedade judicial. O que se vê hoje, infelizmente, é um uso indiscriminado desse instrumento, comprometendo a segurança jurídica e o desenvolvimento econômico. É imprescindível que os magistrados sigam os critérios legais e respeitem os direitos fundamentais dos sócios, evitando que a desconsideração seja utilizada como uma solução rápida para a execução de dívidas, mas como o que realmente é: uma medida excepcional e subsidiária.
Se o sistema jurídico brasileiro continuar permitindo a banalização desse instituto, corre-se o risco de criar um ambiente onde a autonomia da pessoa jurídica não seja mais a regra, mas uma mera formalidade facilmente desconsiderada. É hora de rever práticas judiciais e resgatar o verdadeiro propósito do direito: promover a justiça, mas sempre com responsabilidade e respeito aos princípios fundamentais.
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