Ainda sobre a inconstitucionalidade da autonomia do Banco Central
2 de fevereiro de 2025, 7h00
As ciências econômicas são, tipicamente, um ramo das ciências sociais. Mesmo alguém como Frank Knight, um dos fundadores da Escola de Chicago e professor que influenciou nomes como Milton Friedman e James Buchanan, reconhece isso com intrepidez [1].
Afirmar que a economia é uma ciência social não lhe reduz, em nada, o atributo de cientificidade, nem impede que as decisões apoiadas em seus ensinamentos científicos sejam compreendidas como decisões técnicas. Mas esse caráter técnico-científico exige o reconhecimento de suas peculiaridades. Em regra, uma determinada formulação de teoria econômica será verdadeira e sugerirá certos encaminhamentos técnicos: mas será apenas uma dentre outras formulações igualmente verdadeiras de um ponto de vista científico-social, ainda que estas outras afirmem o contrário daquela primeira formulação teórico-econômica e sugiram encaminhamentos técnicos opostos.
O Banco Central é um dos temas em que essa divergência se apresenta. Pesquisas sérias, igualmente lastreadas por evidências empíricas, opõem-se em suas conclusões. O Supremo Tribunal Federal (STF), ao julgar a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 6.696 [2], não deixou de reconhecê-lo, acertadamente: “é fato induvidoso que a questão da autonomia do Banco Central divide opiniões” [3]. Mas se equivocou ao concluir, daí, tratar-se essa autonomia de questão “que não se situa no âmbito da interpretação constitucional” [4].
No Estado democrático de Direito, a interpretação constitucional é mais ampla do que aquilo que fazem os tribunais. Sua compreensão adequada exige atenção à relação entre poder constituinte e poderes constituídos, bem como entre as diferentes feições que assumem a soberania popular no momento constituinte e nos momentos que assegura para si mesma já na vigência da ordem constitucional. Isso significa entender também os processos político-eleitorais e as decisões legislativas e executivas como atos de interpretação constitucional.
Em termos mais concretos, a escolha do perfil geral de condução da política econômica do país é um dos pontos mais importantes de uma eleição para a chefia do Poder Executivo. Afinal de contas, a ele caberá precipuamente a tarefa dessa condução, ainda que com o auxílio e o controle do Poder Legislativo.
Uma leitura constitucionalmente íntegra dos processos político-eleitorais deve ver neles, portanto, um ato específico de interpretação da Constituição: diante das normas constitucionais pertinentes, qual projeto político a soberania popular entende, a cada exercício periódico do sufrágio, que as cumpre corretamente?
Escolha pela soberania popular não pode ser desprezada
Essa interpretação constitucional feita pela soberania popular pela via do voto não pode ser desprezada, sob pena de que o Estado democrático de Direito perca justamente o pilar fundamental de sustentação de sua legitimidade. Em 2022, o perfil geral de condução da política econômica elegido pela soberania popular foi aquele representado pelo atual governo. Impedir que este execute essa política econômica é ferir de morte aquela soberania e, com ela, por conseguinte, o Estado democrático de direito.
É exatamente esse tipo de impedimento que tem sido mostrado pela atuação do Banco Central nos últimos dois anos, sobretudo por suas decisões quanto à taxa básica de juros da economia. Na medida em que essa oposição do Banco Central à política econômica pretendida pelo governo federal só se faz possível em razão do tipo de autonomia que lhe foi concedida pela Lei Complementar 179 de 2021, a conclusão vem serenamente: a autonomia [5] do BC, tal como hoje vige no Brasil, é inconstitucional [6].
Essa conclusão, por suposto, exige esclarecimentos adicionais. Não se está dizendo que optar pela autonomia do Banco Central seja necessariamente ilegítimo como escolha de condução de política econômica. Para além dos atores institucionais globais em geral relacionados ao avanço do neoliberalismo, como o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional, há gente séria e comprometida com a busca da justiça social e econômica que desenvolve seu trabalho intelectual tomando a autonomia do BC como um mecanismo importante para o alcance desse objetivo.
Ou seja, nada obsta que um determinado governo, alinhado com essa concepção de economia e apoiando-se nas previsões que ela oferece, opte por atribuir autonomia ao Banco Central, como um elemento que integre sua forma específica de condução da política econômica, e use para isso instrumentos normativos próprios da esfera do Executivo. O que não é constitucionalmente possível é pretender que essa autonomia seja imposta externamente a um governo que não compartilha dessa mesma concepção de economia, um governo para o qual, portanto, a autonomia do BC não condiz com a política econômica por ele apresentada ao colocar-se à prova nas urnas.
Em outras palavras, de um ponto de vista constitucional, o problema não é a autonomia em si do Banco Central, mas o fato de que esteja disposta sob a forma de lei. Assim, ao lado do problema atinente à soberania popular, vem ao primeiro plano da discussão a separação de poderes. A maior parte do debate por ocasião do julgamento da ADI 6.696 debruçou-se sobre a inconstitucionalidade formal, ou não, da Lei Complementar 179 de 2021. Prevaleceu o entendimento de que não havia inconstitucionalidade formal, ou porque não se tratava de iniciativa privativa do presidente da República, ou porque esta teria sido suprida [7].
Mas esse não é o ponto principal da questão: a pergunta fundamental é sobre até que ponto o presidente da República pode ou não ter essa iniciativa, com esse conteúdo, e, caso não a tenha, até que ponto o Poder Legislativo pode impor esse conteúdo — a autonomia do Banco Central — a ele.
Autonomia concedida pelo chefe de Estado
A petição inicial da ADI 6.696 questiona esse limite, sob o argumento de que seria uma “desistência de competência” vedada constitucionalmente [8]. Esse argumento não foi enfrentado pelo STF e, embora em termos diferentes daqueles contidos naquela petição inicial, parece-me conter o núcleo da resposta correta a este caso.
Mesmo que o chefe de um determinado governo pretenda outorgar autonomia ao Banco Central e possa legitimamente, em consonância com a política econômica que adotará, fazê-lo, ele não pode aproveitar-se de eventual maioria parlamentar para estabelecer essa autonomia mediante lei, posto que isso vincula indevidamente os governos futuros.
A afirmação segundo a qual um eventual governo futuro poderia, se o quisesse, dialogar com o Congresso para revogar a lei existente, ou elaborar uma nova lei, não serve de argumento, pois, em face do tempo que essas negociações costumam tomar, isso distribuiria a esse governo futuro um ônus desproporcional, que, no limite, poderia inviabilizar completamente a execução de sua política econômica pretendida.
Ora, mas o Poder Legislativo não é também eleito pela soberania popular? Logo, a elaboração de uma lei não respeitaria sempre esse pilar crucial do Estado democrático de direito? Não necessariamente. Em seu momento constituinte, a soberania popular determina não só como seguirá podendo manifestar-se durante a vigência da Constituição por ela elaborada, mas também dentro de quais limites os poderes constituídos, por ela eleitos no transcurso da vigência constitucional, deverão atuar. Por conseguinte, uma atuação de qualquer dos poderes que ultrapasse esses limites postos na Constituição desrespeita a soberania popular, mesmo sendo esses poderes eleitos democraticamente.
Conduzir a política econômica compete ao Poder Executivo, por meio de seus ministérios e demais órgãos. O Poder Legislativo tem um papel imprescindível de auxílio e controle, bem como ajuda a estabelecer a infraestrutura legal necessária. Mas não pode intervir a ponto de desfigurar a titularidade do Executivo na condução da política econômica. Sem dúvida, cabe ao Poder Legislativo, com sanção presidencial, dispor sobre matéria financeira, cambial e monetária, instituições financeiras e suas operações (artigo 48, XIII). Mas daí não se segue que o Legislativo possa tirar do Executivo a possibilidade de definir a dimensão administrativa, concreta e cotidiana, da política econômica, e é disso que se trata quando o que está em jogo é a outorga ou não de autonomia ao Banco Central.
Neutralidade do BC
Em sentido totalmente contrário ao afirmado pelo redator do acórdão da ADI 6.696, ministro Luís Roberto Barroso, o Banco Central é tudo menos um “árbitro neutro”[9], tendo suas decisões impactos diretos, e muitas vezes quase imediatos, em questões fundamentais da alçada imediata do Poder Executivo, como o crescimento econômico, a desigualdade social, o nível do emprego, a oferta de crédito, a dívida pública, a inflação.
Toda essa argumentação, por óbvio, não significa a defesa de uma carta branca ao Poder Executivo para conduzir toda e qualquer política econômica que queira. Novamente, também essa política econômica só pode ser entendida como uma política que interpreta a Constituição e efetiva suas normas. Uma política econômica que não o faça pode e deve ser controlada, a depender do caso concreto, pelo Poder Legislativo, pelo Poder Judiciário, pela população nas variadas formas em que seu engajamento cívico é possível.
Mas essa possibilidade e necessidade de controle não autoriza o engessamento prévio de um governo a uma concepção de economia e de configuração do BC em tudo avessa à política econômica por ele apresentada ao sufrágio da soberania popular, sobretudo quando tal concepção de economia e de configuração do Banco Central é uma dentre outras legitimamente possíveis, e aquela endossada pelo governo é uma dessas outras possíveis segundo os ditames da ciência e da técnica econômicas.
A menção ao controle abre ocasião para a pergunta sobre qual seria o papel do Poder Judiciário nesse cenário atual. É certamente importante que o Judiciário se abstenha de interferir em questões políticas. É, porém, de igual relevância que ele não deixe de cumprir seu papel institucional ao ler como uma “questão essencialmente política” [10] aquilo que não o é.
Desrespeito à separação de poderes
Sob a aparência de uma questão essencialmente política de disputa entre pessoas adeptas e contrárias à autonomia do Banco Central, o que se esconde é um problema jurídico-constitucional grave de desrespeito à soberania popular e à separação de poderes. Seria salutar se esse desrespeito fosse corrigido pelos próprios Poderes democraticamente eleitos, isto é, pela via de um diálogo entre o Legislativo e o Executivo. Ausente essa via, contudo, se ao STF cabe a dimensão judicial da interpretação constitucional, ele deve, diante dessa violação normativa, declarar a inconstitucionalidade dos dispositivos que tornam legalmente obrigatória a autonomia do Banco Central hoje no país.
Que ele já se tenha pronunciado sobre o tema julgando a ADI 6.696 não é um obstáculo a isso. Não obstante a causa petendi das ADI’s seja aberta, daí não se segue que um julgamento proferido impeça em absoluto um novo questionamento da mesma norma, se apoiado em uma causa de pedir distinta daquela presente na petição inicial anterior e também distinta quando comparada à fundamentação efetivamente utilizada pelo STF no julgamento pretérito[11]. É este, pois, o ponto decisivo aqui: os argumentos ora alinhavados não foram discutidos em sua especificidade no julgamento da ADI 6696. E precisam sê-lo, é imprescindível para nossa democracia que o sejam.
Temos acompanhado, nos últimos anos, o crescimento exponencial da literatura sobre crises da democracia e do constitucionalismo. Os alertas desses estudos são indubitavelmente valiosos. Entretanto, é preciso entender que a ameaça autoritária não advém somente das chamadas lideranças populistas ou da cultura política reacionária que costuma acompanhá-las — advém também da nossa dificuldade rotineira de aceitar o que a democracia constitucional exige de nós.
No caso concreto aqui discutido, ela exige algo singelo: o respeito à soberania popular e à separação dos poderes, com o reconhecimento da inconstitucionalidade da autonomia do Banco Central nos termos postos pela Lei Complementar 179 de 2021.
[1] KNIGHT, F. “What is Truth” in Economics? Journal of Political Economy, v. 48, n. 1, Feb., 1940, p. 1-32.
[2] Uma crítica detalhada da decisão proferida nesse julgamento pode ser encontrada em BERCOVICI, G.; MORAIS, V. A. A autonomia do Banco Central e a Constituição. In: FACHIN, Luiz Edson; BARROSO, Luís Roberto; CRUZ, Álvaro Ricardo de Souza (Coord.). A Constituição da democracia em seus 35 anos. Belo Horizonte: Fórum, 2023, p. 399-416.
[3] SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Ação Direta de Inconstitucionalidade 6.696 – Distrito Federal. Inteiro Teor do Acórdão. Brasília: 2021, p. 3.
[4] SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Ação Direta de Inconstitucionalidade 6.696 – Distrito Federal. Inteiro Teor do Acórdão. Brasília: 2021, p. 3.
[5] Essa autonomia abrange os mandatos fixos da diretoria do Banco Central, não coincidentes com o mandato da Presidência da República, mas não se limita a isso. Para detalhes quanto ao alcance de tal autonomia e quanto aos mecanismos que a efetivam, cf. o texto de Gilberto Bercovici e Viviane Morais citado na nota de rodapé n. 7.
[6] Em sentido parecido, cf. STRECK, L. A autonomia do Banco Central é compatível com a Constituição? Consultor Jurídico. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2023-fev-16/senso-incomum-autonomia-banco-central-compativel-constituicao/>. Acesso em 20 de janeiro de 2025.
[7] Cf., novamente, a crítica de Gilberto Bercovici e Viviane Morais no texto citado na nota de rodapé n. 7.
[8] PARTIDO SOCIALISMO E LIBERDADE; PARTIDO DOS TRABALHADORES. Petição inicial de Ação Direta de Inconstitucionalidade. Brasília: 2021, p. 20.
[9] SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Ação Direta de Inconstitucionalidade 6.696 – Distrito Federal. Inteiro Teor do Acórdão. Brasília: 2021, p. 52.
[10] SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Ação Direta de Inconstitucionalidade 6.696 – Distrito Federal. Inteiro Teor do Acórdão. Brasília: 2021, p. 3.
[11] Dois precedentes importantes nesse sentido são os das ADI’s 5579 e 5081.
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