Um fundacionalismo sobre súmula vinculante e precedente
1 de fevereiro de 2025, 8h00
Não custa repetir, muito pelo contrário, se faz necessário repetir porque grande parte da doutrina, ao que se constata, não exerce o seu papel de doutrinar, mas apenas de, ao que parece, aquiescer com a sua jurisprudencialização constante de forma galopante, afinal precedente é uma coisa, súmula é outra coisa.
A doutrina, assim como a jurisprudência no nosso sistema do civil law, como se sabe, são fontes mediatas do Direito, sendo que esta é “fonte por duas razões: uma, porque influencia na produção de normas individuais; outra, porque participa da produção do fenômeno normativo, apesar de sua maleabilidade” [1].
Entretanto, deve-se reconhecer que há uma tendência nacional pulsante de que a jurisprudência seja fonte imediata do Direito por meio, por exemplo, de sumulados que passam, alguns, a ter prevalência sobre a lei ou contrários ao texto constitucional. Por outro lado, passou-se a exigir com grande incidência em concursos públicos da área jurídica que o candidato saiba bem as principais jurisprudências dos tribunais superiores, súmulas e até mesmo precedentes, enquanto a doutrina em tempos de imediatismo, de IA, de que ler mais de duas páginas é cansativo, vai, ao que parece, definhando num cenário jurídico que prestigia a superficialidade do conhecimento.
Prioriza-se o livro digital em detrimento do papel. Sob o aspecto ecológico tem sua razão de ser, afinal papel é madeira, esta que cada vez mais se encontra escassa no planeta com o desmatamento e degradação do solo, mas tudo tem seu preço. A Suécia, como se noticia, depois de cerca de 15 anos está deixando de lado nas escolas o livro digital para retornar ao livro impresso sob o fundamento de que se tem impressão de que os jovens passaram a saber menos.
Em tempos em que com um celular, melhor denominação dão os portugueses ao chama-lo de telemóvel, substitui grande parte das câmeras fotográficas e filmadoras, se pode escanear, fazer ligações em grupo, participar da rede social, digitar textos etc. — recentemente presenciei um universitário, em sala, digitando o que o professor falava ao invés de anotar em um bloco ou caderno —, o que se pode esperar dessa geração e das anteriores que sucumbirem a essa “comodidade” crescente de textos digitalizados no celular para tudo? Diante desse cenário qual a importância que se passa a dar ao lápis e o papel, ou seja, para a escrita tradicional? Estaremos caminhando para uma época em que as pessoas terão dificuldade real de escrever, de segurar um lápis ou caneta para tal em virtude da facilitação da digitalização?
A facilidade e simplicidade que a robotização permite está presente em diversas vertentes do âmbito social e, no que nos interessa, igualmente no jurídico onde, dentre outros mecanismos que fomentam o mecanicismo, temos as súmulas, os precedentes, as teses, os temas etc., ferramentas que podem ser úteis e importantes para o sistema se usadas adequadamente, mas neste enxuto escrito vamos nos ater às súmulas e precedentes judiciais.
Súmula vinculante é precedente?
Nosso sistema é do civil law e como bem alerta Lenio Streck, nós “não temos um sistema de precedentes” [2], porque estes são contingenciais e não pro futuro [3]. A súmula vinculante se apresenta com um texto normativo a ser aplicado no futuro, com respostas a perguntas que sequer existem. Impede que dele se extraia a norma a ser aplicada no caso concreto, o que vai de encontro ao fato de que “não existe direito imune à interpretação” [4].
Esse “termo precedente foi utilizado pela primeira vez em 1557. A doutrina dos precedentes consiste em teoria que alça as decisões judiciais como fonte imediata do Direito junto à equidade e legislação” [5].
As súmulas são enunciados persuasivos ou vinculantes, mas ambos decorrem da jurisprudência que os formam, por assim se dizer, precedentes. Vale dizer, súmula não é precedente. O precedente dá dinamismo ao sistema enquanto a súmula, no caso, vinculante, pode causar uma estagnação e obstaculizar o acesso à justiça por parte do jurisdicionado, da administração pública e, como efeito colateral do próprio cidadão que tem obstado o exercício da cidadania plena, ou seja, do direito a ter direitos ou mesmo de conquistar novos direitos.
Em síntese, súmula, que “é um produto de um conjunto de textos” [6], há de ser passível de interpretação na aplicação para dela se extrair a norma a ser ou não aplicada no caso em julgamento, sendo, em certa medida, importante para o fomento da integridade e coerência das decisões judiciais que firmam a tão almejada e importante segurança jurídica.
Não podem as súmulas vinculantes, como textos normativos que são, impedir a sua interpretação pelo fato de que não há atividade jurídica sem interpretação [7] e que, se “não existe direito imune à interpretação” [8], forçoso reconhecer que a criação de obstáculo interpretativo à Súmula Vinculante diante do caso concreto, faz com que se possa sustentar que com elas não se aplica o direito.
Como texto normativo que se apresenta, a súmula vinculante é criada pro futuro para, no presente, se extrair por meio de interpretação a norma a ser aplicada ao direito pressuposto, pois do contrário não tem sentido a razão de sua existência por não ser possível a realização de atividade jurídica, não se podendo se querer ter respostas a perguntas inexistentes como sempre alertou Lenio Streck.
Súmula vinculante e/ou precedente obrigatório
Súmula vinculante também não é precedente obrigatório. Este decorre do common law e pode não ser aplicado em decisão fundamentada em casos subsequentes porque permite que dele, por meio de hermenêutica, se extraia uma norma a ser ou não aplicada diante do caso concreto.
A súmula vinculante, ao contrário, cristaliza, não permitindo a sua inaplicabilidade diante de um caso concreto que se tenha como igual porque se apresenta como norma pronta e acabada. Ignora que cada caso é um caso em se tratando de matéria de fato. É presente o sumulado que se baseia em casos antecedentes análogos, que se têm como precedentes, para ser aplicado ou não, automaticamente, a casos consequentes que se tenha como idênticos, mesmo, repito, que se trate de matéria de fato, esta que pode ser semelhante, mas não igual. O magistrado, nesses casos, age como autômato, não decide, apenas chancela de forma robotizada a decisão da instância superior, ou seja, como já se salientou, não interpreta, logo não aplica o Direito e viabiliza a ocorrência de injustiças.
Em sendo assim, com ajuda desse recorte acima, podemos reafirmar que súmula vinculante não é precedente obrigatório pelo simples fato notório, dentre outros existentes e já abordados, de que os verbetes vinculantes podem ser editados e reeditados como a lei, o que não se pode fazer com os precedentes obrigatórios que são próprios do common law.
Ressalte-se que, de forma pioneira, Lenio Streck, já nos anos 90, denunciava o perigo da construção de enunciados sumulares que substituíam a legislação, a exemplo dos assentos portugueses, estes que foram julgados inconstitucionais no paradigmático Acórdão nº 810/93 do Tribunal Constitucional português [9]. Streck já dizia, à época, em seu “Súmulas no Direito Brasileiro: eficácia, poder e função: a ilegitimidade constitucional do efeito vinculante” que súmulas e ementários escondiam as singularidades dos casos concretos.
Por outro lado, consignamos que as súmulas simples ou persuasivas, como aquelas proferidas contemporaneamente pelos demais órgãos colegiados do judiciário somente vinculam os seus membros, mas não os demais órgãos jurisdicionais e juízes de primeira instância, embora seja recomendado para a segurança jurídica e fomento à integridade do direito que se faça observância aos enunciados existentes quando do julgamento. As súmulas persuasivas tiveram e ainda têm uma relativa e importante eficácia prática além de grande serventia jurisdicional, inclusive para as partes, permitindo a igualdade de tratamento aos jurisdicionados na busca do meio termo justo.
Embora as súmulas sejam oriundas de precedentes judiciais condensados em verbetes, com eles não se confundem como já enfatizado acima. Não se confundem, também, a influência dos precedentes nos juízes do civil law com aquela que ocorreu sobre os juízes que integraram o período de formação do common law na Inglaterra.
Com efeito, para os juízes do civil law os precedentes devem ser respeitados quando se amoldarem ao caso concreto dentro do sistema/tradição do direito escrito que tem a lei como fonte primária do direito, não significando a ausência de força obrigatória na sua ineficácia, mas sim da sua eventual e necessária flexibilização na aplicação decorrente da hermenêutica para que o meio termo justo se faça presente de forma fundamentada quando das decisões judiciais.
Por sua vez, os juízes quando da formação do common law inglês, oriundos da fileira dos processualistas e práticos, “depositavam muita confiança nos julgamentos anteriores de casos semelhantes” [10] que deram “origem à doutrina do precedente judicial” [11] que criou o denominado Direito judicial.
Saliente-se que mesmo dentro dessa doutrina dos precedentes judiciais “obrigatórios”, diferentemente das súmulas vinculantes, há possibilidade de não serem aplicados no caso concreto pelos tribunais e demais órgãos judiciais na exata lição de Karl Larenz:
“Não é o precedente como tal que «vincuIa», mas apenas a norma nele correctamente interpretada ou concretizada. Porém, todo o juiz que haja de julgar de novo a mesma questão pode e deve, em princípio, decidir independentemente, segundo a sua convicção formada em consciência, se a interpretação expressa no precedente, a concretização da norma ou o desenvolvimento judicial do Direito são acertados e estão fundados no Direito vigente. Portanto, o juiz não deve aceitar de certo modo «cegamente» o precedente. Não só está habilitado, mas mesmo obrigado, a afastar-se dele se chega à conclusão de que contém uma interpretação incorrecta ou um desenvolvimento do Direito insuficientemente fundamentado, ou que a questão, nele correctamente resolvida para o seu tempo, tem que ser hoje resolvida de outro modo, por causa de uma mudança da situação normativa ou da ordem jurídica no seu conjunto [12]”.
Ovídio A. Baptista da Silva ao abordar os precedentes em detrimento de outros instrumentos, no mesmo sentido de Larenz, assinala:
“O precedente, ao contrário da súmula da jurisprudência predominante, e instrumentos análogos, surge não para consolidar, mas para modificar a jurisprudência até então seguida pelo tribunal. Esse sentido transformador do precedente, através do qual a ordem jurídica se rejuvenesce, para acompanhar as exigências sociais, permite, como ocorre no caso americano, que as cortes supremas contribuam para o progresso e constante modernização do Direito, assegurando-lhe a unidade, função primordial e indispensável a ser exercida pelas supremas cortes e que as nossas dificilmente poderão exercer em sua plenitude, assoberbadas como estão com um volume extraordinário, absolutamente despropositado, de recursos que as torna, por isso mesmo, questão de interesse dos respectivos litigantes.
É por esta via que os juízes do common law podem recursar-se a seguir o precedente, mostrando que o caso de que se cuida apresenta peculiaridades que o fazem diverso daquele que permitira a sua criação; ou mesmo por apresentar-se o precedente destituído de razoabilidade, aos olhos do julgador [13]”.
Nessa toada, seguindo os passos de Larenz e Ovídio Baptista, nos parece sem sentido a comparação de súmula vinculante com precedente obrigatório ou querer se ter aquela como este, não só porque os verbetes não são precedentes, como já sustentado, mas também porque a vinculação exigida por eles é absoluta enquanto na dos precedentes judiciais do common law é relativa. Na súmula vinculante o caráter absoluto reside no fato de que os órgãos judiciais e a administração não podem contrariar ou negar vigência aos seus textos que são vinculantes, sob pena de reclamação. Nos precedentes obrigatórios do common law a relatividade repousa no fato de serem julgados casos passados que servem de orientação judicial para aplicação no futuro a casos semelhantes, podendo, fundamentadamente, não serem aplicados no caso concreto por não servirem ao propósito pretendido. Permite-se a hermenêutica e, em consequência, a realização de atividade jurídica para aplicação do direito.
Por derradeiro, as súmulas vinculantes expressam o instrumento pelo qual o Supremo Tribunal Federal quer dizer o que é direito, mas vale “lembrar que o direito não é – e não pode ser – aquilo que os tribunais dizem que é (falácia realista)” [14] como se sustenta no paradigma da metafísica moderna (filosofia da consciência) em que o sentido está na mente do sujeito, ao contrário de uma pós-metafísica em que “os sentidos passam a se dar na e pela linguagem” [15].
[1] STRECK, Lenio Luiz. Súmulas no Direito Brasileiro: eficácia, poder e função: a ilegitimidade constitucional do efeito vinculante. 2. ed. rev. e ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1998, p. 85.
[2] STRECK, Lenio. Ainda e sempre o ponto fulcral do direito hoje: o que é um precedente? Revista Eletrônica Consultor Jurídico, 2 de março de 2023.
[3] STRECK, Lenio. Lições de Crítica Hermenêutica do Direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2014b, p. 25.
[4] Ibid.
[5] STRECK, Lenio Luiz; ABBOUD, Georges. O que é isto – o precedente judicial e as súmulas vinculantes. 2. ed. rev. e atual. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2014c, p. 43.
[6] Ibid., p. 64.
[7] Ibid., p. 52.
[8] STRECK, Lenio. 2014b, p. 25.
[9] Disponível em: https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/4908361/mod_resource/content/1/Assentos.pdf
[10] STRECK, Lenio Luiz; ABBOUD, Georges, 2014c, pp. 23-24.
[11] Ibid.
[12] LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito. Tradução José Lamego. 3. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1997, p. 612.
[13] SILVA, Ovídio A. Baptista da. A função dos tribunais superiores. In: STJ 10 ANOS. Disponível em: OVÍDIO A. BAPTISTA. A FUNÇÃO SUPREMA DOS TRIBUNAIS.SÚMULA VINCULANTE.ASSENTOS.pdf. Acesso em 27 jan 2025, p. 162.
[14] STRECK, Lenio. Hermenêutica Jurídica e (em) Crise: uma Exploração Hermenêutica da Construção do Direito. 11. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2014a, p. 411.
[15] Ibid., p. 402.
NOTA: Fundacionalismo é “o ponto de vista epistemológico segundo o qual o conhecimento deve ser concebido como uma estrutura que se ergue a partir de fundamentos certos e seguros” (BLACKBURN, Simon. Dicionário Oxford de Filosofia. Consultoria da edição brasileira Danilo Marcondes. Tradução Desidério Murcho et al. Rio de Janeiro: Zahar, 1997, p. 164.
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